Antes de cair, voar escrita por Jupiter vas Normandy


Capítulo 1
Único - Flechas e Raízes




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Havia bastante tempo que Hades era o Senhor do Submundo.

Para os deuses, isso significava muito. Séculos, milênios, eras. Sem sombra de dúvida, Hades conhecia seu reino como a palma de sua mão, e não havia nada no Mundo Inferior que pudesse surpreendê-lo. Mas ele não saberia dizer quando isso se tornou um tormento. No começo, o controle e a imposição lhe transmitiam apenas uma grande segurança; ali, era o senhor absoluto, inalcançável e temido por deuses e humanos. Agora ele vagueava por suas terras, quase como uma daquelas almas torturadas pelos arrependimentos do passado, perguntando-se quando seu próprio reino havia se tornado uma prisão, e quando ele deixara de ser governante e carcereiro para se tornar um penitente.

Ah, mas ele sabia quando… No íntimo, sabia. Todo o poder que ele pensava ter havia sido tomado dele com a velocidade do disparo de uma flecha. Ou talvez ele não tivesse assim tanto poder quanto pensava. Não quando seus próprios domínios tornavam-se sufocantes pela ausência de alguém com quem nunca trocara mais que olhares à distância nos campos verdejantes da superfície quando ocasionalmente deixava o Mundo Inferior.

Então, pela primeira vez em muito tempo, o Submundo presenteou o monarca com uma surpresa. Algo estava diferente, algo que ele não pôde definir de imediato. Uma aura completamente diferente da sua, e que, portanto, não podia pertencer ao seu reino.

— Quem está aí? – perguntou, aproximando-se de uma figura sentada nas rochas cavernosas, observando com curiosidade o Campo de Asfódelos. Antes da resposta, porém, Hades já a reconhecera. Não poderia não reconhecê-la, o sopro vívido e o espírito observador. A surpresa de vê-la em um lugar como aquele o impediu de medir suas palavras, então questionou: – O que faz aqui?

Perséfone olhou em sua direção, os lábios entreabertos em surpresa por tê-lo encontrado. Surpresa, apenas, não medo. Não era comum para Hades receber aquele olhar. Mesmo entre os deuses, poucos não o temiam. Ela se levantou, recebendo respeitosamente a presença do sombrio monarca.

— Perdão, meu senhor. Sei que não deveria estar aqui sem aviso – respondeu, calmamente, sustentando seu olhar.

— Não deveria. – Ela desviou o rosto, esperando. Hades pensou em mandá-la embora e dizer para que não voltasse. Era o que deveria fazer, se fosse esperto. Perséfone não era para ele, e tentar mudar isso seria um caminho tortuoso para ambos. Mas estava curioso. E também ávido pela conversa, embora não fosse admitir. A voz melodiosa que nunca ouvira antes era tão intrigante quanto a dona. Reconfortante, como o deslizar suave do orvalho nas folhas ao amanhecer, mas também possuía uma força oculta, como as raízes que irrompem a rocha sólida. – Como veio até aqui?

— Encontrei uma passagem nas montanhas.

— E… apenas entrou?

Ela abriu um sorriso leve, um pouco sem jeito.

— Eu precisava vir aqui.

Hades não sabia qual resposta esperava, mas certamente não era aquela. Sabia que Perséfone era jovem e, como todos, era curiosa, mas nunca a tomou por ingênua, mesmo que essa fosse a imagem que os outros tinham dela. Mesmo sempre distante, Hades enxergava algo por trás daquele olhar. Não se enganava pensando que poderia conhecê-la apenas por olhares trocados, mas certamente enxergava mais do que os demais deuses que conviviam com ela.

— Por quê?

Perséfone desviou o olhar para o Campo de Asfódelos em uma pausa pensativa, voltando a se sentar na terra árida.

— Ouvi algo… – confessou, na esperança de que ele a entendesse. – Um lamento, um sofrimento melancólico. É surpreendente o quanto a solidão pode ser ouvida de longe, não é?

Apesar de rodeada de deuses, Perséfone sabia o que era solidão, e não gostaria de deixar alguém passar por isso se pudesse fazer algo. Ainda que o olhar dela fosse direcionado às almas errantes, Hades teve a impressão de ser o verdadeiro alvo de seu comentário.

— Eu não sofro de melancolia alguma, jovem deusa. Eu sou o rei do mundo dos mortos.

— Então deve ser muito solitário.

A resposta imediata o surpreendeu. Perséfone ainda vagueava o olhar pelos campos, mas observou-lhe de esguelha, confirmando suas impressões.

— E você deve ser muito imprudente. Quem desceria ao submundo para consolar a morte? – Apesar da defensiva, Hades a imitou, sentando-se também, acompanhando a paisagem que ela tão atentamente observava.

— Ninguém… Os que mais precisam são sempre esquecidos.

— Veio apenas me insultar, Perséfone?

Ela ergueu uma sobrancelha, a ameaça de um sorriso desdenhoso que ela sabiamente conteve pairando em seu rosto.

— Como conseguiu tirar algum insulto das minhas palavras, senhor? Apenas disse que todos precisam ouvir e ser ouvidos de vez em quando.

— Eu sei. E acho extremamente insultante que me coloque no mesmo grupo que “todos”.

Perséfone não se conteve dessa vez, soltando um riso fraco em concordância.

— Entendi e peço perdão. Eu também não gostaria de ser colocada junto a “todos”.

— E quem seria tolo de cometer esse erro?

Perséfone sorriu, descendo o olhar para a terra onde seus dedos moviam-se timidamente, um único sinal de ansiedade diante do que realmente gostaria de perguntar.

— Por que nunca falou comigo? – Ela o encarou diretamente. – Sempre percebi seus olhares e esperei, mas nunca veio.

Pela primeira vez, Hades cometeu o pecado de desviar os olhos de Perséfone.

— Porque seria uma tortura para mim. Uma tortura deleitável, como agora. Tão perto e tão inalcançável…

Que artifício injusto este tramado por Afrodite e Eros… Poderiam tê-lo nas mãos da mesma forma ainda que o alvo de sua afeição fosse outro. Mas não se contentaram com isso apenas, queriam vê-lo sofrer. Por isso escolheram ela. Seu exato oposto. Alguém feito puramente de vida, pulsante e intensa, de modo que não havia nada em toda a terra estéril do Mundo Inferior que sequer o lembrasse de sua presença.

Assim pensava.

A grama macia sob suas mãos o fez voltar a atenção para Perséfone, que ainda mexia na terra sem prestar atenção ao que fazia, mas algumas flores haviam brotado onde antes não havia nada além da aridez da terra.

— Você diz inalcançável sem nunca sequer ter vindo em minha direção. Não sabia que duas flechas foram disparadas naquele dia?

— E você não sabia que as flechas de Eros são prenúncios de tragédias? É isso o que ele gosta de provocar. Elas voam alto e rápido, mas sempre caem ao final. Fomos escolhidos para sermos a queda um do outro, Perséfone.

— Ao menos antes de cair, iríamos voar. – Ela suspirou, frustrada. Perséfone desejava voar. Não falava apenas com relação aos dois, mas em todos os sentidos. Havia tanto dentro dela esperando para se libertar, mas era sempre cerceada. Um jardim para proteger suas flores frágeis, mas que impedia suas raízes fortes de espalharem-se livremente. Uma única pessoa parecia vê-la de outra forma, e mesmo ele estava tentando se afastar por medo do que poderia lhe causar. Ao contrário dos outros, Hades não a enxergava com a timidez das pequenas flores sobre a grama, mas com a ousadia que tinham de florescer mesmo nos lugares onde nada deveria nascer. Mesmo assim, ali estava ele, achando que tinha o direito de protegê-la das próprias escolhas. – Não faça isso. Não seja como todos. Eu também sou uma deusa, e não tenho medo de cair.

— Ouvir isso me atemoriza mais do que conforta.

Perséfone riu, mas não voltou a insistir, o que foi um alívio. Hades não era forte o bastante para negá-la o que quer que fosse.

— Acho melhor eu ir… – Ela falou, por fim. – Mas me permitirá voltar?

— Então além de ser imprudente o bastante para descer ao submundo por empatia, você ainda quer fazer isso outra vez? – questionou, curioso e, talvez, com uma ponta de diversão em sua voz.

— Nunca disse que vim por empatia. Eu também conheço a solidão. Mas, estranhamente, só a sinto quando rodeada pelos outros deuses. Aqui… – Ela fechou os olhos. – é tão silencioso e vazio que eu me sinto a única pessoa no mundo inteiro.

— Isso não é exatamente o que significa solidão?

Perséfone, ainda de olhos fechados, negou com a cabeça.

— Isso me permite… me ver como o centro de algo, mesmo que apenas da minha própria vida. Nem isso eu consigo sentir lá em cima.

Hades deveria dizer não. Dizer que ela não deveria voltar. Eles foram escolhidos para serem a queda um do outro, ele sabia. Era incontestável, tanto quanto a perenidade daquela terra estéril que governava. Ainda assim, seus dedos roçaram novamente a grama macia que não existia até minutos antes e Hades olhou para as tímidas flores que ela criara em um lugar onde nada era suposto nascer.

— Bom… Acho que você fez um pequeno jardim aqui, e ele é seu para voltar quando quiser. Esse lugar seria o mais precioso do mundo para mim se for capaz de lhe trazer alguma paz.

Talvez nada fosse tão incontestável. Talvez valesse a pena e eles pudessem contrariar o jogo de Eros e Afrodite. Talvez juntos pudessem voar cada vez mais alto, sem jamais cair.


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Notas finais do capítulo

Espero que tenham gostado da leitura. A fic é oneshot, portanto não terá outros capítulos. Até a próxima ♥