I'm awake (I'm alive) escrita por Martell


Capítulo 1
Capítulo Único


Notas iniciais do capítulo

Olá pessoas,

Essa fic é a minha primeira contribuição para o projeto incrível do November Hinny que está acontecendo durante esse mês! Depois de muito tempo voltei a escrever especialmente para isso e eu estou muito empolgada.

Espero que vocês gostem!



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Ginny Weasley  viveu uma longa e confortável vida – exatamente o que precisava após passar a sua adolescência lutando uma guerra e gastando a sua juventude se recuperando das cicatrizes deixadas por esta. Conseguiu o emprego dos seus sonhos, casou-se com o amor da sua vida, teve lindos filhos e netos e bisnetos.

Era o aniversário de 114 anos de Harry, seu marido, e haviam resolvido dar uma festa, mais por saberem que não teriam muito tempo – alguns bruxos tendiam a viver mais, outros menos, mas sentiam em seus ossos que estavam prontos para se juntar aos seus entes queridos no outro lado. Algo a fazia pensar que, mesmo que não partissem juntos, não esperaria muito pela chegada de Harry – depois de todos esses anos, não sabia mais como viver sem ele e vice-versa.

No fim do dia, despediu-se de todos os convidados, deu um beijo na testa de seu bisneto Lance, que havia escolhido morar com o casal Potter após sair de Hogwarts para ajudar no que fosse preciso, e, junto ao seu marido, se preparou para dormir.

Abraçaram-se em meio aos lençóis, pernas entrelaçadas, beijos castos trocados com delicadeza, nenhum parecia perto de conseguir dormir. Num momento de epifania entenderam, inexplicavelmente, que não chegariam mais a acordar. Fecharam os olhos com sorrisos serenos.

A última coisa que Ginny lembrava era a mão de Harry na sua, ambos deitados na cama que dividiram por quase 90 anos, em paz com o fato de que não tinham arrependimentos no fim da vida. Haviam pagado todas as penitências por seus pecados, chorado suas perdas, sarado feridas, perdoado inimigos, enterrado amigos, parentes e conhecidos. As injustiças dos primeiros anos de vida em nada se comparavam com a felicidade que foram as décadas seguintes.

E então, para seu choque, abriu os olhos em uma cena saída diretamente de seus pesadelos: estava na câmara secreta, nos braços de um muito jovem e igualmente petrificado Harry Potter.

Achou que estava sonhando, mas nunca sua mente havia conjurado tamanho detalhe, nem mesmo lembrava direito de tudo o que havia acontecido – o que ficara em sua memória fora o medo, por si e por Harry, a sensação de desespero que sempre acompanhava qualquer recordação de seu primeiro ano, a água congelante pesando em suas roupas e cabelo, o frio penetrando cada célula de seu corpo.

Harry, pálido e frágil como não via a quase um século, parecia estar tão abalado quanto se sentia – e isso era outro absurdo, afinal, a reação dele havia sido bem diferente. Olhos verdes assustados pareciam procurar algo no rosto de Ginny desesperadamente.

Impulsivamente, tocou a cicatriz que havia praticamente desaparecido com os anos. Não lembrava que era tão vívida, o quão difícil era não levar os olhos para o tecido irritado que deformava boa parte da testa do garoto que viria a se tornar seu marido.

Com isso, algo pareceu finalmente se encaixar na mente de Harry, e quando ele mencionou perder o almoço na casa de Albus, as lágrimas começaram a escorrer livremente no rosto de ambos. Aparentemente ou haviam desenvolvido a habilidade de compartilhar sonhos e alucinações ou estavam no passado.

Saíram da câmara secreta com a ajuda da fênix que nem mesmo lembrava o nome e mentiram de cara limpa para todos os outros. Seus soluços se intensificaram ao ver seus pais tão jovens e cheios de vida, Ron fora de um leito de hospital, o diretor muito mais excêntrico que o seu quadro fazia justiça. Harry, por outro lado, poderia ser confundido com uma estátua de mármore de tão rígido. Provavelmente esperava escapar para poder explodir em paz.

O mais rápido possível encontraram-se na sala precisa, um quarto no castelo que poderia se tornar aquilo que fosse necessário e transformara-se na sala de estar da primeira casa que moraram juntos, e discutiram tudo o que podiam até a exaustão. Decidiram encarar como se fosse uma segunda chance, onde poderiam fazer tudo da melhor maneira possível e evitar muitas mortes.

Os anos seguintes foram difíceis – os amigos que conheceram a vida toda eram apenas crianças, não mais as pessoas tinham uma grande conexão. Não mais lembravam em detalhes dos eventos marcantes da sua adolescência, nem sabiam se comportar da maneira que a idade aparente deles exigia. Depois de quase um século juntos, só conseguiam interagir um com um outro de maneira regular, e foi isso o que fizeram.

Focaram um no outro tão completamente que ninguém ficou surpreso quando anunciaram o relacionamento no baile de inverno do Torneio Tribruxo.

Prenderam Peter Pettigrew, salvaram Sirius e Cedric e Fred e todos os que foram possíveis. Eliminaram as Horcruxes o mais rápido que puderam, porém Voldemort ainda se reergueu e Harry morreu por sua varinha uma segunda vez, e mesmo assim o derrotou novamente.

Casaram-se assim que saíram de Hogwarts, ignorando todos os que diziam que estavam se precipitando – o que eles não sabiam é que já estavam casados a algo que se aproximava de 100 anos, então era apenas lógico que oficializassem assim que fosse possível. Harry foi atrás de uma especialização em defesa contra as artes das trevas e eventualmente virou professor da matéria, enquanto Ginny, mais uma vez, tornou-se jogadora de quadribol na liga profissional e depois assumiu o Três Vassouras, aproveitando que já morava em Hogsmeade para ficar perto do marido.

Viveram uma vida longa, mas tediosa. Visitaram todos os países possíveis, tiveram ainda mais filhos – e se hesitaram em dar os mesmos nomes que havia na vida anterior, não era como se alguém pudesse os julgar, mas quando seguraram o primeiro bebê nos braços, souberam que era James Sirius renascido. Alice Hermione e Arthur Rúbeus, seus filhos mais novos, eram gêmeos sorridentes e brincalhões.

Tinham bem menos amigos que antes, pois não haviam conseguido ultrapassar o sentimento de que algo estava errado, mas Harry ainda continuava próximo de Ron e Hermione e Ginny tinha Luna e Neville, logo não poderiam estar mais felizes.

No casamento de Fred com Lee Jordan, Ginny chorou como nunca havia feito, pelo menos não nessa vida. Harry ficou decepcionado que seu afilhado, Teddy, não fora concebido dessa vez, mas só em ver o sorriso de Remus quando estava com Sirius, sentia que havia valido a pena, ao menos em partes.

E então, mais uma vez, sabiam que a qualquer momento iriam morrer. Estavam velhos e prontos para descansar, finalmente. Deitaram-se sentindo que não mais se levantariam, sinceramente contentes com essa perspectiva.

Até que  abriram os olhos e estavam na câmara secreta. De novo.

Quis pensar que era apenas um sonho, mas o olhar resignado de Harry indicava que, de fato, essa seria a sua terceira vida. Novamente choraram e se reuniram para planejar o que iriam fazer, determinados a descobrir o que estava acontecendo. Talvez tivessem feito algo errado na segunda chance que ganharam e estavam ali para corrigir.

Antes mesmo de concluir o seu segundo ano, Ginny já estava exausta de Hogwarts, das matérias e das pessoas do castelo. Eliminaram as Horcruxes novamente e começaram a pesquisar sobre como se livrar da cicatriz de Harry sem precisar de todo o drama do assassinato nas mãos do seu inimigo profetizado, mas nada na biblioteca da escola foi útil. O resto do tempo que passavam entre as estantes era dedicado a entender o porquê de estarem renascendo e como parar. Passaram mais tempo dentro da biblioteca do que Hermione nas três vidas combinadas.

Dessa vez, Hermione e Ron não eram mais os melhores amigos de Harry, pois esse nem mesmo sabia como interagir com eles – e com nenhum dos colegas, na verdade. Ginny também se distanciou de boa parte dos amigos, ficando apenas com Luna, que sempre parecia saber mais sobre eles do que estava sendo dito.

Começaram a namorar oficialmente ainda mais cedo, Ginny com apenas 12 anos, mesmo não havendo nada carnal, já que não sentiam atração de fato por seus corpos infantis, mas era difícil não andar de mãos dadas pelos corredores ou se sentarem aconchegados nos sofás do salão comunal da Grifinória. Os Weasley não gostaram muito, mas ninguém interferiu – encarar Ginny, como ela estava, não parecia uma boa ideia e instintivamente todos sabiam disso.

A batalha definitiva foi no quarto ano, logo após Voldemort recuperar seu corpo com o mesmo ritual de sempre. Depois de invadir Gringotts, receber mais uma maldição da morte no peito não fora nada para Harry. Sem uma grande guerra, passaram os últimos anos focados na pesquisa infrutífera sobre reencarnação.

Harry comprou uma casa em Hogsmeade, a mesma da vida anterior, e começou a trabalhar na loja de doces, Honeydukes, assim que saiu da escola, enquanto Ginny cursava seu sétimo ano e escapava para vê-lo todo final de semana. Quando ela se formou, sumiram pelo mundo por anos, explorando o que ainda não haviam conhecido e revendo seus lugares favoritos.

Nessa vida não tiveram filhos, mas adotaram vários gatos e cachorros, e o contato com a família foi muito reduzido, até que eventualmente se isolaram em um belo chalé no norte da França, visitando os conhecidos em feriados e datas especiais. Mantinham-se com as escritas de Ginny e o dinheiro que Harry havia investido assim que tomara controle de sua conta.

Partiram abraçados, cercados por seus animais de estimação, pensando que talvez agora pudessem finalmente fazer a passagem. Mas foi  em vão, pois novamente estavam na câmara secreta e, sinceramente, Ginny não suportava mais acordar ensopada e tremendo de frio.

Resolveram, dessa vez, contar tudo para o Diretor Dumbledore. Visto como o bruxo mais poderoso vivo, era um homem extremamente inteligente e com recursos, independente do que poderiam sentir em relação a outros aspectos de sua personalidade.

Derrotaram Voldemort com uma facilidade absurda e focaram apenas em descobrir o que estava acontecendo com Harry e Ginny.

Decidiram se passar como prodígios e fizeram os exames de conclusão assim que foi possível, saindo de Hogwarts no quinto ano, alegando serem pupilos do diretor e que ele os guiaria pessoalmente – o que era verdade, mesmo que a supervisão fosse menos necessária do que acreditavam.

Nessa vida Ron e Hermione odiavam Harry, sem nenhuma justificativa além de motivos que apenas crianças imaturas poderiam criar – inveja, se fosse realmente ao fundo da questão. Mas a esse ponto, pouco o importava além da sua pesquisa e Ginny e entender se havia uma forma de parar esse ciclo. O único amigo que tiveram foi, incrivelmente, o diretor.

Essa vida acabou muito mais cedo, em uma viagem ao Egito, onde pretendiam ter acesso a documentos antigos que, em teoria, se relacionava com o que estavam vivendo. Mesmo com todos os anos de experiência, pouco conheciam sobre arte das trevas e não notaram a maldição que caiu sobre eles ao tocarem os papiros preservados.

Com 28 e 27 anos, respectivamente, Harry e Ginny morreram dentro de uma alcova escondida em Luxor, sem a serenidade encontrada em vidas anteriores. Por alguns segundos, antes de padecer, chegou a pensar que isso poderia afetar o fluxo que estavam encarando.

Sem sorte.  A câmara secreta era tão sombria quanto lembrava. As lágrimas de Ginny, dessa vez, foram todas de raiva.

Mas Harry, como sempre, estava ali. A abraçando, limpando o seu rosto, pronto para segurá-la e deixá-la desabar. Ele parecia tão enfurecido quanto. Após tudo o que passara, por que não poderia finalmente descansar?

Fora nessa vida que se envolveram, pela primeira vez, mas não a última, com arte das trevas. Não por vontade de se aprofundar nesse ramo da magia, mas nenhum livro tinha dado respostas para as suas perguntas. Desespero misturado com ressentimento os guiaram a sessão restrita, a biblioteca dos Black, a cantos obscuros que nunca haviam pensado em olhar.

A única coisa realmente boa que saiu dessa nova sede de conhecimento foi a descoberta de um ritual que poderia tirar o fragmento de Voldemort da cicatriz de Harry sem precisar matá-lo. Exigia sangue e sacrifício, mas o homem estava cansado de morrer e ela estava cansada de ver o marido nessa situação, então engoliram seus princípios e se submeteram a esse tipo de arte sombria.

Ginny se sentiu suja por semanas.

Nesse ponto, derrotar Voldemort era quase uma arte. Não demorou muito, nem foi tão difícil. Haviam aprendido a lidar com as restrições dos seus corpos infantis a algum tempo, então não era nada que chegasse a interferir no grande esquema das coisas.

Passaram por Hogwarts por pura formalidade, sem ligar muito para as classes e mesmo assim sendo destaque em todas as matérias – não era justo com os outros alunos, afinal, eles tinham décadas de conhecimento e anos repetindo esses mesmos feitiços, mas não era como se pudessem apenas sumir.

Se formaram no topo de suas respectivas turmas e abriram uma pequena loja onde vendiam artefatos enfeitiçados e quebravam maldições básicas; eram coisas simples que os mantinha financeiramente bem enquanto procuravam mais e mais conhecimento.

Não houve guerra, não nesses primeiros anos, não ligada a Voldemort, que estava no poço mais profundo do inferno, muito bem, obrigada. Eventualmente, outro bruxo das trevas se ergueu na Grã-Bretanha, entretanto, Harry e Ginny estavam tão absorvidos na pesquisa que desenvolviam e tão afundados nas artes mais sombrias que nem mesmo perceberam. Não até quase toda a família Weasley ser assassinada – e os dois nem mesmo lembravam que pureza de sangue ainda era relevante nessa sociedade. O resultado foi tão grotesco que até mesmo os partidários do terrorista ficaram envergonhados.

Essa foi a primeira vida em que Ginny se rendeu ao seu lado obscuro. Anos de ressentimento e raiva e desespero, junto com décadas rendida as artes das trevas – não foi surpresa para Harry que a sua esposa queria vingança e ele estava cansado e distraído demais para impedi-la.

O mais novo Lorde não teve nenhuma chance, seus comparsas menos ainda. Os responsáveis diretos sobre o massacre foram completamente obliterados.

Ginny chorou por semanas, pela família que perdera e pelo que havia se tornado. Nem mesmo Harry conseguia aplacar a dor e a culpa que estava sentindo, já que o próprio estava em uma situação similar. Charlie, um dos únicos Weasleys que sobrevivera além dela, Bill, Fleur e os seus filhos, desconfiava que tinham tido algo a ver com a punição dada – e havia reagido de maneira tão negativa que a empurrara ainda mais para o fundo do poço.

Quando Harry encontrou o corpo de Ginny no chão do banheiro, a única solução lógica fora se juntar a ela.

Dessa vez , nenhum dos dois ficou surpreso em se ver na câmara secreta.

Ginny e Harry ainda estavam muito abalados com os acontecimentos da última vida, então fora fácil passar por crianças assustadas com Tom Riddle e enganar os outros adultos.

Despacharam Voldemort assim que foi possível e focaram em se recuperar, mental e emocionalmente. Não fora simples, muito havia sido feito, visto, praticado. Mas uma coisa havia aprendido: não adiantava focar obsessivamente em buscar respostas que talvez nunca teriam e esquecer de viver, como vinham fazendo.

Nesse momento, aceitaram a probabilidade de que estar nesse ciclo era inevitável e deveriam tentar aproveitar da melhor maneira. Seria difícil, tão difícil que conseguia nem mesmo entender a gravidade, mas tinham um ao outro. Estava na hora de aproveitar as suas vidas.

E foi isso que fizera. Tentaram se conectar com seus antigos amigos e criaram novos, entraram em clubes e no time de quadribol, algo que não faziam desde a segunda vida. Cercaram-se de entes queridos, absorvendo a atenção positiva como esponjas. Mas no fundo, nunca era a mesma coisa. Essas pessoas eram diferentes das que amaram várias e várias vezes, pois suas experiências de vida eram outras.

Ao saírem de Hogwarts, Harry virou um mestre de poções e Ginny de transfiguração, trabalhando de maneira independente em suas lojas no Beco Diagonal. Casaram-se e tiveram filhos e netos e bisnetos.

Viajaram o mundo mais uma vez, até se fixarem em uma ilha da Grécia onde passavam as tardes vendo o mar cristalino e as noites dançando lentamente descalços pela casa.

Foi uma vida calma e gentil, cheia de amor e tranquilidade. Tudo o que precisavam após os eventos dramáticos de suas duas últimas reencarnações.

Quando sentiram que seu tempo estava no fim, hospedaram-se na casa de seu neto mais velho, Allister, e chamaram todos os que conheciam para uma grande comemoração. Harry se foi nessa mesma noite, no quarto em que iriam ficar por apenas mais um dia. Uma semana depois Ginny o seguiu, sentada em uma cadeira olhando o mar.

Ao acordar  novamente na câmara secreta, aceitou finalmente o seu destino.

Ali mesmo, no chão alagado, com Ron a poucos metros de distância, os dois decidiram fazer algo que nunca haviam feito antes: deixar Hogwarts para trás de maneira definitiva.

Encararam o diretor e a família Weasley, tomaram suas poções para recuperar a energia que todo o fiasco com o diário havia drenado e, debaixo da capa da invisibilidade, arrastaram-se pela passagem do terceiro andar, saindo na loja de doces e reaparecendo no ar úmido de Hogsmeade. Com as Horcruxes escondidas no castelo todas eliminadas – e isso incluía a da cicatriz de Harry, o sangue deixado no fundo da floresta proibida indicando o que haviam feito – não havia nada que os prendesse além de sentimentalismos.

Usaram todos os feitiços que haviam aprendido ao longo de suas vidas para se tornar impossíveis de rastrear e irreconhecíveis; esconderam-se na casa dos gritos enquanto preparavam uma poção que os envelheceriam anos o suficiente para ninguém os relacionar com os desaparecidos Harry Potter e Ginny Weasley. Era uma descoberta que Harry havia feito misturando seus conhecimentos como mestre de poções com o de rituais mais obscuros – e se ambos preferiam fingir que não estavam praticando ativamente arte das trevas, bem, não era como se alguém fosse descobrir.

Antes de desaparecerem completamente da Grã-Bretanha, derrotaram Voldemort pelo que parecia a vigésima vez. Não era porque iriam sumir da vida de seus entes queridos que iam deixá-los com um maníaco disposto a matá-los na primeira oportunidade.

Enviaram uma mensagem ao diretor que não precisaria mais se preocupar com a ameaça do Lorde das Trevas; o que ele faria sobre isso poderiam apenas imaginar.

Até se fixarem na Austrália, Ginny pensara que não conseguiriam escapar. Era quase irreal imaginar que havia abandonado sua família assim, sem mais nem menos, mas aquela não era realmente a sua família – tantas coisas haviam acontecido que nem conseguia mais definir quem era. Tantas variáveis haviam afetado as escolhas e os destinos e as lembranças haviam começado a se misturar em sua cabeça.

Harry. Essa era a sua família, o seu amor, tudo o que era constante em suas múltiplas existências. E ele estava ali, seus olhos verdes agora um azul acinzentado que lembrava Sirius, que provavelmente ainda estava preso com os dementadores, os cabelos negros bagunçados agora um loiro terroso parecido com o de Lupin, que nunca chegaram a conhecer nessa vida, mas que em tantas outras fora tão próximo quanto um pai.

Haviam mudado suas aparências permanentemente, adotado novos nomes, deixado tudo o que poderia os ligar a sua antiga identidade para trás. Abigail Graham era uma excêntrica bruxa que nunca havia frequentado Hogwarts, sendo ensinada junto a seu vizinho, Edward Jones, por seu guardião. Abby e Ed haviam se apaixonado e ido viver tranquilamente do outro lado do mundo.

Se os olhos de Abigail eram o mesmo tom de chocolate que os de Hermione e a cor de seu cabelo lembrava o loiro claro de Luna, ninguém precisava saber.

Trabalharam novamente vendendo produtos encantados e poções simples, ganhando uma clientela fiel. Não entraram em nenhuma área que poderia dar notoriedade, pois era disso que haviam fugido.

Ignoraram todas as notícias vindas da Europa e principalmente das ilhas britânicas, e logo os seus poucos amigos começaram a especular que estavam se escondendo de algo, mas todos eram gentis demais para mencionar o fato depois de ver a expressão no rosto do casal nas vezes em que foram questionados.

Casaram-se em uma ilha do pacífico cedida por William, um senhor que havia praticamente os adotado quando chegaram em Perth com alguns itens transfigurados e só. Seus padrinhos e madrinhas eram pessoas que haviam conhecido apenas em seu tempo na Austrália, sem nenhuma memória anterior atrelada a eles, o que tornava toda a coisa diferente e especial.

O pequeno Timothy Jones nasceu no dia 31 de outubro de 1998, era primavera e o sol suave entrava pelas janelas do quarto em que a família estava. Alguém comentou, enquanto lia o jornal, que fazia 17 anos desde a queda de Aquele-Que-Não-Deve-Ser-Nomeado na Inglaterra. Edward, com seus 26 anos, apenas sorriu para sua esposa.

A felicidade do casal foi interrompida quando, 10 anos depois, Abigail faleceu dando luz ao segundo filho do casal, um lindo menino chamado Richard. Todos viram Edward definhar diante da morte da esposa, mesmo assim criando os filhos o melhor que pode. Nunca se casou novamente, nem mesmo chegou a pensar em um relacionamento. Vivia apenas para as crianças e agradecia todos os dias por ter feito bons amigos que o ajudaram a cada passo.

A verdade era que Harry não conseguia viver sem Ginny, mas Harry Potter não existia a anos, e sim Edward Jones, que tinha dois filhos que dependiam dele. Seus últimos 20 anos foram miseráveis, os únicos momentos de alegria ligados diretamente a Tim ou Rick.

Ninguém ficou surpreso quando fez a passagem antes dos 60 anos, já que a quantidade de tristeza que exalava claramente não fora gentil com seu coração.

Quando  abriu os olhos na câmara secreta, com Ginny nos braços como não sentia há tantos anos, todas as suas lágrimas foram de alívio.

E quando ela sussurrou que havia demorado demais, apenas juntou sua boca a dela em um toque casto. Esperava que os meninos ficassem bem, perdendo os pais tão cedo, mas nem sabia se eles continuariam a existir sem a presença dele.

Ginny, por outro lado, era real. Era quente em seus braços, seus olhos vibrantes queimavam com o ardor de sempre. Seu rosto salpicado de sardas era tão, tão jovem, pálido da experiência de quase morte que Voldemort havia proporcionado.

Sua energia desaparecera. Apenas queria ficar abraçado com ela até o fim de sua vida, mas isso era impossível – estavam em um espaço secreto do castelo com a carcaça de um basilisco a alguns metros e um Weasley desesperado tentando chegar até eles.

A fênix, outra constante do cenário repetitivo, os observava com olhos atentos. Estava esperando para removê-los, como sempre, mas dessa vez – ou era a primeira vez que estava notando – algo em seu canto soava diferente.

Era possível, também, que estivesse delirando de cansaço e do alívio que era estar com Ginny novamente.

Alguma coisa dentro de si havia mudado. Passar 20 anos sozinho fora de uma dor imensurável, como se houvesse perdido uma parte vital de si; imaginava que perder a sua magia fosse algo semelhante. Não era uma experiência que pretendia repetir.

Nessa vida, Harry não estava disposto a criar laços novos – ou velhos, dependendo da maneira que pensasse. Pretendia estar ao lado de Ginny, nada além disso.

A mulher, por sua vez, entendia o sentimento e estava disposta a aceitar os desejos do marido. Não lembrava se ficara o esperando, mas algo dentro de si respondia a saudade dele com a mesma intensidade. Talvez tenha passado anos e anos no limbo enquanto ele cuidava de seus filhos, aguardando o momento em que poderia renascer junto a ele. Era impossível dizer e não estava disposta a testar a hipótese; o desconforto que sentia ao pensar em submeter-se a isso era impossível de colocar em palavras.

Harry orbitava Ginny como se ela fosse o sol. Todos comentavam, mas nenhum dos dois dava ouvidos, afinal, ninguém sabia o que haviam passado juntos até esse momento, e se ele queria acompanhar a sua esposa para todas as suas aulas, quem iria o impedir?

Quando Bill comentara que não sabia como Harry passava as férias de verão com a família dele em importunar Ginny, os dois suprimiram sorrisos secretos, mas não bem o suficiente. Mesmo assim, não conseguiram tirar deles a informação que não habitava o mesmo ambiente que os Dursleys desde a sua terceira vida e que encontraram todas as formas possíveis de se encontrar durante as semanas em que não acabava na casa dos Weasleys.

Os dois estavam se sufocando e sabiam disso. Era apenas tão fácil ficar ao lado da pessoa que mais amava e que o compreendia completamente, em todos os aspectos que conseguia pensar; Ginny o conhecia tão intimamente, entendia os seus humores e previa as suas reações. Ninguém conseguia se comparar.

Mais uma vez se casaram ao sair da escola e compraram uma casa em Godric’s Hollow ideal para um casal sem filhos, já que haviam decidido que crianças seriam uma distração que não precisavam no momento – e, secretamente, Harry ressentia não ter podido se juntar a Ginny imediatamente por causa de Tim e Rick.

A esposa dedicava seu tempo a escrever livros e publicar artigos remotamente no jornal local, enquanto Harry fazia tortas e doces por encomenda, profissões que não exigiam que saíssem de casa com frequência ou ficassem longe um do outro.

Qualquer pessoa que conhecia o casal Potter comentava o hábito estranho de só saírem juntos e o hábito de se isolarem da família e colegas completamente. Quase perderam o casamento de Ron com Parvati Patil simplesmente por não quererem interagir com o mundo exterior.

Ginny era o centro de seu pequeno universo, a magia que corria em suas veias. Não havia nada que pudesse ser mais importante que ela, mais significante que a mulher que escolhera passar todas as suas vidas.

Ao mesmo tempo, era possível ver que isso não era saudável e Harry Potter sempre foi o mestre em identificar hábitos danosos e não procurar solução para o problema. Ginny sentia o mesmo, era visível que estava feliz, mas não exatamente contente. Sabiam que estavam se sufocando e ignoraram os avisos, os conselhos, pois haviam escolhido isso.

Afinal, sabiam que sempre podiam tentar novamente.

Décadas depois, quando suas pernas estavam falhando e se tornava cada vez mais difícil se levantar da cama, sabia que o seu tempo estava contado. Gunny precisava de um dispositivo que monitorava os batimentos de seu coração e a cada dia parecia mais frágil. Partiriam juntos, como deveria ser.

E foi então que conversaram que, se tivessem mais uma chance, algo mudaria. A conversa fora dolorosa para os dois – Harry, que a iniciara, sabia da necessidade, Ginny, que sugerira o assunto em primeiro lugar, também.

Então, nos braços da mulher que amava, Harry Potter fechou os olhos pela oitava vez, sabendo o que aconteceria.

E não  estava enganado, pois quando os abriu, estava na Câmara Secreta, agarrado a Ginny em uma posição semelhante à que fora dormir na noite – vida – anterior.

Mais uma vez, após enfrentar toda a baboseira que sabiam de cor em relação ao fiasco com o basilisco e Tom Riddle, reuniram-se para confirmar se realmente seguiriam com o que pensaram. Não importava quantas vidas vivessem, eram Grifinórios em espírito, então decidiram assumir o desafio.

Nessa vida, não ficariam juntos. Nem como amigos ou amantes ou colegas de trabalho. Ginny Weasley e Harry Potter teriam vidas separadas, seguindo suas carreiras, encontrando novos amores, tentando aprender quem eram sem um ao outro. Uma ideia estranha, pensando nas circunstâncias, mas isso não importava se teriam mais uma vida juntos após essa.

Para separar-se totalmente dela, resolveu afastar-se de toda a família Weasley. Ron ficou furioso e machucado, mas essas coisas não afetavam Harry como antes. Fazia algumas vidas que não se aproximava do garoto e, sinceramente, quem sabe na vida seguinte resolveria tentar fazer a amizade funcionar novamente.

Começou a sair com pessoas da Lufa-Lufa e Corvinal, tendo muito mais amigos do que realmente teria se continuasse com Ron e, consequentemente, Hermione – não importava o quanto ele se importasse com os dois, eles tendiam a afastar as pessoas com suas personalidades abrasivas que escondiam as pessoas maravilhosas que realmente eram.

Ginny continuou com seus amigos de sempre, aproximando-se ainda mais de Luna.

Fingiam não se conhecer nos corredores, mesmo que a noite fechasse os olhos e apenas a lembrança dos longos cabelos ruivos derramados na pele clara o fizesse tremer. Sua vida sem ela não fazia muito sentido, mas esse fora um dos motivos que os incentivara a fazer o acordo; era quase um teste: era possível existir Harry Potter sem Ginny Weasley e vice-versa?

Saiu de Hogwarts primeiro de sua turma – mais uma vez, a mera presença de um ser que vivera tantas vidas tornava injusto para os outros alunos – capitão do time de quadribol da Grifinória, que Ginny nunca tentara entrar por sua causa, monitor-chefe e com tantos amigos e colegas e conhecidos que mal conseguia lembrar seus nomes.

Mesmo assim, sentia-se vazio. Era difícil lembrar que a última vez que interagira com o amor da sua vida fora para derrotar de vez Voldemort, algo que fizeram durante as férias do segundo para o terceiro anos e nem demandara muito tempo. Nesses momentos, lamentava que matar pedaços de espírito era tão fácil.

Continuou jogando quadribol, dessa vez profissionalmente. Tentava não pensar muito em Ginny e o que ela estaria fazendo, o que se tornava mais fácil com a rotina exaustiva que possuía. Não havia namorado ninguém até então, primeiro por ser um adulto em meio a crianças e era simplesmente repugnante se imaginar com um adolescente, mesmo que sua aparência física indicasse que tinham a mesma idade, e depois por não saber como se relacionar com alguém que não fosse Ginny.

E então vira no jornal o anúncio do casamento de Ginny Weasley e Cedric Diggory, um dos nomes políticos mais importantes do mundo bruxo.

Chorara por horas, mesmo sabendo que ambos haviam combinado isso desde o começo. Bebera, quebrara coisas como um adolescente hormonal com problemas de raiva. Depois, dormiu a ponto de perder o treino no dia seguinte e escutou o treinador gritar na sua cara sobre responsabilidade.

Mais calmo, apenas respirou fundo e fingiu não saber que provavelmente receberia um convite – ele e Cedric eram colegas em Hogwarts e estavam em bons termos, haviam perdido contato nos últimos anos, mas era impossível uma figura como Harry Potter, Menino-Que-Sobreviveu e jogador do time nacional da Inglaterra, não ser convidado para o evento do ano.

Permitiu-se, então, seguir em frente, mesmo que Ginny fosse o amor da sua vida e sempre seria. Nessa eles não se conheciam; na próxima, provavelmente voltariam a ser marido e mulher.

E foi assim que se encontrou indo ao casamento de Cedric nos braços de Blaise Zabini, ainda mais bonito em seus 30 e poucos anos e com uma habilidade única de fazer Harry focar toda a sua atenção apenas nele.

Foi estranho ver Ginny dizer “sim” para outra pessoa, mas menos doloroso do que achava que seria. Ela estava feliz, mas não radiante como era quando estavam juntos e, de maneira egoísta, isso o enchia de satisfação.

No casamento quebraram a regra de não se falarem. Enquanto Blaise se distraía com alguns contatos, resolveu se esconder em uma varanda para se acalmar. Foi ali que Ginny o encontrou, tão linda quando se lembrava, o branco do vestido relativamente simples se confundindo com a pele que sabia ser macia ao toque.

Conversaram pelo que pareciam horas, mas foram só alguns minutos. Prometeram estar juntos na próxima e em quantas vidas viessem após essa. Sussurraram os segredos mais óbvios – que se amavam, que estavam com saudade, que mesmo indo contra o combinado, continuavam acompanhando a vida um do ouro, que às vezes desejavam não ter seguido em frente com esse plano idiota – e também os realmente importantes – que Harry havia se permitido explorar sua bissexualidade pela primeira vez, que fora interessante conhecer novas pessoas, que, na medida do possível, estavam felizes.

E de fato estavam, mas não como sabiam que poderiam ser; felicidade para Harry era danças lentas ao som de baladas gregas ou o sol refletindo na sua esposa enquanto ela segurava o seu filho. Felicidade para Ginny era o cheiro da sua torta preferida em dias que não estava bem, mas não quisera falar, o som da risada rouca às três da manhã em meio a biblioteca vazia ou os braços fortes que a seguravam e guiavam e restringiam quando necessário.

Seguiram as suas vidas, separadamente. Harry soube que a única filha dos Diggory se chamava Emma e era uma menina adorável. Ginny e o marido apareceram no casamento Potter-Wood, rindo junto com os outros convidados que qualquer criança que eles adotassem seria fanática por quadribol. Oliver estava radiante em suas vestes e Harry mal podia acreditar que estava com uma das suas paixonites de infância.

Adotou um casal de gêmeos, Nádia e Kalil, e passou o resto de seus anos viajando junto ao marido e os filhos com o time que administravam juntos, Puddlemere United – e sim, fora um dos momentos mais felizes de sua vida ver o sorriso no rosto de Olly quando fora contratado como treinador e Harry o acompanhara como gerente administrativo.

Por ironia do destino, Harry e Ginny estavam na mesma festa que foi bombardeada por um grupo terrorista. Os dois estavam conversando trivialidades no evento do ministro recém eleito, observando Nádia Potter fazer papel de boba na frente de Emma Diggory, quando a explosão arrasou o salão.

Quando  abriu os olhos e estava na câmara secreta, lamentou por não chegar a conhecer a sua neta que estava para nascer em menos de um mês e por Nádia, que provavelmente não havia escapado.

E então sentiu a mão delicada de Ginny tocar o seu rosto e todos os seus pensamentos evaporaram quase que imediatamente. Sorrindo, encostou a testa na dela e apenas respiraram juntos, ignorando o canto da fênix e o barulho que Ron fazia nos túneis ecoando pela câmara.

Mesmo após todo esse tempo era difícil aceitar que estavam deixando coisas para trás – pessoas, vidas inteiras, o que haviam construído após anos. Não era simples, cortar os laços emocionais que haviam forjado. Apesar de tudo, amava Oliver e Nádia e Kalil e Zira, sua nora; eles seriam especiais, sempre, e doía saber que não chegaria a conhecê-los, não como antes. Tivera esse mesmo dilema tantas vezes, com pessoas quase constantes como Hermione e Luna, com seus filhos que abandonara, mesmo que contra a sua vontade. Netos, bisnetos, colegas de trabalho.

Não era fácil, mas tentava acreditar que havia aprendido a focar no que realmente fazia diferença. Guardava junto a si lembranças e momentos bons, absorvia o que era proveitoso, descartava rancores antigos que não faziam diferença a longo prazo.

E Ginny, sua constante, não o deixava se perder. Ao mesmo tempo âncora e farol, o prendendo ao presente e o guiando em rumo ao futuro. Sabia, também, que exercia função parecida. Dera sorte, se é que podia dizer algo do tipo, em ficar preso em um ciclo eterno junto a sua melhor amiga, alma gêmea, primeiro e mais importante amor.

Devia a ela os restos de sua sanidade, mas não era uma dívida que chegaria a pagar: era recíproco, assim como tudo que os envolvia.

Saíram da câmara juntos, quase simbolicamente representando a forma como passariam essa e todas as vidas que viessem pela frente. Encararam o diretor, choraram nos braços da família Weasley, sorriram para os colegas, entraram no expresso Hogwarts – juntos, primeiro como amigos, porém sempre mais.

Como de costume, Harry enfeitiçou os Dursleys para esquecerem de sua existência e Arabella Figg para pensar que continuava morando com os tios. As proteções cairiam mais cedo ou mais tarde, entretanto, de nada adiantava ficar ali, já que nunca mais conseguiria olhar para a casa no subúrbio impecável e chamá-la de lar. O desespero do diretor Dumbledore era sempre engraçado de ver.

O chalé que habitava em suas férias de verão era um canto que havia achado em uma de suas primeiras vidas, quando resolvera que não ficaria nem mais um segundo em seu inferno pessoal. Estava abandonado pelo que pareciam décadas e era no meio de uma floresta não particularmente convidativa, mas toda vez que colocava os olhos no casebre cheio de poeira algo reconfortante se remexia em seu peito.

Os feitiços eram fáceis e bem praticados, possíveis de se realizar por haver retirado o traço ligado à sua magia antes mesmo de sair de Hogwarts com um ritual não exatamente conhecido, também não considerado moralmente correto – havia deixado limitações como essas para trás há algumas vidas.

Enquanto Ginny viajava para o Egito com a família – uma das muitas constantes – Harry se ocupava em renovar a sua casa. E esse era um ponto importante, o chalé na floresta era seu espaço e de mais ninguém; isso incluía Ginny.

Tiveram inúmeras casas ao longo de seus anos juntos, mas no fim do dia, assim como A Toca era da ruiva, esse lugar era de Harry.

Resolveu seguir sua carreira acadêmica da melhor maneira possível, o que significava ter que entregar as atividades e deveres que normalmente teria preguiça de fazer, pois nessa vida o casal tinha uma ambição: iriam ser diretores de Hogwarts, qualquer um dos dois, e fazer com que ela se tornasse de fato a melhor escola de magia do mundo bruxo.

Derrotar Voldemort era tão simples, como se estivessem limpando a casa de uma infestação de insetos antes de finalmente começarem a trabalhar no que queriam.

Bateram recordes acadêmicos, criaram clubes para os outros alunos, participaram do time de quadribol, se tornaram monitores e eventualmente monitores-chefe. Harry conseguiu que McGonagall o aceitasse como aprendiz, assim ficando em Hogwarts por mais alguns anos, da mesma forma que Ginny continuou seus estudos avançados em runas antigas sob o olhar vigilante da professora Bathsheda Babbling.

Como era improvável que pudessem começar a lecionar na escola sendo aparentemente jovens e inexperientes, viajaram juntos encontrando novos mestres para os ensinar – e nunca o deixava de surpreender o quão pouco sabiam mesmo após tanto tempo. Anos depois, voltaram como assistentes das professoras e eventualmente assumiram os postos de transfiguração e runas antigas.

Fora uma vida calma, em comparação. Estudaram, fizeram amigos, trabalharam juntos e viveram juntos. Não tiveram filhos, já que racionalizaram que uma escola cheia de crianças era o suficiente.

Revolucionaram a educação, assim como queriam. Ginny virou diretora quando o tempo foi propício e, um passo de cada vez, implementaram assuntos novos e aumentaram o número de professores, investiram suas próprias economias pessoais para garantir que as mudanças fossem possíveis. Trabalharam noite e dia para que nenhuma criança ficasse para trás ou continuasse em uma situação desfavorável. O senso de orgulho no fim do dia valia a pena cada esforço.

Foi a vida mais longa até então, confortável até certo ponto e chata. Completamente entediante. Nem mesmo o novo gosto por aprender e mudar o mundo através da educação apelava para o senso de aventura que haviam cultivado em todos esses anos.

E tudo o que havia trabalhado para construir se foi quando abriu os olhos na câmara secreta novamente.

Estava exausto, completamente drenado de toda as suas energias. De que adiantava colocar novos desafios se quando partisse tudo desapareceria como um sonho febril?

Ginny estava resignada e ele apenas tão cansado que viveram uma vida apática. A única coisa boa e importante que tinham era um ao outro e, mais uma vez, foi apenas nisso que se focaram. E foi aí que cometeram o erro de esquecer, novamente, o mundo que os rodeava.

A notícia de que Sirius tivera a sua alma sugada pelos dementadores foi como um choque de realidade. E mesmo assim não fizeram nada, preferiram passar os dias e as noites juntos, andando pelos corredores do castelo, abraçados nos sofás do salão comunal, Ginny escapando todas as noites para a cama de Harry, pois nenhum conseguia dormir em paz sem a presença do outro.

No grande esquema das coisas, do que adiantava lamentar por mais uma morte? Sirius já havia morrido tantas vezes.

E aí veio o Torneio Tribruxo em que foi forçado a participar, pois não haviam ligado para a ameaça de Voldemort. E Cedric morreu, já que Harry nem mesmo tentou chegar perto da taça e o lufano era, aparentemente, descartável. Não que alguém pudesse confirmar a morte do garoto, mas Harry e Ginny sabiam, sabiam do que poderia acontecer e não fizeram nada.

Cada morte que poderia ter sido evitada era um peso que não queria carregar, mas como não o faria se tinha informações e meios de impedir essas tragédias?

Fora Ginny, como sempre, que o despertara para o que estavam fazendo. Não precisavam ser heróis, nada disso, mas sabiam como eliminar o Lorde das Trevas e não o fizeram; essa escolha havia custado um garoto de nem 18 anos o seu futuro.

E foi nesse momento em que Harry, de fato, surtou. Nunca estivera bem, não de verdade, até mesmo nas vidas mais calmas e tediosas tinha dúvidas e ressentimentos que fingia não absorver, que ignorava pois não podia se permitir quebrar. Quem iria recolher os seus fragmentos quando finalmente chegasse ao seu limite?

A resposta, como para quase tudo em sua vida, era Ginny.

Ela o segurou enquanto chorava por dias, por todos os amigos que deixara para trás, por todos os amores que partiram seu coração simplesmente por não existirem na nova realidade que foram jogados. Ela o guiou para cama todas as noites, o apertando em seus braços, acalmou os seus pesadelos, perdoou os seus erros.

E assim que conseguiu levantar da cama sem ser derrubado pelo peso da culpa que o consumia, eliminou Voldemort novamente, numa batalha mais épica do que o necessário no Ministério da Magia; basicamente só pelo drama e para que Dumbledore o deixasse em paz em relação a isso, havia aprendido depois de tantas vezes com o diretor basicamente o perseguindo mesmo com Voldemort morto.

O resto de seus dias foi aprendendo a curar suas feridas ou pelo menos amenizá-las. Começou a visitar um medibruxo de aconselhamento e terapia, após ele realizar um voto perpétuo de confidencialidade, algo drástico, mas não era como se pudesse revelar seus segredos para qualquer um.

E foi bom. Para si e Ginny e o futuro que estavam construindo, os muitos filhos que eventualmente tiveram e todos os que chegaria a conviver.

Não fora uma vida de aventuras épicas, fora de cuidado e amor, algo que precisava mais do que achava possível. Ginny o acompanhara a cada dificuldade, cada tropeço e regressão, compreensiva e dedicada e não sabia como alguém poderia amar tanto quanto amava a ruiva, mas agradecia todos os dias por ela permanecer a seu lado.

E assim viveram essa vida, um longo caminho torto para a recuperação que haviam negligenciado tantas vezes antes. Casaram-se e trabalharam e continuaram em frente, sempre juntos e se apoiando como deveria ser, como haviam escolhido ficar. As vezes não sabia o porquê de uma pessoa iluminada como Ginny continuava a seu lado, em seus piores dias pensava que era apenas por estarem nesse ciclo interminável juntos.

Mas ela o amava, o amava com intensidade, com tudo que tinha. Quando Ginny o olhava, era com adoração fervorosa, paixão e confiança e amor o queimando se ficasse sob o seu foco por muito tempo. Nesses dias, era impossível duvidar da decisão que ela havia feito de sempre estar a seu lado.

Aprendera muito sobre si e fora doloroso, mas boa parte das coisas que havia enfrentado eram e fazia sentido que se recuperar machucasse na mesma medida.

Harry Potter viveu uma longa e turbulenta vida – uma de muitas outras, mais ou menos cruéis do que essa. Mas trabalhava com algo que o dava prazer, estava casado com o amor da sua vida e tinha sete filhos que amava com todo o seu coração.

Era a festa de aniversário de 102 anos de Ginny e ambos sabiam que não teriam muito mais tempo. Ao menos, não nesses corpos, não com essas pessoas. Sabiam também que partiriam juntos, como muitas outras vezes, pois a cada ano que se passava ficava mais difícil continuar sem o outro.

No fim do dia, despediu-se dos convidados – esses saíram se entreolhando, pois era nítido que a saúde do casal estava se deteriorando rapidamente – abraçou sua filha mais nova, Katie, que havia voltado para a casa dos pais após a morte de seu marido, e, junto a sua esposa preparou-se para dormir.

Abraçou Ginny, ouvindo a respiração difícil da mulher, pernas entrelaçadas, apenas catalogando as feições ainda deslumbrantes – os olhos castanhos sempre, sempre com o ardor que a idade nunca conseguia apagar, o cabelo todo branco quase como uma nuvem em sua delicadeza. Nenhum dos dois parecia perto de dormir, trocando beijos castos, aproveitando a serenidade do momento. Fecharam os olhos.

A última coisa que lembrava dessa vida era o calor de Ginny a seu lado, deitados na cama que dividiram por décadas, em paz com o que sabia que iria acontecer. Trabalhara duro para aceitar seus erros, fechar ciclos antigos e deixar suas feridas finalmente cicatrizarem. Aprendera a viver com sua tristeza e aproveitar ainda mais seus momentos de alegria, que era possível ser feliz mesmo após tudo o que havia passado, como Ginny o mostrara várias vezes ao longo de seu tempo juntos.

Sabia, sem nem precisar abrir os olhos, que estava na câmara secreta. Respirando fundo, apenas puxou a sua ruiva para um abraço apertado, admirando os olhos de chocolate que tinham a mesma força de sempre, a pele pálida tracejada de sardas que aumentariam em número com a idade.

— Parece que vamos perder o quinto casamento de James – murmurou contra o ombro de sua esposa, ainda sem soltá-la de seus braços. A risada de Ginny era musical, mesmo drenada de energia e ele finalmente conseguiu sorrir.

Estavam juntos e bem, não havia nada que poderia desejar além disso.

E então, eles viveram de novo e de novo, repetindo os mesmos erros, criando oportunidades, trilhando cada dia um caminho diferente para um mesmo resultado: Harry e Ginny contra o mundo.

Em algumas vidas tinham metas definidas, objetivos e sonhos e a vontade de mudar o mundo. Em outras, sucumbiam aos seus anseios mais obscuros e os medos e o cansaço que era perder e reconstruir toda uma história novamente.

Mas a cada obstáculo e queda e desvio no caminho, um estava sempre pronto para levantar o outro, guiar e proteger, âncora em meio a tempestade. Tinham um ao outro e enquanto estivessem juntos nada os derrubaria por muito tempo.

Visitaram países e imergiram em culturas, deixaram Hogwarts por outras escolas, foram professores, médicos, jornalistas e aurores, casaram-se com os mais diversos rituais, tiveram lindos filhos, biológicos e adotados, voaram com dragões e quimeras e fadas com asas maiores que árvores. Viveram décadas de aventuras e séculos inteiros de paz, apenas dançando lentamente ao som do rádio que tocavam os sucessos inéditos que já haviam ouvido antes.

E eles viveram, tanto que rostos se confundiam e histórias se apagavam de suas mentes. Amaram e perderam e seguiram em frente, da maneira que podiam, um dia de cada vez. No fim, Harry tinha Ginny e Ginny tinha Harry e isso era a única coisa que importava.

 


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Notas finais do capítulo

Então, o que acharam?

A autora sempre fica feliz com os comentários, viu.
Essa proposta é diferente de outras coisas que eu já escrevi, ao mesmo tempo se alinha com meus trabalhos antigos, então eu estou duplamente nervosa com a resposta de vocês.
O título foi tirado de Beautiful Life, uma música incrível de Harry Pane e que me guiou nesse trabalho, se quiserem conferir.

Com carinho, Duda.