Arranjos & Desarranjos escrita por Lily Masen, Shalashaska


Capítulo 7
Segredos & Privês


Notas iniciais do capítulo

Bom dia/tarde/noite, galerinhaaa!
Demos uma atrasada nos últimos capítulos (o que pode se repetir por causa da faculdade), e eu admito a culpa, visto que a Shalashaska é perfeita em tudo que se propõe e terminou a parte dela há duas semanas atrás (inclusive, desafio vocês adivinharem quem escreveu qual parte).
Agora, compensando o atraso, vem aí...... isso mesmo, nove mil palavrinhas recém-saídas do forno. Temos conversas suspeitas, um jovenzinho bebendo como se o mundo fosse acabar, um certo general ruivo voltando à cena para mexer com alguns coraçõezinhos e algo que vai virar a vida de um certo salt daddy de cabeça para baixo.
Espero que vocês gostem!
Beijão! ♥



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O quarto refletia bem a sua personalidade suave e gentil, os tons pastéis escolhidos a dedo estampavam as paredes e uma cama de dossel — com cortinas finas e de um tom rosa delicado — ocupava o centro do cômodo. Os quadros pendurados em todo o aposento, embora ela não tivesse coragem suficiente para admitir, eram obras autorais. Cecília desenhara e pintara sozinha cada detalhe das jovens aéreas cercadas por molduras douradas, e enchia-se de orgulho ao admirá-las. Quando sentia-se triste, via nelas suas musas inspiradoras: belas, elegantes e decididas, diversas características que ela não tinha certeza se via em si. Uma delas exibia um vestido amarelo e fluido, como se vestisse um raio de sol — Cecília o desenhara num período de êxtase, quando a avó materna apresentou-lhe um conceituado modista francês — outra envolvia-se em preto, sob um tecido  que se assemelhava a uma mortalha, pesado e rígido. Fizera-o após uma extensa discussão com o pai, que não aprovava seu desejo incontrolável e sua paixão por criar arte. Entristecia-lhe saber que o mesmo ofício que tanto a agradava, aborrecia um de seus entes mais queridos.

Certa vez, ele a mandara cuidar dos jardins, argumentando que seriam uma distração mais… aceitável. “Pense nas plantas como uma orquestra, seja a maestrina”, Arthur dissera, mas é claro que a verdadeira intenção por trás de suas palavras eram um tanto diferentes. Como ela percebeu, não muito depois, o que ele realmente quisera dizer foi: “Os jardineiros são sua orquestra, seja a madame”. Imagine o homem ao vê-la agachada, protegida apenas por um chapéu de abas longas, e com as mãos pequenas completamente cobertas por terra. Cecília ainda se lembrava bem. Ela abriu um sorriso largo e doce ao vê-lo parado sob o pórtico da entrada, ansiosa pelo reconhecimento de que fizera um bom trabalho. Mas, em vez disso, ele colocou a mão sobre o peito, profundamente assombrado. A garota se levantou rapidamente, com medo que algo tivesse afetado seu pobre coração, mas o único culpado era seu desgosto. Como se já não bastassem a costura e seu hábito de se enfurnar na cozinha junto à criadagem, a garota agora tomara gosto pelo cuidado das plantas da propriedade. O seu único alívio era saber que a filha se contentara em tratar apenas das flores que decoravam o interior da casa, longe dos olhares de bisbilhoteiros.

Cecília tinha margaridas-amarelas, gerânios e lírios-de-dia em pequenos vasinhos de porcelana. Um presente de Arthur em seu aniversário. Ela sabia que era um pequeno lembrete de que deveria restringir seus passatempos indecorosos às quatro paredes de seu quarto, mas as adorou tanto, que as intenções pouco sinceras do pai pouco a importaram.

Sentada no pequeno assento que recebia de forma abundante à luz que vinha da janela ampla, Cecília ignorou o barulho da cidade e o movimento intenso de pessoas que se desenrolava à sua frente, encostando a ponta do lápis suavemente no papel branco. Rapidamente, os rabiscos tomaram forma, transformando-se em traçados firmes e retos. Uma moça esguia com um vestido de um rosa suave e bochechas ruborizadas aparecia sob a ponta de seus dedos, delicada como uma pluma.

— O garoto desapareceu? — Cecília ouviu a voz austera e familiar do pai bradar, levantando a ponta do lápis e voltando sua atenção para a conversa que se desenrolava no cômodo ao lado. — Eu pago você para quê, senhor Wilson?

Ela olhou na direção da porta fechada, mordendo o lábio inferior, enquanto absorvia cada palavra trocada. Alguns minutos depois, o tom de voz dos homens diminuíra ligeiramente e — justo quando estava prestes a decidir ficar fora de assuntos que não lhe competiam, a discussão tornou-se distante e abafada — provocando ainda mais a sua já atiçada curiosidade. 

Cecília repousou o desenho inacabado e o lápis no assento ao lado do seu, preocupando-se em retirar os sapatos, que — apesar do salto baixo de não mais que três centímetros — eram capazes de denunciá-la. Então, recostou-se perto da lareira, brincando com uma mecha de cabelo castanho-claro, como se estivesse simplesmente distraída.

— Ele sumiu por uma ruela suja e fedida, como um rato! — reclamou, com um tom apologético. — Desapareceu num piscar de olhos.

— É o que ele é! Um pequeno demônio, ansioso para roer a minha fortuna!

— O jovem não pode provar nada, senhor de Winter — disse, sua voz desaparecendo sob o praguejar do nobre.

— No entanto, é capaz de criar uma grande comoção. — Cecília se aproximou da porta, encostando a orelha direita na madeira. O que seria tão grande a ponto de abalar uma família tão bem posicionada quanto a sua? — Não precisamos de um escândalo, especialmente durante o debute de Cecília.

Arthur gritava ainda mais alto do que quando a descobrira roubando panelas da mão da cozinheira, e a garota nunca imaginou que o veria mais irritado que naquele momento, quando soube que sua princesinha adorava cozinhar.

— Livre-se do garoto! Faça o que for preciso, senhor Wilson, ou não verá a cor do meu dinheiro.

Ela cobriu a boca com as mãos, incerta sobre o que estava a ouvir. Seria possível que…? Ela aguçou a audição, ansiosa para que suas hipóteses estivessem erradas, mas — ao invés de ouvir uma nova declaração colérica vinda de Arthur — os passos dele se voltaram para a direção do quarto de desenhos. E estavam cada vez mais próximos. Cecília se virou para o assento que ocupará há alguns minutos e, com olhos arregalados e esbaforida, correu até ele. Batera as canelas na mesinha de centro e tropeçara nos sapatos jogados no chã, mas chegou ao seu destino antes que Arthur escancarasse a porta e a encontrasse com os ouvidos colados à porta. A garota abriu um sorriso amarelo, com o lápis e o papel repousados em seu colo.

— Oi… pai, e-eu estou…

Desenhando, como posso ver. — Apontou para os artigos que a garota segurava, com um tom de desprezo que nunca parecia deixar o seu rosto. Se não fosse pela sogra, Prudence Chevalier, ele certamente seria mais vocal sobre os gostos de Cecília. Mas o apoio da velha aos gostos da neta o obrigava a respirar fundo e a aturar os caprichos indecorosos da filha. — Mesmo que pareça ter tentado esconder.

— Sim! Eu estou e… e agora tenho que pintar! — disse, esperando que o pai seguisse a deixa e partisse. Suas mãos estavam suadas e o corpo trêmulo imploravam que Arthur saísse do cômodo, para que ela pudesse ficar sozinha com seus pensamentos. 

— Tudo bem… — Ele apertou os olhos, encarando-a com uma expressão esquisita, antes de se virar para sair. Mas o seu alívio durou pouco: logo, Arthur voltou a se virar em sua direção, estendendo o braço para ela.

— O que é isso? — Cecília inclinou a cabeça para o lado, pensativa.

— Um convite.

— Oh, quem teria feito a gentileza?

Cecília deu um passo à frente e, gentilmente, tomou o envelope para si. 

— Lady Cosette Watson, viúva do falecido Visconde Palmerston. Mas não acho que seja uma boa ideia…

— Talvez não. — ela concordou com o pai, antes mesmo de ler o conteúdo do cartão. Não era um segredo para ninguém que ela preferiria mil vezes continuar a desenhar que ir a um evento social, de novo.

Arthur olhou ao redor de si furtivamente e abaixou o tom de voz, preocupado que a esposa ou qualquer um dos criados o ouvisse. Nunca tivera o hábito de comprar brigas, portanto, preferia manter para si a maioria de suas opiniões contrárias às da Senhora de Winter:  — Ela é uma mulher francesa e solteira, você sabe o que as pessoas dizem sobre os franceses…

— A mamãe é francesa — ela imitou o tom de desprezo com o qual o pai se referiu à nacionalidade da mãe. — E a senhorita Watson é viúva, não solteira, papai.

Incomodada com a direção que a conversa tomara, mas enfrentada por sua incapacidade de contrariá-lo, Cecília se levantou  — guardando o desenho gentilmente na gaveta central da escrivaninha e somando-o a uma pilha de vestidos e casacos que certamente nunca veriam a luz do dia — com a esperança de que o homem entenderia seu pedido silencioso e a deixasse sozinha.

— Ah, eu sei bem. — disse, com uma expressão estranha. Algo entre prazer e desprezo. — Prudence Chevalier não lhes deixou muita prudência como herança, não é? Que ironia.

Ele riu, voltando seu olhar entristecido para a filha, com a certeza de que seus antepassados estavam se revirando dentro de seus túmulos. Envergonhariam-se dos gostos de Cecília. Uma garota de Winter, ocupando-se em fazer trabalhos manuais para pessoas que certamente seriam de estratos inferiores ao seu? Uma blasfêmia, sem dúvidas. Mas o que ele poderia esperar de uma família estrangeira e, ainda por cima, de comerciantes, além de uma mancha em sua linhagem? Ver a própria filha perder seu tempo com linhas e agulhas — sem falar dos ocasionais quitutes que ela se orgulhava de fazer, ensinados por sua avó, é claro — feria-o com a mesma força que um punhal. 

— Sua mãe, com os vestidos indecentes que se acostumou a usar na França, e você…

Ele a encarou, examinando-a de cima a baixo. Era um tanto magricela, com braços finos e um rosto comprido e pálido. Mas o contraste de sua fronte com os olhos verdes era de uma beleza sofisticada, clássica. Cecília era uma dama de aparência agradável, sabia bordar e recitar dezenas de poemas de cor, era gentil e educada. Uma moça como ela não teria dificuldade em achar um marido, exceto por esse único detalhe, capaz de atrapalhar todo o seu futuro e manchar a honra de sua família.

— Céus, eu imploro. Desista dessa sua tentativa de tornar-se uma modista. Uma dama como você… modista?

— Pensando melhor, sair de casa me parece ótimo. O clima está… ótimo também. — Cecília sorriu, abraçando o pai. Não gostava de conflitos e, por isso, faria o que estivesse ao seu alcance para evitá-los. Mesmo que a única solução que via no momento fosse o baile organizado por Lady Watson. Ao menos, sabia que a mãe adoraria uma desculpa para sair de casa. — Obrigada por me entregar o convite.

Ela sorriu, olhando-o uma última vez antes de deixar o cômodo. Cecília seguiu o som familiar do piano, até encontrar Genevieve de Winter compondo mais uma de suas belíssimas músicas. A mulher tinha cabelos castanhos-claros como os seus, embora os dela fossem longos e ondulados, derramando-se até a altura de sua cintura. As estruturas ósseas das mulheres assemelhavam-se de um modo que as feições de Arthur pouco ajudaram a compor às da filha.

— Finalmente saiu da sala de desenho, querida — Virou-se para Cecília, os dedos rápidos afastando-se das teclas no piano e repousando em seu colo. — Eu estava começando a sentir a sua falta.

— Ah, mamãe, foram só algumas horas. — Ela riu, aproximando-se com um sorriso de canto. — A soirée de Lady Watson é esta noite… Poderia ir comigo até a modista para provar alguns vestidos?

— Só se você tiver desenhado um modelo para mim. — Genevieve sorriu. — Deixe-me pegar a minha bolsa e podemos ir.

Cecília concordou, esperando-a na porta. O clima estava ameno e a brisa fresca, portanto, optaram por caminhar. As ruas de Mayfair eram bem niveladas e uma quantidade considerável de árvores decoravam o ambiente. Infelizmente, o trajeto até a modista era curto e o tempo não fora o suficiente para admirar a beleza ao seu redor e, menos ainda, para conversar sobre possíveis viagens secretas à França. 

— Você terminou o último modelito que eu desenhei? — disse, assim que abriu a porta para o pequeno, porém primoroso, estabelecimento.

Tinha um apreço especial pela modista: sentia que Joane conseguia trazer seus desenhos à vida com ainda mais fidelidade que ela mesma.

 — O vestido roxo, senhorita? — disse, sumindo de sua vista por alguns segundos, antes de retornar com um belo tecido sobre suas mãos. — Bordei os últimos detalhes há algumas horas, gostaria de prová-lo?

— Por favor! Finalmente terei oportunidade de usá-lo.

Cecília sorriu, emocionava-se sempre que via suas peças fora do papel. Não conseguia deixar de imaginar uma vida em que pudesse viver de seus desenhos. O vestido se moldou perfeitamente ao seu corpo, destacando a cintura fina e os seus olhos verdes. Sentira-se tão completa que nem mesmo a heterocromia fora capaz de chateá-la.

— Fico cada vez mais impressionada com o seu talento, querida.

Genevieve de Winter sorriu, apoiando a palma de suas mãos nos ombros de Cecília suavemente, enquanto o seu queixo repousava sobre o ombro direito da garota. Ela admirava o reflexo da filha no espelho comprido à sua frente, orgulhosa de ter sido ela a trazer ao mundo uma garota tão talentosa. No entanto, entristecia-se ao pensar que suas habilidades sempre foram cultivadas nas sombras e que seus belos vestidos não passavam de folhas amarelas, há séculos engavetados. 

— Mãe, há algo que eu gostaria de perguntar, mas…

— Pode me dizer qualquer coisa, querida. — interrompeu, tocando-a suavemente. 

— Acha que o papai mataria alguém?

A mulher arregalou os olhos, como se visse uma assombração. A xícara de chá quente em suas mãos se tornou cacos sobre o piso de madeira de Joane Keaton, acompanhando sua expressão mortificada.

Mon Dieu! — exclamou, abaixando-se para recolher os fragmentos mais evidentes de porcelana. — Mas que pergunta, Cecília! É claro que não. 

— Por que diria algo assim? — perguntou, depois de um minuto interminável de um silêncio avassalador. Então, virou-se para a modista: — Eu sinto muito. 

— Eu… não é nada. Devo ter escutado errado. — Retraiu os ombros frágeis, envergonhada. — Sinto muito, também.

— Acho que já podemos ir, oui

Genevieve sorriu, não só pagando pela peça, como pelo transtorno causado pelo mal-entendido. Era sempre uma partida difícil para Cecília, ela respirava croquis e tecidos. 

— Talvez você tenha chances de ter uma carreira de sucesso em Paris. — a mãe sugeriu. — Sua avó conhece muitas pessoas importantes na França. 

— Eu não quero deixar o papai chateado. Ele diz que os de Winter são bons demais para trabalhos manuais.

— No entanto, ele não reclamou ao receber o nosso dinheiro. — Genevieve resmungou, cruzando os braços sobre o corpo com uma expressão de desgosto.

A família Chevalier não era uma família nobre. Não tinha um belo brasão e propriedades a perder de vista. Em vez disso, Prudence Chevalier nascera numa casa pequena com mais irmãos que camas. Numa ruazinha estreita, mal iluminada e suja nos arredores de Paris. Por vezes, ela se deitara com fome, na esperança de que a barriga dos mais novos não roncasse durante a madrugada. Por muito tempo, Prudence — ou qualquer um de seus irmãos — só teria a chance de se aproximar de alguém como Arthur de Winter como um serviçal. Mas a sorte os favorecera, e fizera o contrário com a família nobre do marido. A fortuna da família de Genevieve se fez através do comércio, um método considerado não muito nobre pelos convencidos ingleses. Mas enquanto os Chevalier prosperavam, a fortuna de Arthur se perdia em maus investimentos e jogos de azar. Por fim, não o restara outra solução que não se casar com uma jovem de família rica que não fosse detentora de título algum — afinal, era a única coisa que ele tinha a oferecer. 

Jasper de Loughrey arrumou a casaca, enquanto se embalsamava com uma das fragrâncias mais caras de Bloomfield & Clove — sem dúvidas, sua perfumaria favorita em toda Londres. Satisfeito com a própria aparência, ele passou a mão pelos cabelos castanhos-escuros, prestes a atravessar o extenso corredor em direção à porta principal. Mas o rangido de uma porta interrompeu seus pensamentos pavonescos e, em seguida, uma voz inconformada soou atrás de si.

— Onde você pensa que vai?

A garota deu um passo à frente, os lábios vermelhos como sangue, os cílios cheios e as sobrancelhas escuras emolduravam perfeitamente o seu rosto. Madelyn era bela demais para o bem de qualquer outra pessoa. Diferentemente da maioria das moças que conhecia, ela sabia se aproveitar bem da aparência que lhe fora concedida na roleta russa da genética e da tolice dos que a cercavam. Ele a via como uma luz incandescente — sempre chamando a atenção, fosse pelas suas palavras eloquente ou pelo ideal de pureza que representava, com uma atuação digna de um prêmio — enquanto os outros não passavam de meras mariposas, facilmente influenciados por suas veleidades, sempre disfarçadas sob sua voz doce e ingênua. 

— Para a festa privada de Elliot Harrington, é óbvio. — disse. — Noite de apostas. Você não gosta de jogos de azar.

— Oras, Jasper. — Madelyn inclinou a cabeça para o lado, divertida. — Apostas não são a única distração que há nos eventos de Elliott. Há coisas muito mais prazerosas que perder dinheiro.

— Mas…

— Eu vou com você. — interrompeu, envolvendo o braço do irmão com o seu. — Não se preocupe, ficará livre de mim assim que chegarmos.

O caminho até a residência de Harrington fora rápido e silencioso, enquanto Madelyn ocupava-se em garantir que o rouge em suas bochechas estava perfeito e os fios negros do cabelo alinhados. O trajeto era curto e poderia ser feito a pé, não fossem os larápios que espreitavam pelas ruas escuras de Londres. 

— Aqui estamos. — Jasper murmurou, oferecendo sua mão para que a irmã descesse da carruagem. — Que os céus sejam bondosos e ninguém repare em você num ambiente tão… decadente.

— Lorde Harrington não suporta fofoqueiros, querido irmão. — Acalmou-o, com passos firmes em direção ao servo que guardava a porta como um cão de guarda, portando uma lista extensa e uma pena exuberante. — Qualquer um que ousasse, não veria o próximo raiar do sol.

Lady de Loughrey e Marquês de Blandford.

O homem se curvou, em uma reverência, antes de riscar ambos os nomes com a tinta escura. Era um costume dos irmãos frequentar tais eventos e, daquela vez, não fora diferente: o corredor principal se encontrava abarrotado, contendo pelo menos um representante de cada uma das tribos de Londres. Para estar ali, apenas três requisitos eram necessários — discrição, uma rede de contatos valiosa, e disposição para se divertir. 

Antes que chegassem ao cômodo que acomodava diversas mesas largas e as mais diversas possibilidades de jogos, uma voz suave soou, embora Jasper não soubesse identificar sua dona: — Senhorita.

O pescoço de Madelyn se virou tão rápido, em resposta ao chamado, que ele não teve dúvidas de que a garota reconhecera aquele timbre: — Eu disse que se livraria logo de mim. 

Ela abriu um sorriso largo e desafiador, como se duvidasse dele: — Aproveite a sua… noite de apostas.

— Você… — começou, mas não foi capaz de deter a atenção da irmã.

— Evie. — Ela colocou a mão espalmada sobre o peito da garota loira que se apoiava no batente da porta, empurrando-a suavemente na direção do quarto. —, exatamente quem eu estava procurando.

Em resposta, a jovem simplesmente sorriu, pondo a sua própria mão sobre a dela e, com um olhar sugestivo, fechou a porta atrás de si.

Jasper suspirou. Sentia-se terrível, não só como irmão, mas como um homem. Estaria falhando com suas obrigações por ser tão permissivo? Ele sabia que Madelyn não precisava que lhe fossem impostas regras, afinal, ela sempre tivera noção de quão longe poderia ir com seus hábitos devassos e, mais que isso, sempre soube bem o que a sociedade esperava dela. E o faria, sem hesitar. Casaria-se com Elliot Harrington no ano seguinte, mesmo que ele não sentisse apelo nenhum pelo que ela tinha a oferecer e — em troca de proteção, de uma vida confortável e, principalmente, de liberdade — ela o daria um herdeiro e a linhagem dos Harrington não morreria com ele, como o lorde temera em alguns de seus anos mais obscuros.

De uma das bandejas que flutuavam ao seu redor, carregadas por homens uniformizados, Jasper se serviu um copo de uísque, antes de decidir tomar um assento na mesa em que se realizava um jogo de Baccarat. Depois da décima derrota, apostou algumas fichas na banca, enquanto a maioria dos convidados preferiu pôr o dinheiro no jogador, na esperança de que este tivesse a mão mais forte. Enquanto o crupiê distribuía as cartas, ele pensou ter visto uma moça de aparência familiar sentada em outra mesa, com um punhado de cartas sobre o rosto, no formato de um leque. Imaginou que fosse o álcool fazendo truques e estripulias com sua mente, afinal, sempre fora um tanto imaginativo.

Pelo bem da irmã, esperava ter sido um delírio de sua mente. Ser flagrada ali, especialmente por uma dama nobre decerto não traria bem algum, ele imaginou.

— Vitória do jogador. — o crupiê anunciou, fazendo com que Jasper virasse o olhar para baixo a tempo de ver sua ficha ser retirada da mesa de jogo. 

Como era de se esperar, a pontuação do jogador somara um impressionante nove, enquanto a banca somara um mero quatro. Bem, Madelyn tinha razão. Ele nunca tivera sorte com jogos de azar. Nem em jogos como Baccarat, com regras simples e facilmente aprendidas, Jasper costumava conseguir mais que duas vitórias numa noite. Talvez com o álcool tivesse mais afinidade. Algumas doses de destilados, e poderia pintar musas ao lado de Elliott, despido da tradicional timidez que sempre o vestia.

— Pegue mais leve, Jasper. — Surgido de lugar nenhum, Harrington pousou a mão sobre suas costas com uma força desproporcional, fazendo-o se envergar para frente. — Não é porque é por conta da casa que você precisa secar o estoque.

— Céus, seja mais delicado. — disse, tossindo, enquanto o destilado queimava em sua garganta. 

— Este seria Brett Williams, meu caro, não eu.

— Direi à minha irmã que se case com ele então, ache outra esposa para você. — resmungou, terminando de beber a sua dose.

— Você não faria isso. — Sorriu, apoiando uma das mãos sobre as costas do marquês e, com a outra, puxando o seu braço para que deixasse o assento de couro e o seguisse. — Vamos. Aqui não é para você, é um péssimo apostador.

O mundo parecia girar mais rápido e mais lentamente, em uma mistura confusa de letargia e euforia. Ele não saberia refazer o caminho pelo qual Elliot o arrastou — todos os quadros de pintores ilustres e tapetes vibrantes passaram pelo marquês como um borrão colorido, embora conhecesse os autores de um trabalho tão reputado —, mas sabia que era ali que o homem pintava a maior parte de suas obras. Era a primeira vez que a sala não estava trancada durante suas festas.

— É uma boa distração. — Ele acenou na direção das mulheres debruçadas, uma sobre as outras, deitadas em cima de uma espécie de mesa de centro maciça. Ao redor delas, nove cavaletes, cada um ocupado por um nobre com delírios de grandeza, enquanto se julgava o melhor artista do salão. Exceto pelo décimo quadro, em seu vazio infinito e perfeito. — Melhor que as bebidas, garanto.

Jasper sorriu. Sentia-se melhor ali, que pensando no dinheiro que perdera em suas partidas de Baccarat, Hazard e, em especial, Basset — este último, vencido pela mulher que agora reconhecia como uma das convidadas de algum dos inúmeros bailes aos quais comparecera durante a semana e — embora o nome da moça ainda estivesse enevoado em sua mente, ele não conseguia se esquecer da quantia exorbitante de libras que conseguira tomar dele.

— Depois do esforço que fiz para arrastar você até aqui, sua irmã deve-me ao menos três ou quatro herdeiros. — Harrington gargalhou, com tapinhas nas costas de Jasper. — Bem, divirta-se enquanto procuro por Brett. Não faça nada que eu não faria, Senhor de Loughrey.

— Não será um problema, afinal, não há muitas coisas que você não faria. — O marquês sorriu, enquanto o primeiro traço suave marcava a tela. Ainda abstrato, mas confiante.

— Não faça nada que o Sr. Williams não faria, então! — retrucou, com uma expressão divertida. — Brett é um rapaz recatado, você sabe.

— Contanto que não esteja com você…

— Ah, cale a boca e pinte a droga do quadro! — Elliot reclamou, apoiando-se na parede cor de creme que se estendia atrás dos dois, acompanhando o formato circular da mesa de centro, enquanto o homem de cabelos castanhos ria.

— Pode ir. Consigo me virar sozinho.

— Tudo bem. — Ele apoiou a mão no ombro de Jasper, apertando-o suavemente, antes de deixá-lo sozinho.

As mulheres, cujas curvas começavam a tomar forma no quadro branco, apesar de belas, não satisfaziam o artista. O homem as amava, apreciava seus corpos e sensibilidade, suas mentes aguçadas e elegância. Era necessária muita habilidade para viver em um mundo como aquele, que as oferecia tão pouco, mas reivindicava tudo.

No entanto, era a natureza que era amada pelo artista. A pureza de um passarinho, o seu doce cantar. Era ali que se encontrava a verdadeira inocência, não a compelida pelos homens em seu desejo cego de controle. Infelizmente, a escuridão absoluta que engolira os jardins o impediam de contentar o mestre dentro de si.

Jasper se afastou da tela, levantando o pincel apenas para perceber que as linhas que pareciam retas e precisas, na verdade, eram manchas e borrões. Uma mistura de cores que não parecia fazer sentido. Ele tentou de novo, mas suas mãos mal pareciam suas, enquanto seus traços apareciam a polegadas de distância de onde pensara tê-los feito.

— Droga. — reclamou, largando os pincéis e esfregando os olhos. — Você é um incompetente, Jasper.

— Eu gostei. — Ele ouviu uma voz feminina atrás de si, virando-se para ver o seu rosto.
Baixa, cabelos castanho-claros e olhos verdes. Verdes como esmeraldas. Lembravam-lhe de alguém por quem ele tinha muito apreço. Jasper soltou o pincel, maravilhado pelas suas feições voláteis, rapidamente tornando-se aquelas que ele mais gostaria de ver.

Ele se levantou, envolvendo o rosto dela, com as mãos em formato de concha: — Eu gosto dos seus olhos, eles são… tão… tão verdes.

O marquês a segurava com tanta delicadeza que seus dedos quase não tocavam a pele da moça, mais parecidos com o roçar de uma pena. Como se temesse quebrá-la, se não fosse cuidadoso o suficiente.

— Gosta da cor deles, meu lorde? — Ela se aproximou, encarando-o intensamente, enquanto um sorriso sugestivo formava-se no canto de sua boca.

— Sim, sim! Mas aprecio muito os castanhos, também… — Jasper sorriu, prendendo o cabelo da garota atrás da orelha. — Os dois juntos, principalmente…

— Uma combinação e tanto. — disse, encurtando a distância entre os seus lábios e os dele. — Não creio que encontre uma tão singular quanto essa em Londres.

Ela o lembrava de alguém, mas quem… Ela não era dele, e ele não era dela… ainda? Seus pensamentos andavam confusos, assim como seus pés. Se a moça de seus pensamentos, se é que ela existia, não podia ser sua… Talvez aquela à sua frente pudesse…

— É… não… — Ele coçou a cabeça, pensativo, mas sua resolução não tardou a vir. — Você tem razão. Melhor dois peixes a voar que… um a nadar.

— Você quis dizer… Ah, dane-se.

Beijou-o. 

Sem cerimônias ou anúncios, ela avançou, passando os dedos pelos cabelos ondulados do nobre. Jasper a puxou pela cintura, ignorante dos olhares sobre eles. Consciente apenas do desejo de seu eu sóbrio de ter a coragem para tomar iniciativas. Para admitir que apenas uma dança não era o suficiente. Quis, com o encontro de seus lábios, roubar a confiança dela para si.

— Vamos para um lugar mais calmo.

Ela riu, afagando-lhe o rosto. Um homem bonito como ele nunca ficava sozinho por muito tempo em festas como essa. Rapidamente, a garota o conduziu até o corredor principal, no entanto — antes que eles conseguissem se esconder em um, das dezenas de quartos contidos na propriedade — uma voz familiar soou, fazendo com que a cabeça dele doesse.

— Caramba, Jasper. Você não precisa beber como se o álcool do mundo fosse acabar, pelo amor de Deus. 

“Ele vem comigo”. Ela disse para a garota dos olhos bonitos, envolvendo a mão dele com a sua, levando-o para longe de sua dama.

— Madelyn, você não pode…!

— Claro que eu posso, seu bêbado destabocado. — reclamou, rebocando-o para o quarto mais próximo. — Você precisa beber mais devagar. Por favor.

— Eu é que deveria mandar em você! — balbuciou, inconformado.

— Pobrezinho, está delirando. — Ela lançou um olhar para a garota loira, que ainda a acompanhava. Era a primeira vez que o marquês a notava no quarto, enquanto ria, com o batom visivelmente borrado. Ela já tivera a sua noite de núpcias, era óbvio que não se importaria agora em arruinar a dele. 

— Espero que isso não tenha sido ideia de Elliot. — murmurou. — Evie… será que você poderia…?

— Claro. — Beijou suavemente o seu pescoço, abraçando-a por trás. — Pode me pedir qualquer coisa. 

— Que tal… não me distrair? Ou não conseguirei said daqui. — Madelyn riu. — Vigie-o, enquanto pego um copo d’água. O pobre coitado deve ter mais álcool que sangue nas veias.

— Você. Evie, eu vou sair dessa droga de quarto e vou ficar sozinho. Se você me seguir, eu…

— Pode ir. Adiós. — ela acenou com a mão, em despedida.

Ele apertou os olhos, mas a garota simplesmente deu de ombros, deitando-se na poltrona de forma desleixada. Ótimo. Jasper se levantou, tropeçando nos próprios pés assim que tentou dar o primeiro passo. Inconscientemente, virou-se para a loira, mas ela não ria dele. Sequer parecia notá-lo. Ele bufou, saindo do quarto com passos pesados e pouco equilibrados. Precisava de ar, de ficar sozinho. Em qualquer lugar, qualquer lugar.

Abriu uma, duas, três portas. Em nenhuma delas encontrou o silêncio que tanto almejava, até que a escuridão em uma das salas chamou sua atenção. A cada passo, aproximava-se de algo que não parecia mais uma porta. Ao invés disso, uma sacada. Rezou para que estivesse vazia e correu em sua direção, como um navegador perdido em direção a um farol. Mas, assim como os outros, o lugar estava ocupado.

— Senhorita, o que está fazendo aqui? — deixou escapar tão rápido, que sequer tivera tempo para pensar. 

— O que estou fazendo? — repetiu, com desdém. — Não esperava encontrar tipos como o seu, aqui. Meu lugar é onde eu quiser, muito obrigada pela preocupação.

— Eu sinto muito. Não foi a minha intenção.

— Tudo bem, eu… — Ela tragou profundamente. — Só estou irritada com meus irmãos, você não merecia isso. 

— E você, o que está fazendo aqui?

— Fugindo de… pessoas. Precisava tomar um ar. — Ele gargalhou, apoiando-se no beiral da sacada. — Acho que estou meio bêbado, na verdade.

— Parece-me bem bêbado, na verdade. — retrucou, franzindo a testa, será que ele estava bem?

— Às vezes eu acho que nascemos ao contrário. — Jasper murmurou, com uma semblante apreensivo em seu rosto e uma porção razoável de culpa em seu olhar. 

— De quem você está falando? — A garota tragou o cigarro com toda a força de seus pulmões, oferecendo-lhe em seguida, o que ele negou. 

— Falo da minha irmã. — disse. — Ela já tem a sua vida inteira planejada, enquanto eu… bem, sinto-me um fracassado.

— Bem, todas nós planejamos, não há nada de especial nisso. São os homens que tem o privilégio de estar em dúvida, podem fazer o que quiserem e quando quiserem.

Ela tentou reconfortá-lo, incerta se deveria ou se poderia pôr sua mão sobre as costas dele. A garota se inclinou, esticando o braço uma ou duas vezes enquanto ele se debruçava sobre a sacada, mas decidiu que não seria uma boa ideia, temendo que ele a entendesse mal.

— Como, por exemplo, os meus irmãos. Foram eles que me ensinaram a jogar cartas, no entanto, parecem-me um tanto… arrependidos agora. — bufou. — Estou certa que prefeririam me ver trancada em casa, bordando enxovais. Especialmente o mais velho, Hikaru, como se ter sido o primogênito o desse algum direito sobre mim.

— Acho que não preciso mais perguntar qual o motivo de sua chateação. — Jasper tentou rir, mas o som deixou seus lábios fraco e débil.

— E a sua irmã, onde está?

— Espero que tenha voltado para seu leito de rosas com sabe-se lá quem. — reclamou, esfregando as têmporas. — Talvez eu devesse me inspirar mais nos seus irmãos, mostrar um pouco mais de rigidez. A garota não tem rédeas.

— Ah, por favor, não. — pediu, tocando seu braço suavemente. Jasper se assustou ao sentir a pele da garota sobre a sua, mas se conteve. — Ao menos uma de nós tem que se divertir. A propósito, meu nome é Hanabi Westminster. 

— Chamo-me Jasper de Loughrey. — Finalmente, o rapaz ergueu o olhar para ela. — Então, senhorita Westminster, você também aprecia esse tipo de divertimento?

— Eu prefiro as cartas aos… quartos. — Ela sorriu do próprio trocadilho ridículo. — Não arriscaria a minha reputação por relacionamentos breves e insignificantes, mas admiro qualquer mulher que tenha coragem para fazê-lo. 

Ela deu uma longa tragada, abrindo um sorriso largo enquanto olhava para o horizonte: — A minha revolução seria usar calças.

— Uau. — Ele riu, levantando a cabeça. — Não consigo imaginar uma dama de calças. Talvez minha imaginação seja muito limitada.

— Pensei que fosse um artista, Marquês de Blandford. 

— Um artista em decadência, decerto. — Gargalhou, felizmente, ele tivera a sorte de nascer em uma família abastada e não precisar viver de sua arte. — Mas é fato que calças não combinam com a delicadeza feminina.

— Bem, neste ponto já não posso concordar com você. — respondeu, apoiando as costas contra o degrau, encarando Jasper. — Acho que conforto combina muito com a forma feminina. Odeio esses vestidos apertados.

— Talvez você tenha razão… quem sabe no próximo século. — O marquês riu, esquivando-se de uma possível discussão. Era fato que ele nunca usara um vestido e, portanto, não caberia a ele argumentar contra ou a favor de seu uso. — Mudando de assunto, que tal uma bebida?

— Eu adoraria, mas eu sugeriria que bebesse água a partir de agora.

Grande ideia. — Jasper revirou os olhos. Mais uma vez, a irmã apareceu onde não fora chamada. 

A jovem entregou-lhe a bebida, forçando-o a dar ao menos alguns goles, ao passo que Jasper se virou para ela com uma expressão atônita. Ele vira a garota loira com quem Madelyn havia sumido no início da noite há alguns minutos, mas esperava que estivesse apenas perambulando pelos corredores, tentando achá-lo num dos quartos.

— Evie me avisou que estava aqui. Sinto muito, mas você é um bêbado que precisa de supervisão. — Madelyn trocou o tom de reprovação que usara anteriormente por um reconfortante, esfregando as mãos suavemente nas costas do irmão, enquanto direcionava seu olhar para a garota que o acompanhava. — A senhorita é uma dama muito perspicaz, devo admitir.

— Ah, obrigada. É um prazer conhecê-la. — Hanabi sorriu, feliz em conhecer alguém que jamais poderia julgar seus desejos ou ambições. — Mas sou inglesa, não estrangeira.

— Nossa, você ainda se lembra disso… Não foi nada pessoal, mas sinto muito, de qualquer forma. — Ela sorriu apologeticamente. — Também é um prazer…

Mas Madelyn foi interrompida por um som gutural que reverberou desde os confins do abdômen de Jasper, até sua garganta. Escapando-lhe através de um jato alaranjado que misturava a maior parte dos petiscos oferecidos por Elliot no início da festa. A cachoeira malcheirosa atravessou o jardim como uma catarata, deixando para trás o marquês, apoiado no beiral como se parte de sua alma tivesse partido também. Oh, céus, ele só poderia esperar que não tivesse sido sobre a cabeça de alguém.

A jogatina no clube de cavalheiros de Anthony Hartridge poderia ser deveras perigosa caso não existissem regras rígidas em noites movimentadas. O dinheiro — e a consequente ganância — poderiam tornar-se uma faísca em um amontoado de pólvora, mas Hartridge era astuto o suficiente para criar um sistema que estimulasse apostas absurdas e reduzisse as chances de pancadaria em meio ao seu rico clube, inteiro mobiliado por mogno e outras peças tão ou mais nobres. Portanto, entre quantidades absurdas de bebida, cigarro e ópio, havia também espaço para funcionários sóbrios, como os músicos, mordomos e os advogados.

A mesma regra não se aplicava às meretrizes, que tinham acesso ao brandy e ao gim.

O fato é que já passava da meia noite e os jogos apenas começavam a ficar mais acirrados, embora o clube já tivesse esvaziado um pouco. Naquela noite, os clubes de cavalheiros e demais outras festas ferviam de gente, tanto que Caine não se surpreenderia caso alguns viessem direto de outras casas requintadas e com atrações deveras interessantes ou partissem para tais festas. Ouvira alguns cavalheiros ali dentro mencionarem Elliott Harrington e jogatinas imperdíveis, mas o pianista não ousava cavar o assunto mais a fundo e tampouco abriria a boca para revelar tal coisa a alguém. Sabia que não era adequado para seu bolso e muito menos sua classe, e fofocas sobre festas de um homem tão rico garantiriam que seus olhos jamais encontrassem de novo a luz do sol.

O clube de Hartdrige, o Prince Parlour, poderia ser menos discreto que certas festas privadas, mas ao menos possuía as famosas normas que garantiam a fama positiva do lugar. Para evitar apostas injustas ou promessas infundadas de crédito nos bancos, um trio de advogados redigia rapidamente contratos entre as partes envolvidas, garantindo que quaisquer acordos fossem fielmente cumpridos — ou então viriam juros, confisco e a completa falência de sua reputação na sociedade. Costumava ser um completo sucesso entre os cavalheiros, ainda que alguns perdessem propriedades ou até mesmo negócios. Os eventos especiais de jogatina eram sempre aguardados com ansiedade, tanto que o clube tornava-se páreo ao White’s e ao Brook’s em noites como aquela. No entanto, dinheiro não era um problema para aqueles homens e as apostas insanas pareciam somente estimulá-los a consumir mais e mais álcool enquanto aumentavam suas apostas.

Michael Caine ardia para sair daquele lugar.

Sua garganta estava seca, apesar de esvaziar seu copo d'água a cada instante. Não era especialmente complicado abster-se de bebidas fortes sob a vigilância atenta de Anthony — uma vez que era a regra para tocar piano ali e os mordomos não lhe servissem nada além de água e aperitivos — mas encarar a cor aveludada dos licores importados e sentir o aroma doce deles o deixava ansioso. Ele engoliu seco, buscando um cigarro no bolso interno do casaco. Fumar não iria ajudá-lo com a sensação de secura na boca, mas ao menos aliviaria a sensação enervante que se apossava do corpo.

Suas pausas pareciam demorar mais do que deveriam ao longo da noite.

Com o cigarro já em seus lábios e encostado com o ombro em uma coluna do recinto, Michael deu uma tragada funda e fechou os olhos ao expirar longamente a fumaça. Pensou na variedade de apostas que existiam dentro e fora da alta sociedade: corrida de cavalos, rinhas, dados e até mesmo apostas sobre quem se casaria com quem. Ele não julgava aqueles ali dentro do clube pelas apostas, na verdade. Eram outros como Frederik Strawell, com moedas o suficiente nos bolsos para pagar pelos vícios. Mas algo o incomodava um pouco e Michael suspeitava que fosse apenas inveja.

Após outro suspiro, ele sentiu uma mão tocar brevemente um de seus ombros.

— Você está se sentindo bem?

— Sim, só estou… — Segurou o cigarro com as pontas dos dedos, sem ainda prestar atenção em quem lhe chamara. — Abismado com a falta de apego destes nossos colegas às libras e xelins. 

Então deu de ombros, encarando o movimento das mesas: homens levantando-se somente para sentarem de novo, em meio a gritos animados e declarações de derrota; risos de meretrizes e o estouro de uma garrafa de champanhe.

— De fato, nunca fui atraído pela jogatina… Mas até gosto de assistir.

O pianista enfim se virou para o outro homem, ficando surpreso por ver um rosto conhecido.

— Oh, Henry Dashwood. Não o reconheci. 

— Não nos falamos há um bom tempo, senhor Caine. Mas é bom vê-lo de novo. — Sorriu. — Gostei do lenço azul. 

Michael não conseguiu manter a expressão séria em face daquele comentário, recordando-se do orgulho de Irina ao colocar o lenço em seu pescoço. Talvez depois contasse que recebeu um elogio à ela, para compensar um pouco de seus esforços em mantê-lo apresentável. No entanto, ele tinha certo apreço pela distância que sua face austera trazia e decidiu voltar a sua expressão inicial e respeitosa para lidar com o futuro Conde de Stormhold.

A questão é que Henry era deveras observador e havia notado cada nuance de seu rosto, mesmo que não soubesse exatamente suas razões. E Michael estava bem ciente de que Henry achava graça da seriedade dele.

— Sabe… — Ele se apoiou melhor na bengala. — Me impressiona sua amizade com Frederik.

Michael deu uma leve tragada no cigarro outra vez, concordando que os dois eram diferentes demais em humor, idade e aparência. Infelizmente, não pode segurar a acidez na voz:

— Me impressiona seu laço de sangue com ele, com todo o respeito. — disse, mas Henry não ficou impressionado com o questionamento e tampouco se ofendeu; o que era bom, pois não era intenção do pianista. Se forçou a ser mais agradável e, também movido por curiosidade vazia, investigou a razão dele estar ali em Londres. — Stormhold estava demasiado frio para o seu gosto?

— Frio e quietude raramente me incomodam. Frederik quis passar a temporada social onde havia mais movimento e me convenceu a vir junto.

O pianista quase revirou os olhos.

— Eu imagino como.

— Não se deixe enganar. — Henry estalou a língua e aceitou a oferta de um copo de brandy de um mordomo. — Conheço bem meu primo e sei que ele deseja que eu me case de novo para que eu fique em Stormhold e ele continue a bater asas por aí. Na realidade, — Deu um gole na bebida. — Pode até ser divertido assistir Frederik se desdobrar com planos para me apresentar debutantes. 

— E não se incomoda?

— Raramente. E posso até ter mudado de ideia em relação a minha solidão…

O pianista franziu a testa. Não era de seu feitio buscar os pormenores da sociedade e comentar sobre segredos nada secretos, porém aquele ponto chamou sua atenção. Havia brigado antes com Frederik — chegando até mesmo à agressão física — em decorrência do assunto Henry, debutantes e a herança de Stormhold. Saber agora que o próprio sabia dos planos do primo e agora tinha alguém em mente deixava-o, no mínimo, curioso. 

— Isso sim me impressiona. Quem seria a donzela?

Em meio aquele caos de fumaça de cigarros e charutos, Michael pôde ver os olhos de Henry Dashwood mudarem.

— Uma irlandesa chamada Aurora. Doce. Gentil. — Encarou o copo por um momento, desviando o rosto. — E um tanto pequena.

Ele sorriu de verdade, levando de novo o cigarro à boca. Não soube distinguir se era uma ironia grande já conhecer a dama, mas era uma coincidência absurda. Londres não era um vilarejo para tantas pessoas se esbarrarem, mas a cidade parecia conservar um humor peculiar em juntar casais. Michael poderia adicionar mais adjetivos àquela moça: jovem, inocente, delicada e uma soprano admirável. Cintilava uma aura pueril e bondosa que Michael nunca teve, mesmo em tenra idade, e que provavelmente jamais teria. 

Estava resoluto em ser amargo.  

— Um anjo. — Comentou, lembrando-se dela a cantar na igreja uma melodia popular de imigrantes. — Mas bem pode ser uma fada irlandesa.

Justamente! — Henry se empolgou, para em seguida se conter. — Mas peço seu silêncio, pois… não conversamos bem ainda, ainda que ela tenha captado minha atenção.

Michael quis soar o mais verdadeiro possível quando afirmou:

— Não deve se preocupar comigo. Apenas não deixe seu primo tomar muita liberdade com estes planos, huh? Não quero ninguém ferido.

— Experiente nos assuntos do coração, Caine?

O pianista balançou a cabeça, entretido com a conversa. Não se afligira com o álcool ao seu redor enquanto seus pensamentos desciam para pontos mais obscuros. Se era experiente? Talvez, se a dor contasse. Seu coração estava estilhaçado demais para alguém encontrar todas as peças e remenda-las no lugar.

— Sei de uma coisa ou outra. E agora devo voltar a tocar, se me dá licença.

Bateu de leve no ombro de Dashwood antes de apagar seu cigarro no cinzeiro mais próximo e retornar para o belo piano de cauda ao fundo do salão. Sashenka iria gostar do instrumento lustroso e escuro, mas ali não era lugar para uma menina.

Michael sentou-se e escolheu a próxima música. Em seu íntimo, duvidava que fizesse diferença para seu público alcoolizado e distraído, mas Hartridge orgulhava-se de selecionar o melhor público e as melhores atrações. Ele passou os olhos pelas partituras — mesmo tendo memorizado boa parte delas — e escolheu uma animada e deliciosamente repetitiva, a qual poderia estender por mais minutos. Depois optaria por algo diferente, quem sabe uma que já havia tocado no começo da noite.

E assim se passou mais uma hora. 

Notou que parte dos cavalheiros adormecera nos sofás, outros já haviam partido ou de bolsos vazios ou com as meretrizes. A parte restante seguia nas mesas, escolhendo o que jogar: loo, vingt-et-un, hazard, faro… Henry Dashwood, por sua vez, continuava a observar as partidas, visivelmente entretido, enquanto Michael esperava que Hartridge logo o dispensasse. Na dúvida, decidiu tirar uma nova pausa. Um mordomo cansado lhe ofereceu mais água e ele aceitou, fingindo com tristeza que o líquido incolor era gim.

Mas é claro que Michael Caine não seria deixado em paz em sua pura melancolia. Com um cigarro na boca e prestes a acendê-lo, uma voz mais velha chamou sua atenção:

— Você, rapaz. — Michael franziu a testa, incerto se o velho cavalheiro falava com ele. Seu rosto enganava um pouco, no entanto o pianista não tinha mais idade para ser um rapaz. — Precisamos de mais um integrante no whist.

Oh, céus. Aquele velho estava realmente falando com ele. Não parecia muito alterado, mas tinha o brilho de bebida forte em sua barba grisalha e aquela luz um tanto insana nos olhos, característica de apostadores afoitos. Não era ninguém menos do que Sir Nicholas Bloomfield, um baronete com pouca relevância na nobreza, mas com negócios variados e uma renda anual o suficiente para pouco se preocupar com a insignificância de seu título.

— Vamos, vamos. — Chamou-o de novo, com gestos expansivos. — Quero mais gente nessa mesa e você parece rápido com as mãos, sim? Será minha dupla.

Ele tirou o cigarro — ainda apagado — da boca e trocou um olhar rápido com Anthony Hartridge, que fumava um grosso charuto em uma poltrona.

— Se eu puder sair do meu posto…

— E desde quando você é soldado para ficar em seu posto? Diabos, não estamos na guerra. — Nicholas se aborreceu, virando mais um copo. — Anthony, coloque o rapaz nessa mesa agora.

O proprietário do clube de cavalheiros anuiu com um suspiro. Já era tarde e havia pouco a se fazer quando um cliente importante tinha desmandos tão simples de serem atendidos. Assim, logo Michael se juntou à mesa com Sir Nicholas e outros dois desconhecidos, além do último advogado naquele turno e o crupiê. Henry e Anthony se aproximaram. O que preocupava Michael eram os outros convidados: o conhaque, a garrafa de whisky irlandês, o licor doce. Tomou outro gole d 'água.

— Os cavalheiros conhecem as regras… — O crupiê começou. — Queremos um jogo limpo e todas as apostas são redigidas para que sejam devidamente cumpridas. Primeiro, a rodada de whist em duplas. Depois, para decidir o vencedor, uma partida de piquet. Alguma dúvida?

Ninguém se manifestou. Felizmente, o pianista conhecia aqueles jogos e poderia até afirmar que era deveras competente neles. Entretanto, achava perigoso jogar com o destino, de modo que a jogatina não era um de seus vícios.

— Estou sentindo a sorte nas pontas dos dedos, rapazes. — Sir Nicholas riu, exalando hálito da bebida forte e cigarro. A despeito de seus trejeitos alegres demais, Michael suspeitava que ele era mais inteligente do que sortudo, fato que justificava o monte de dinheiro ao seu lado da mesa. Ele riu e empurrou as moedas e notas, depois tirou um papel do bolso do colete. — Aqui vai minha soma durante essa noite… Mais o título dos meus negócios em St. James’s Street.

O advogado o parou por um breve momento.

— Sir Nicholas, tem certeza?

— Absoluta. E espero que meus companheiros sigam a tendência de mercado.

Os dois cavalheiros empurraram cada um a soma inteira de suas apostas, já o pianista sussurrou de maneira discreta para Anthony ao seu lado:

— Quanto devo apostar?

— O quanto tiver no bolso.

Era fácil e ele quase riu ao colocar três xelins na mesa. Já não tinha mais reservas e também não era sábio andar de madrugada com muito dinheiro no bolso, considerando que teria que voltar para a pensão a pé. E, se era obrigado a apostar por Hartridge, ele teria que cobrir seu prejuízo depois. Poderia talvez até depositar apenas um ou dois xelins, mas pensou em Irina Praskovia e aumentou sua aposta.

Embora isso fosse o oposto do pedido de manter o juízo durante a noite.

— Preparem-se, cavalheiros. São cinco rodadas e a primeira dupla que pontuar cinco vence. Vamos começar!

Enquanto o crupiê dava início ao jogo, dois cavalheiros aproximaram-se, interessados em desvendar o motivo para aquela partida, em específico, ter atraído a atenção de tantas pessoas.

— Um baile e você desapareceu. — O primeiro rapaz disse, seu rosto um tanto sério para o ambiente em que se encontrava, mas Salazar não podia evitar o misto de curiosidade e censura em seu olhar. — Achei que veria mais de você em Londres.

— Um baile e tanto. — O cavalheiro de cabelos cor de fogo, que passara algumas semanas longe da movimentação londrina, abriu um sorriso largo, permeado com um certo quê de maliciosidade. — No entanto, tive que partir para resolver alguns problemas… pessoais.

— A verdade é que você é um mulherengo, senhor Gallagher. — declarou, bebericando do seu copo de uísque. Não se tratava de um julgamento por parte de Salazar, uma vez que tal comportamento era comum entre certos amigos. Portanto, nada mais disse do que uma mera constatação, refletindo o quanto eram diferentes.

— Você poderia aprender uma coisa ou duas comigo… 

— Infelizmente, não há nada decente em seu repertório. — acusou, com uma gargalhada, ajeitando os próprios cabelos escuros em um gesto breve, pois parecia que existia sempre uma brisa determinada a bagunçá-los. 

Killian não pôde evitar perder-se numa gargalhada também, virando o seu próprio copo de uísque goela abaixo. Sentia falta dos eventos de Londres quando estava longe e, também, dos amigos que fizera ali. Alguns minutos depois, percebendo uma figura incomum debruçada sobre a mesa de jogos, o ruivo se inclinou na direção do crupiê:

— É impressão minha, ou o pianista está jogando com o cliente mais rico de Anthony?

— Ao que parece, sim.

— Bem, esse é um desfecho que eu gostaria de ver. — Ele sorriu, antes de apostar uma quantia razoável na vitória do pianista. Homens como ele sempre jogavam para ganhar.

Jogar whist em duplas era sempre interessante e Caine não tinha muito a perder, ainda que seus oponentes estivessem ávidos por colocar as mãos no monte de dinheiro de Bloomfield e no negócio qualquer que ele tinha em St. James's Street. O pianista não fazia ideia do que se tratava, mas parecia deveras valioso. Uma alfaiataria? Sapataria? Um maldito botequim? Depois que as cartas foram distribuídas pelo crupiê, a seriedade voltou à face de todos na mesa e Anthony Hartridge autorizou que lhe trouxessem um copo para o pianista, bem como um charuto adequado. Caine prosseguiu no jogo preferindo a água, ao mesmo tempo que divagava o quanto seu seu parceiro era feroz. Para sua surpresa, as cartas pareciam ter sido escolhidas especialmente para os dois, embora nem sempre conseguissem uma pontuação perfeita. 

No decorrer do jogo, o pianista começou a suar. Sua água tinha acabado e as outras bebidas jaziam no fim, as garrafas secas pelos outros jogadores concentrados demais nas cartas para ligar para o álcool no sangue. Ouviu-se mais de um murmúrio, mais de uma reclamação. E no fim da contagem dos pontos do crupiê, o resultado: Bloomfield e Caine haviam ganhado.

O velho cavalheiro riu e disse alguma coisa enquanto era parabenizado pelos outros dois que tinham perdido. Talvez as palavras gentis fossem ditas a contragosto, mas Michael não poderia distinguir: estava encarando demais a pilha de dinheiro a sua frente, vislumbrando a chance insana de ser dono de tudo aquilo.

Não, não podia ser verdade. Anthony Hartridge lhe daria os três xelins que perdeu e mais seu pagamento da noite, um pouco mais robusto pelo tempo transcorrido. 

Depois do advogado registrar o saldo negativo dos outros competidores, o crupiê deu os avisos finais da partida de piquet e distribuiu as cartas. Era hora de voltar a jogar e a partida prometia ser longa, tanto que Anthony tirou o charuto da boca e gritou para o mordomo:

— Tragam conhaque para os convidados!

Desta vez, Michael aceitou. Precisava tirar de si a esperança de que aquela fortuna seria sua e nada como o álcool para lhe deixar um pouco mais leve, um pouco mais triste e talvez confiante demais para um jogo de azar. Mesmo reconhecendo a tática de Sir Nicholas de descartar um pouco mais de sua mão nas rodadas iniciais — o que lhe garantia menos pontos no começo, mas poderia reservar cartas melhores para o final — o pianista escolhia ligeiro as suas jogadas. Bebeu, voltou a fumar, continuou a jogar. Vieram piques e repiques, um capot e ao fim, a contagem de pontos.

— Desgraçado, — Sir Nicholas riu, já Michael engolia seco. — Você é mesmo rápido com as mãos. 

— Eu…

— Para que fique claro a todos presentes, — O crupiê prosseguiu. — O vencedor é inegavelmente o cavalheiro aqui à direita. Parabéns pelo jogo limpo, agora o meu colega irá redigir o contrato para que as partes possam assinar.

A cabeça do pianista estava aérea, sem ser capaz de focar-se nos apertos amigáveis em seu ombro ou nas instruções breves do advogado à sua frente, pois uma única constatação martelava sua mente feito uma nota repetitiva e grave no pianoforte: Michael Caine havia ganhado a partida de piquet

E agora estava rico.

— Senhor Hartridge, — Sir Nicholas levantou-se, buscando o casaco escuro. Ainda ostentava aquele sorriso largo, com as bochechas avermelhadas pelo álcool e, quem sabe, aborrecidas pela perda. O humor em sua voz, porém, permanecia enquanto ele cumprimentava Anthony. — Eu ainda perderei minha fortuna neste inferno de clube.

— Há sempre dias de sorte, Sir Bloomfield.

Ardiloso. Vamos, quero assinar logo esse contrato como um cavalheiro.

Os termos eram sucintos, embora dentro dos limites legais, com o adicional de testemunhas e carimbos. Ao final do papel — nas duas vias do contrato — vieram as assinaturas em tinta preta, com a elegante caligrafia do baronete e a letra estranhamente trêmula do pianista. 

Michael repetiu a dose de conhaque mais duas vezes, mesmo que Henry Dashwood lhe alertasse para segurar seu ímpeto alcoólatra. Mas o que ele podia fazer? Nem mesmo os avisos de Dashwood pareciam reais. Nada daquela madrugada parecia real. Esperava acordar a qualquer instante na pensão, muito provavelmente ainda grogue pela bebida ou qualquer outra substância forte o suficiente para causar tamanho delírio.

Mas o cumprimento de mão firme de Sir Nicholas Bloomfield retirou quaisquer dúvidas acerca da veracidade da situação.

— Parabéns, rapaz. Você acaba de ganhar uma fortuna e mais o título da Bloomfield & Clove. Ou será que vai mudar para Caine & Clove?

As palavras não vieram à boca. Michael, tão acostumado a réplicas sagazes ou debochadas, apenas engoliu seco. Sim, decidira testar um pouco sua sorte naquela madrugada, mas… não contava que a sorte fosse sorrir tão largo para ele.

 


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Notas finais do capítulo

Morrendo de ansiedade pelos comentários de vocês, apesar da Shalashaska responder a maioria, também amo vocês, viu?!
Beijossss!!!

**Shaska falando aqui ** Enfimm, quero só tecer alguns comentários aqui sobre como a sociedade da Regência Britânica era bem movimentada no quesito jogatina. Tanto homens quanto mulheres jogavam! E, é claro, muita gente perdia dinheiro. Tecnicamente, eles se asseguravam que as posses de negócios permanecessem dentro da elite, mas já que Bridgerton é uma fanfic da realidade e aqui é uma fanfic da fanfic, por que não fantasiar um pouco? À propósito, foi terrível pesquisar sobre jogos da época. Não entendi nada das regras, só uma coisa o outra. As descrições, portanto, são bem mais sucintas nessa parte.

Um grande beijo ♥ Nos encontramos nos comentários!