A Queda Divina escrita por Vinefrost


Capítulo 11
Redenção




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Dorothea

Sinto como se estivesse sucumbindo ao sono, mas sei que não é isso que ocorre. É uma sensação antiga e familiar, aterrorizante na época que não tinha conhecimento e muito menos os meios para controlar quando finalmente fico inconsciente. Meu corpo físico se torna mais leve, etéreo, minha mobilidade aumenta, diferente do corpo de noventa anos de idade quase sem forças. Atravesso o teto do segundo andar, minha alma continua subindo aos céus durante sua projeção astral.

Há anos que não passo por uma experiência extracorpórea, uma das habilidades que carrego devido a minha mediunidade. Só não entendo o porquê de estar ocorrendo agora... Assim que entro no domínio celestial, encontro Celeste e o guarda dos Portões do Paraíso, Uriel, preparados para um embate.

Geralmente minhas viagens astrais são provocadas por alguma força exterior, um espírito inquieto ou uma entidade de origem angelical ou demoníaca. Seres que querem me mostrar algo, aconselhar ou simplesmente assustar; mas isso nunca me impediu de continuar investigando para quem procura minha ajuda espiritual, por isso quem me conhece sabe que posso ser extremamente insistente.

— Nós lhe avisamos, médium, não interfira nos assuntos angelicais – brada Uriel.

— Foi por isso que me expulsou de sua casa? - pergunta Celeste, a voz carregada de alívio, como se houvesse acabado de desvendar uma incógnita. Pobre anjo, deve ter pensado que havia sido escorraçada mais uma vez sem motivo algum, mas eu não tive escolha.

Ignoro seu questionamento, ela não pode descobrir qual ameaça me fizeram, lá no passado, quando Celeste ainda não havia caído, mas de alguma forma sabiam que nossos caminhos iriam se cruzar novamente.

— Sabe muito bem que não posso controlar quando minha alma é chamada, algo me trouxe até aqui – respondo pacificamente.

— Duvido que tenha sido algum anjo, muito menos o caído - rebate, Celeste encolhe.

Na maior parte do tempo, pelo que me lembro do que aprendi há décadas, os anjos assumem a forma de uma bola de luz, ficando parecidos com uma estrela. Mas quando a situação exigia outro tipo de comportamento, essa bola desforme brilhante de energia ganhava a silhueta dos humanos, e suas mãos podiam portar armas celestiais.

Como a natureza de Celeste ainda é forte em seu corpo, sua essência divina está ativa, ela mantinha a mesma forma de Uriel, a silhueta humana incandescente. Se fosse daqui alguns anos, com seu corpo já livre dos resquícios de sua origem angelical e completamente humano, o anjo caído teria a mesma aparência que eu, uma reprodução espiritual do meu corpo terrestre. Por isso conseguia distinguir a expressão corporal dos seres.

— Se estou no Céu, algo divino deve querer a minha presença neste exato local e ocasião. Se não foram os anjos, então quem tem poder para me trazer aqui além do seu superior? - Atiro a indireta.

— Impossível, você não é ninguém para ser requisitada desta forma.

— E ainda assim, estou aqui... - digo. - Ele quer a minha interferência, Uriel. Vai me escutar ou desobedecer a uma ordem d’Ele?

Uriel permanece alguns instantes parado, como se pensasse na sua próxima ação. Até que finalmente se transforma em uma bola de luz, é sua maneira de dizer que se rendeu, Celeste faz o mesmo.

— Muito bem, Celeste, você não vai encontrar respostas aqui, muito menos comigo. Sua jornada no Céu está encerrada, volte para o seu corpo e continue vivendo sua vida na Terra – me corta o coração não poder ajudá-la, a única coisa que posso oferecer são conselhos para auxiliar em sua jornada.

— Não posso, essa foi minha última chance de descobrir o que aconteceu comigo – insiste.

— Ela está certa, Celeste. Vá enquanto há tempo de voltar para seu corpo, não queira ficar vagando pela Terra apenas na forma da sua essência. Será uma existência solitária e sem propósito - Uriel completa.

A ameaça de que Deus poderia estar envolvido na minha projeção astral foi o suficiente para acalmar os ânimos do guarda. Por isso tenho que acabar o mais rápido possível com esse encontro, não faço a mínima ideia de quem ou o que me trouxe aqui, foi apenas uma jogada para salvar Celeste e não me comprometer com os anjos. Posso estar velha, mas ainda tenho minhas jogadas guardadas na manga.

— Se permanecer muito tempo longe do seu corpo encarnado, a ligação entre sua essência e o mesmo começará a deteriorar, até que seja tarde demais. Apesar da origem sobrenatural, seu corpo encarnado não está imune à morte – aconselho.

Ela finalmente parece desistir e, relutante, tenta retornar ao corpo, sem sucesso:

— Não consigo – diz chorosa.

— Você só precisa de um guia, posso muito bem ajudá-la. Venha, me siga – Celeste se aproxima, assim que estamos lado a lado e prontas para deixar os Portões do Paraíso, ofereço um conselho final: - Assim que sair do domínio dos anjos, aceite de uma vez que sua realidade agora é outra, para o seu bem e o meu.

— Falar é mais fácil do que agir – responde aborrecida.

— Sinto muito, sei que é difícil. Mas precisa compreender que sua jornada é na Terra. Esqueça que foi um anjo, daqui uns anos seu próprio corpo irá, será totalmente humana. Não está feliz com a vida que construiu lá embaixo?

Ela permanece em silêncio, pensando profundamente naquilo que lhe questionei, seguimos nossa viagem astral até chegarmos no seu corpo sem vida:

— Você acredita em redenção, Celeste?

— Sim, de certa forma, o que farei após a Queda deve ser a minha – conclui sem animação.

— Então faça com que seja a de Caim também - declaro. - Desejo que viva uma vida plena, Celeste.

O anjo caído não tem tempo para me responder, muito menos tirar suas dúvidas; assim que sua essência entra em contato com o seu corpo encarnado, Celeste desperta com vida, e eu em meu corpo no rancho que carrego como herança de minha família.

★☆★

Caim

— Vá embora antes que ela recobre totalmente a consciência, não quero assustá-la caso resolva liberar meu lado demoníaco em você - digo na direção de Lilith.

— Não estou gostando da sua nova atitude, Caim.

— Muito menos eu de você ter quase acabado com o nosso plano. Tem sorte que ela voltou a respirar, e não foi graças aos dotes do habilidoso “Thomas”.

— Esta não será a última vez que terá notícias minhas – diz antes de desaparecer pela casa. Ouço o demônio caminhar com determinação para fora até a porta de entrada ser aberta e fechada com violência, ela está furiosa.

Me distraio com Celeste respirando profundamente, os olhos se abrem e piscam várias vezes até se acostumarem com a iluminação do quarto. Apesar dos sentimentos negativos que tenho por Lilith estarem percorrendo minhas veias como veneno, alívio também toma conta do meu corpo. Como se a súbita volta de Celeste fosse um antídoto para as minhas partes demoníacas querendo surgir e causar estrago pela frustração passada. Não é um efeito milagroso, elas ainda estão lá, mas me faz querer e ter forças para controlá-las.

Lilith está certa, me apeguei ao anjo. Preciso fazê-la se apaixonar por mim o mais rápido possível, antes que meus sentimentos sejam fortes o suficiente para me impedirem de completar minha missão.

— Onde está Thomas? - pergunta desorientada.

— Como você deve ter notado, o médico possui uma personalidade excêntrica. Assim que constatou que estava bem, e que apenas precisava de um tempo para acordar, foi embora. Acho que Thomas ficou com medo do que eu poderia fazer com ele caso você não retornasse – passo as mãos pelos seus cabelos, parando exatamente em seu queixo.

Celeste segura sua mão sobre a minha em sua face, gentilmente a retira dali e se acomoda na cama, ficando cara a cara comigo. Ela parece mais confiante, diferente do anjo confuso e arisco que encontrei semanas atrás. Sua empreitada arriscada definitivamente rendeu alguma coisa, agora só resto saber o quê. Antes mesmo de poder questionar o motivo do seu novo humor, Celeste se aproxima ainda mais e me beija delicadamente. Ao se afastar, a encaro confuso ao dizer:

— Me surpreendeu mais uma vez, anjo.

— Está baixando a guarda, Caim? - Questiona divertida, sorrio de volta.

— O que aconteceu lá em cima?

— Nada – responde simplesmente. - Falei com o anjo que guarda os Portões do Paraíso, ele não revelou o motivo da Queda.

— Então tudo isso foi em vão? - Ergo as sobrancelhas, atônito com sua reação quase que tranquila.

— Exatamente – responde simplesmente.

— E você não está... Triste?

— Sim, estou. Acho que sempre ficarei, mas não posso deixar esse sentimento me guiar para sempre. Decidi focar na minha existência terrestre e tirar o melhor da situação.

— Onde está o anjo determinado em encontrar as respostas que procura? E não minta para mim, sei que no fundo você também desejava vingança.

Celeste levanta da cama e se encosta no batente da porta que dá para o deck de madeira, encara o cenário noturno lá fora enquanto me responde de costas:

— Chega um determinado ponto no qual temos que nos conformar que não há respostas para todos os nossos questionamentos, talvez eu esteja fadada a viver desta maneira. Minha breve passagem no Céu me fez abrir os olhos para uma perspectiva muito maior, onde não envolve somente a mim e minha Queda... - divaga desanimada.

— Está brincando, não é mesmo? - Digo me levantando e ficando ao seu lado, ela não responde.

Que bobagem é essa? Alguma coisa aconteceu que não está querendo me contar. Mas eu vou descobrir, no momento tenho que aproveitar a situação para ganhar ainda mais a confiança do anjo.

— Então é isso? Sem mais nenhum plano mirabolante para descobrir sua expulsão do Paraíso? - questiono incrédulo.

— Sim, sem mais nenhum plano ou tentativa de contato com os anjos. Eles deixaram bem claro que não vão me ajudar, não tenho mais onde recorrer, eram os únicos que podiam me informar o motivo.

— E o que você vai fazer agora? - questiono intrigado.

— Viver um dia de cada vez – assume ao levantar o rosto aos céus, fechar os olhos e sentir a brisa fresta atingir sua face e bagunçar o cabelo solto.

A súbita decisão de Celeste não estava nos meus planos, mas pensando melhor, pode ser que essa virada do destino possa me beneficiar. Agora que Celeste deixou de lado sua principal motivação, posso aproveitar para me tornar ainda mais presente em sua rotina. Em breve o anjo caíra totalmente aos meus encantos e seu coração será meu. 


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