O que dizem de nós. escrita por Jupiter vas Normandy


Capítulo 6
Princesa dos Feiticeiros


Notas iniciais do capítulo

(Postei o capítulo na história errada, que vergonha kkkkk)
Boa leitura!
A música da vez é Croatian Rhapsody: https://www.youtube.com/watch?v=oa1R4gPtkzg



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Elyn não se aproximou do estrado no centro, mas subiu na mesa de um dos comerciantes, que não reclamou. Ele, assim como todos os outros, assistia à cena com uma atenção mortificada.

— Eu sou a Princesa Elyn de Ryioniss, e tenho certeza de que não estou morta – repetiu, encarando o cavaleiro. O cenho franzido e a hesitação mostravam que a revelação era uma surpresa até para ele, seja porque talvez acreditasse mesmo que Elyn tivesse sido assassinada, ou porque não esperava encontrá-la ali. Mas logo desfez as dúvidas, novamente cético.

— E pode provar?

Elyn revirou os olhos.

— Desculpe, não lembrei de pegar meus documentos quando fugimos. – Apesar de representar a Rainha Scylla, o cavaleiro não era importante, então Elyn virou o rosto para a multidão. – Escutem-me… Não se deixem levar para essa perseguição. Não se permitam arrastar para algo que só levará ao sofrimento de gente inocente, e que nem sequer tem uma razão, pois se baseia em um crime que não aconteceu!

— Gente inocente…? – Uma voz frágil murmurou na multidão, mas Elyn não conseguiu encontrar sua origem no mar de rostos. – Está falando de feiticeiros? Os malditos que levam embora nossas crianças, para nunca mais voltar? Eles levaram minha irmã… Eles não são inocentes.

— E eu jamais ousaria defender essas atrocidades. Mas o que acham que acontece com as crianças? De onde acha que surgem os feiticeiros? Contra quem vocês acham que vão lutar se aceitarem essa convocação? Os crimes cometidos contra a sua família são indefensáveis, mas a sua irmã foi levada porque era uma feiticeira, e você está sendo chamado para guerrear contra ela. Suas crianças não são culpadas de nenhum desses crimes, mas vocês estão sendo chamados para derramar o sangue delas! Ou acham que os soldados diferenciam um feiticeiro de outro?

— Vocês estão sendo chamados para impedir que eles continuem levando seus filhos para longe, para mostrar que os crimes dos feiticeiros não ficarão impunes. Alguém tire ela de lá! – O cavaleiro tentou retomar atenção, Elyn podia sentir o peso do julgamento e da dúvida em seu olhar.

Elyn esperou, mas os soldados apenas se aproximaram hesitantes, sem atravessar a multidão. As mãos nos cabos das espadas eram um alerta de que usariam violência, mas as lâminas permaneciam embainhadas. E na praça, ninguém se adiantou para alcançá-la. Eles estavam ouvindo. A energia que lhe atravessava era sedutora. Elyn sentiu a urgência eufórica de continuar falando. Via rostos céticos e desconfiados em qualquer direção, mas eles estavam lhe ouvindo. Mesmo que não acreditassem em nada do que dissesse, Elyn resolveu continuar. Porque se suas palavras pudessem plantar a dúvida mesmo que em apenas uma pessoa daquela aglomeração, valeria a pena.

— Se isso é verdade, por que iniciaram essa perseguição apenas com a morte do Príncipe Oizus? – Elyn insinuou, testando os limites. O cavaleiro vacilou por um instante, mas não avançou. Ela seguiu: – Os crimes cometidos contra crianças plebeias não valem o tempo dos cavaleiros? Agora um príncipe foi morto e a rainha espera que lutem pelo filho dela, quando nunca fizeram nada pelos filhos de vocês.

Terreno perigoso”, Elyn pensou, ouvindo os murmúrios, alguns rostos assentindo em concordância e outros em pura desconfiança. Seguir aquela linha podia facilmente inflamar a população ainda mais contra os feiticeiros, além da Coroa. Se o cavaleiro fosse esperto, faria aquelas palavras voltarem contra ela.

— Você disse que estamos perseguindo inocentes, mas parece reconhecer os crimes dos feiticeiros, não apenas o assassinato de Sua Alteza, mas também os raptos das crianças. E ainda insiste que não devemos persegui-los?

O cavaleiro era esperto.

As pessoas falavam umas com as outras. Sobrancelhas arqueadas, cenhos franzidos, sem saber em quem confiar.

— Não – respondeu, atravessando um rápido instante de dúvida. Os segundos lhe deram tempo para pensar. Se estavam ouvindo, que ouvissem a história toda. – O que eu estou dizendo é que muitos não podem pagar pelos crimes de alguns. E eu disse que vocês mentem sobre a causa, pois a morte do Príncipe Oizus não foi um desses crimes.

O cavaleiro esboçou desdém, mas Elyn não permitiu que falasse.

— Porque o príncipe não foi vítima de magia traiçoeira, estávamos nos defendendo. E até nisso vocês erraram: O feiticeiro não matou Oizus, eu matei! – continuou. A reação foi mais visível dessa vez. Arquejos de surpresa e revolta espalharam-se pela praça, e o som metálico de lâminas deixando suas bainhas, mas apesar da iminência de violência, ninguém se aproximou. Elyn começava a estranhar. – O príncipe me atacou por não aceitar que eu fugi para a torre do feiticeiro e escolhi ficar lá. O príncipe tentou me matar. O feiticeiro que estão acusando foi quem me defendeu. E fui eu, não ele, quem matou o príncipe.

— É melhor parar com as mentiras agora, moça. – Apesar da irritação, o cavaleiro tinha uma postura confiante. – Você se entregou dizendo esses absurdos. Espera que acreditemos mesmo nisso? – Ele riu, desdém e soberba em seu olhar. – Por que a Princesa de Ryioniss fugiria do castelo para ir viver com um feiticeiro?

— Porque sou uma feiticeira também. – Elyn segurou o pingente verde contra a palma, exibindo para todos a joia com seu leve brilho mágico. – E eu esperava encontrar um lugar onde isso não significasse nada. Mas acho que me enganei. Não existe lugar assim em Teris.

Deuses, o que estou fazendo?” Apesar de todos os alertas em se expor assim, Elyn sentia-se compelida a continuar. Sabia que aquilo era o certo. Dessa vez, até o cavaleiro puxou a espada, quebrando o torpor o suficiente para avançar alguns passos. Elyn não se moveu.

— Já chega disso! Como se revelar-se uma feiticeira desse credibilidade ao que falou. Agora tenho mais certeza de que é apenas uma mentirosa se passando pela princesa, sem respeito algum pela morte dela!

Elyn comprimiu os lábios, lançando-lhe um olhar aborrecido e condescendente. Como uma professora cansada de lidar com crianças teimosas.

— Escute-me, senhor. Independente de acreditar em mim ou não, eu sou Elyn de Ryioniss, e fugi com Arcaent, o feiticeiro, por minha própria vontade, e ainda que eu me torne Princesa de nada, não permitirei que continuem usando meu nome para promover uma guerra! Se insistem em perseguir os feiticeiros… Não, espere… – interrompeu-se, corrigindo-se imediatamente. – Se insistem em nos perseguir, arranjem outra desculpa para isso. Diga que nos perseguem porque nos odeiam, porque nos temem, ao menos seria mais honesto.

Seja qual fosse a causa da inércia dos soldados, ela havia passado. Elyn andou sobre as mesas dos comerciantes, mantendo-se distante deles, agora com as armas em riste, pulando para o chão ao final das mesas. As pessoas recuaram, abrindo caminho instintivamente. Princesa, assassina confessa e feiticeira, não era uma surpresa que ninguém quisesse ficar em seu caminho.

O cavaleiro, julgando que seus subordinados conseguiram silenciá-la e logo a prenderiam, voltou a proclamar o texto elaborado em nome da Rainha Scylla.

— Em razão da tragédia caída sobre o Príncipe Oizus e a Princesa Elyn, esperamos que…

— O senhor não me ouviu?! – Elyn gritou, atrevendo-se a subir no estrado em que o cavaleiro estava, o rosto erguido de forma desafiadora. A surpresa por ela ter se aproximado tanto o impediu de reagir. – Eu disse que meu nome não será usado por vocês!

.

Arcaent assistia, tão absorto pelo discurso quanto os outros.

À cavalo, ele alcançara a cidade de Nordalius só um pouco depois de Elyn. Desmontou, não querendo chamar atenção, e seguindo caminho adentro, encontrou a população envolvida na discussão de uma mulher com um cavaleiro de Prusvart.

Seu coração falhou uma batida.

Elyn.

Arcaent não poderia descrever o alívio que sentiu ao vê-la bem. Como se só então pudesse voltar a respirar. Instintivamente deu um passo em sua direção, mas algo o fez parar. Um ruído inaudível, uma energia imperceptível. Olhou ao redor, para todos aqueles olhares atentos. Alguma coisa estava acontecendo em plena vista, e Arcaent não iria intervir. Ouviu quando a mulher ao seu lado questionou Elyn sobre os raptos das crianças, ouviu quando o cavaleiro a acusou de ser indulgente com o assassinato de Oizus.

Acima de tudo, ouviu Elyn derrubar cada uma das acusações com a destreza de alguém que fora criada para governar. Naquele momento, Arcaent sentiu que tinha sorte de poder acompanhar alguém como ela.

Elyn falava sem esconder quem era e o que era. Isso o preocupou, percebendo os soldados, mas eles também não se aproximaram. Quando Elyn finalmente desceu das mesas, Arcaent sentiu aquela barreira esvair-se e tentou chegar até ela antes dos soldados, abrindo caminho entre as pessoas. Mas Elyn não estava deixando a praça. Ela subiu ao estrado, o desafio e orgulho brilhando através de sua postura. Arcaent aproximou-se.

— O senhor não me ouviu?! Eu disse que meu nome não será usado por vocês!

Arcaent parou, surpreso. As pessoas também estranharam, cochichando umas com as outras:

— O que ela disse? Que língua é essa?

Pelo olhar de Elyn, ela também só percebera que tinha usado a língua dos feiticeiros ao ouvir as próprias palavras. Um soldado deixou cair as folhas que seriam coladas nos murais, e Arcaent rapidamente estendeu a mão agarrando uma delas sobre o estrado. Todas tinham uma lacuna no mesmo local, de bordas escurecidas como se alguém tivesse aproximado o papel de uma vela acesa. A folha ainda soltava uma fina fumaça cinza quando Arcaent a pegou.

Era onde ficava o nome de Elyn.

A Princesa Elyn de Ryioniss havia sido apagada de todas aquelas convocações. Guerra alguma aconteceria em nome dela.

O soldado percebeu o mesmo ao recolher as folhas.

— Talvez ela seja mesmo a princesa… – sugeriu para o líder.

Arcaent ficou ainda mais impressionado quando o cavaleiro apontou para ela. Ele não tinha feito muito até então, pois apesar do aborrecimento, Elyn não tinha se mostrado uma ameaça de verdade, mas não podia permitir que a feiticeira continuasse livre depois de lançar um feitiço claramente sobre os soldados de Prusvart, seja lá qual fosse o resultado do feitiço. Finalmente convencido, o cavaleiro disse:

— Prendam a princesa… a princesa… – Ele franziu a testa, sem compreender. O nome que um segundo atrás estava em sua mente agora tinha desaparecido. Também não se importou muito. Se a princesa renegava ao reino de Ryioniss, não merecia nada além de desprezo de sua parte. – Prendam essa princesa dos feiticeiros.

Dessa vez, não houve hesitação. Elyn recuou, mas seria cercada no pequeno palco. Arcaent avançou, colocando-se entre ela e o soldado que se aproximava por suas costas, parando o caminho da espada com o cajado de metal, revidando instintivamente para forçá-lo a se afastar. Sua chegada os surpreendeu, o brilho mágico da joia no topo do cajado era um alerta silencioso, e os soldados olhavam de soslaio para o líder, esperando instruções. Agora eram dois feiticeiros. Ninguém queria arriscar se aproximar.

— Arcaent!

Elyn o envolveu em um abraço sereno, à despeito da posição de vulnerabilidade em que estariam se os soldados resolvessem atacar. Apesar da felicidade em reencontrá-lo ser genuína, o abraço não foi um descuido. Arcaent percebeu, no rosto das pessoas, que com aquele gesto espontâneo, tudo o que Elyn disse estava confirmado. O feitiço provara que ela era a princesa desaparecida, e agora o gesto provava que estava com o feiticeiro porque queria. Ninguém poderia correr com tanto afeto para os braços de alguém que tivesse lhe ameaçado.

Arcaent retribuiu com a mão livre, apertando-a contra ele.

— Que rainha Ryioniss perdeu – falou, baixo. A admiração sincera na voz a fez sorrir. – Ainda tem algo a dizer, ou podemos ir embora?

— Ah, não, com certeza podemos ir!

— Não os deixem sair! – O cavaleiro gritou, indo ele mesmo na direção do casal.

Arcaent fez os soldados recuarem e, segurando a mão de Elyn, os dois correram aproveitando a brecha. As pessoas comuns se dispersaram, abrindo caminho pelo instinto de se afastarem dos feiticeiros, e os que tentavam pará-los, soldados ou não, eram forçados a recuar para evitar a magia que os circundava. A vantagem da magia de Arcaent é que podia se defender sem atacar. Nem sempre sua magia era perigosa, só precisava assustá-los. Em um mundo onde feiticeiros eram tão malvistos, isso era fácil.

Elyn montou primeiro, agarrando as rédeas do cavalo, com Arcaent subindo logo atrás dela. Os soldados também estavam montando, eram persistentes.

— Deixa comigo, apenas nos mantenha em movimento – Arcaent falou, usando magia para evitar as flechas disparadas contra eles.

Elyn levou a orientação a sério. Guiava o cavalo ao máximo, enquanto Arcaent os defendia e enganava os sentidos dos soldados, confundindo-os em sua própria cidade. Inesperadamente, Elyn o ouviu rir.

— Finalmente aprendeu a se divertir? – insinuou.

Arcaent passou o braço em volta de sua cintura, agora que tinham os despistado e alcançado a estrada para fora de Nordalius. Ele respondeu:

— Acho que vamos ser a história da semana nessa cidade.

~*~

Com a lua brilhando alto e Nordalius deixada para trás, Elyn e Arcaent dividiam o mesmo manto grosso próximos ao fogo. O frio veio pior do que esperavam. Arcaent podia ver a dúvida no rosto de Elyn, ela sempre ficava em silêncio antes de perguntar algo, pensando na melhor forma de abordar um assunto. Daquela vez, no entanto, Elyn decidiu perguntar diretamente.

— Você sentiu algo hoje, na praça?

— Além de uma absurda admiração?

Ela sorriu.

— Sim, além disso… Você sentiu algo estranho? Tipo uma energia?

Arcaent assentiu.

— Se eu não tivesse certeza de que você precisa dessa joia, eu pensaria que você é uma surn. As pessoas, os soldados, você fez eles lhe ouvirem quando tudo o que queriam era atacá-la. Eu também tentei ir até você e não consegui. Tinha magia na sua voz, Rish. Você fez magia ressoar por aquele lugar inteiro. E transformou em um feitiço as palavras que disse para o cavaleiro.

— Mas eu não sou uma surn, então o que foi aquilo?

— Uma benção – ele respondeu calmamente.

Elyn buscou em sua memória. Os livros diziam que os deuses podiam emprestar poder às pessoas na forma de bênçãos, o que era extremamente incomum, mas acontecia. Mais raro ainda era entre pessoas como eles. Apenas uma deusa abençoava feiticeiros.

Iyrteran?

Arcaent concordou. Deusa do conhecimento e da magia, a própria matrona dos feiticeiros. Aquela que ensinara os humanos a usar uma magia que antes pertencia apenas às surnul, criando então os yrnul. Por isso, feiticeiros eram malvistos por deuses e humanos. O poder deles tinha sido roubado das bruxas.

Assim diziam as lendas. Elyn não acreditava em tudo que os livros contavam. Muitas coisas pareciam apenas fábulas infantis.

— Bênçãos de Iyrteran – Arcaent começou, ajeitando o manto sobre os ombros de Elyn – são essas habilidades específicas que podemos dominar com maestria mesmo sendo distintas da nossa inclinação natural.

— Como a sua magia de transporte.

— Isso. Não tem nada a ver com magia ilusionista, mas eu consigo usá-la bem. Porém, não devemos confiar nelas. Uma bênção é um “poder emprestado”, por assim dizer… Talvez não esteja sempre acessível, é melhor confiar no poder que é realmente seu. E você tem uma bênção de Discurso. Bênçãos são raras, então não sabemos bem os detalhes. Mas li que é uma habilidade mediadora impressionante. Eu, pelo menos, acho impressionante. É o tipo de habilidade que pode parar guerras sem derramar sangue.

— Eu não poderia parar uma guerra. As mentiras continuarão se espalhando e Prusvart não vai parar por minha causa. Só falei umas palavras para uma cidade pequena.

— E com certeza evitou que aquelas pessoas se voluntariassem para um massacre. Ninguém de Nordalius caçará os feiticeiros, ninguém de Nordalius morrerá combatendo feiticeiros. Você salvou pessoas dos dois lados.

— Você acha que as pessoas acreditaram em mim?

— Mesmo se apenas uma pessoa tiver acreditado, já seria uma pessoa a menos sendo enganada por mentiras. Uma pessoa a mais passando a verdade adiante. Quem sabe o que isso pode causar? O mundo é muito grande, Elyn. Não podemos mudá-lo por inteiro. Mudar o que conseguirmos para algumas pessoas é mais do que suficiente.


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Notas finais do capítulo

Pequeno glossário aqui rapidão. Surnul/Surn: bruxas; Yrnul/Yrn: feiticeiros. Só para lembrar mesmo hehe
Fiz uma playlist com todas as músicas da fic, incluindo as dos dois próximos capítulos: https://www.youtube.com/watch?v=kZm1x6s8STo&list=PLmQl3biTCj-nE1hopvkJNPHotycotBWBt
Eu coloquei na pasta do Pinterest duas imagens feitas pelo site artbreeder que se aproximam de como eu imagino os personagens: https://br.pinterest.com/jupelemaris/desarranjado/
Até o próximo capítulo! ♥