Samael e Lianne escrita por Otakórnio


Capítulo 17
Capítulo 17




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/799550/chapter/17

            Passei dois dias quase me matando na floresta. Bebi água de um lago e comi pequenas frutas que torci para não serem venenosas. Eu gritei por eles e não ouvi respostas. Até que uma noite, exausta e faminta (imagine uma mulher deitada na grama com os olhos e boca entreabertos), eu estava delirando quando decidi falar sozinha:

            – Essa floresta é tão bonita... Samael, o que falta é mim é coragem. Eu não sei se essa floresta é corajosa, mas ainda a acho bonita.

            As folhas se mexeram, um inseto mordeu meu braço.

            – Eu já tive um amor mal visto. Estranho, não? Por que amar seria mal visto? Eu gostei de uma pessoa diferente demais, estranha demais apenas porque se identificava do jeito “errado”. Por que era errado? Eu não sei. Ninguém precisava entender, ninguém tinha nada a ver com aquilo e ela não forçava ninguém a ser igual a ela, mas as pessoas insistiam em dizer que “homem é homem e mulher é mulher”. Qual o limite entre a opinião e o discurso de ódio? Eu tinha tanta raiva quando eles se vitimizavam dizendo “se eu não concordar é preconceito?” quando na verdade eles apenas semeavam ódio. O que é discordar pra eles? Falar toda semana com Amanda apenas para dizer que ela nunca vai ser uma mulher? E por que eles se incomodam tanto em como ela se vê?

            “Como você vai ter uma família?”

            Ouvi minha própria voz na minha cabeça, mas eu sabia que não era eu. E eu estava tão mal que nem consegui comemorar.

            – Família é mais que laços de sangue. Pra isso existe a adoção.

            “Filho só é filho se tiver seu sangue.”

            – Eu tenho o sangue dos meus pais e eles preferem fingir que nem me conhecem. Sou filha deles e sou uma estranha. E por que vocês estão falando de crianças? Eu não falei nada sobre filhos!

            “Nem todo relacionamento é natural.”

            – Por que não seria?

            “Os opostos foram feitos para se complementarem. No seu caso os opostos são homem e mulher.”

            – Eu posso discordar desse pensamento porque orientação sexual não é uma escolha, mas eu sei que não adianta explicar pra quem não quer ouvir. Eu só quero que vocês entendam que o mundo é enorme e tem vários tipos de pessoas, o que significa que nem todas vão ser como você quer que sejam.

            “Como elas devem ser.”

            – Por que outras pessoas devem seguir sua ideologia? Não é o suficiente vocês terem seus princípios e opiniões? Assim como vocês não querem que os outros ignorem seus ideais, eles também não querem ser forçados a nada.

            “Não somos tão horríveis quanto você pensa. Não queremos forçar ninguém a nada, mas não é correto demonstrações públicas. Todos ficam desconfortáveis.”

            – Por que vocês se incomodam tanto? Todo casal quer demonstrar carinho em público, por que seria um problema? Ninguém vai obrigar vocês a fazer o mesmo, vocês nem precisam achar certo. É só deixar aquele casal em paz e seguir cuidando da própria vida.

            “Eu acho estranho, não consigo me acostumar.”

            “Eu acredito que esse comportamento pode influenciar outros, e isso vai ficar fora de controle.”

            “Eu tenho alguém e sou discreto.”

            – Acreditem em mim, ninguém vai mudar só por ver outro fazendo algo. O máximo que pode acontecer é uma pessoa reprimida desejar ou até tentar ser corajosa. Vocês se referem a aura da Morte, não é? Tenho certeza que vocês não querem mudar de aura porque a dele era diferente, assim como vocês não escolheram a própria aura de vocês.

            “Eu tenho orgulho da minha aura!”

            – Quando você escolheu ter sua aura?

            “Eu nunca escolhi. Simplesmente sempre foi amarela.”

            – Mesmo que seja incomum, isso não vai mudar nada na vida de vocês. Deixe aquela pessoa ser esquisita e respeite ela, nada vai sair do controle. E eu sei que alguns casais são mais discretos que os outros, mas desde que ninguém faça algo sexual em público eu não vejo problema em segurar as mãos e beijos. Por que vocês veem problema?

            “A Morte e a Natureza exibiam um laço vermelho. Ele era grande, então mesmo que eles estivessem distantes ainda era possível vê-lo. Nunca vi a necessidade disso!”

            – Eles ficaram presos no laço, não foi de propósito. E Samael me confirmou que o laço não podia sufocar ou enroscar em ninguém; ele só era um pouco chamativo, mas não pode fazer mal.

            “A aura dele era o pior. Roxa! Terrível.”

            – O que a aura significa?

            “Nossa aura é a nossa identificação. É o nosso brilho. Uma luz colorida que chama mais atenção que nosso próprio corpo físico.”

            – Então é só um brilho... colorido?

            “Há apenas duas cores. Quase todos nós somos amarelos ou azuis. A Morte era a única de cor diferente. Algo estava errado!”

            – Gente, digo, Deuses, é só um brilho. E daí que era roxo? Isso não muda nada.

            “Incomoda! Eu me acostumei a ver as mesmas cores, não gosto de uma cor diferente.”

            – Tudo bem, eu entendo por que o diferente incomoda, mas vocês não acham que exageraram? Não é melhor respeitar? Aparecer auras diferentes não vai fazer o mundo em que vocês vivem sair do controle, o que faz isso é Reprimir e trazer ódio. Vocês deviam odiar as pessoas pelas atitudes delas, não por características físicas ou os relacionamentos delas. Tenho certeza que essas coisas não vão interferir em nada da vida de vocês!

            Assim o silêncio voltou e com ele veio o meu sono.

            No outro dia eu voltei para casa. Tomei banho, almocei e dormi na minha cama. Quando acordei ouvi um sussurro na minha mente:

            “Você está certa. Fomos intolerantes como os humanos. Tivemos uma discussão e vamos tirar a Repressão de Samael.”

            Fiquei feliz e minha coragem momentânea me fez tomar uma atitude louca: decidi finalmente falar com meus pais. Queria aproveitar que eu tinha bons argumentos na minha mente.

            Fui para outra cidade torcendo para eles ainda morarem no mesmo lugar. Fiquei estranhamente feliz quando vi que a casa parecia não ter mudado. Bati na porta e vi que meu pai estava mais magro.

            – Oi, pai... – minha mãe se aproximou: seu cabelo estava loiro. – Oi, mãe. Eu sei que faz quatro anos, mas eu quero ter uma conversa séria com vocês.

            – Pensei que você nunca mais ia voltar.

            – Eu precisei me reinventar. Eu não planejava voltar, mas vocês são meus pais e eu não acho saudável essa briga.

            – Você não precisava ter voltado.

            – Você ainda é lésbica?

            – Sim, eu não vou deixar de ser lésbica, mãe.

            – Então você continua a não nos fazer falta, Cíntia!

            Eu podia ter discutido com eles, mas eu percebi que não valia a pena. A mente deles é tão fechada que os impedia de sentir empatia e até amor. Eu me prometi não voltar e nunca mais os vi.

            Quis conversar com Samael, mas ele havia sumido!


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Samael e Lianne" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.