Sinais escrita por Sirena


Capítulo 10
Conversas e Professores


Notas iniciais do capítulo

Obrigada a SophiaWiggin, Isah Doll, heywtl e fran_silva pelos comentários ♥
Obrigada a Nate Keehl por favoritar ♥

Adivinha quem chegou a 1k com apenas nove capítulos? :3 Ai muito obrigada, estou realmente muito feliz com isso! Vcs são fodas!!!!



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/796817/chapter/10

Ícaro

Uma vez por mês, numa sexta, meu tio e a esposa vinham jantar aqui.

Tia Viviane era uma médica fisioterapeuta (com base nos relacionamentos anteriores do meu tio, cheguei a conclusão que médicos só ficam com médicos e advogados). Ela tinha uma pele tão escura que poderia ser uma princesa de Wakanda (ok, eu não gosto de Marvel, mas foi impossível não ir ver esse filme), cabelos com tranças longas e mãos com manchas brancas. Não existe um sinal para vitiligo em Libras, mas o sinal da minha tia se refere a mancha que ela tem perto do queixo. Ela era bem mais alta que tio Flávio e estava sempre de salto alto então a diferença de tamanho era maior ainda.

Ela e minha mãe estavam conversando na cozinha, o rádio estava ligado, tocando um CD com Lago dos Cisnes gravado. Ao lado dela, minha mãe parecia um hobbit e minha tia um avatar. Enquanto meu pai ajudava-as na cozinha, Alexia ficava jogada no sofá, parecendo terrivelmente entediada enquanto olhava para a TV.

Dei um tapinha na perna da minha irmã e ela suspirou se sentando e deixando espaço para eu ficar perto dela.

"Tudo bem?" — perguntei.

"Não gosto quando tio Flávio vem." — respondeu, fazendo careta e olhando para a porta da sala que dava vista para o quintal. Tio Flávio estava lá fora, fumando na garagem.

Nunca seria capaz de entender a lógica de médicos fumantes. Tipo... Médicos. Eles não deviam ser um exemplo de saúde humana sempre buscando fazer coisas saudáveis e tal? Sei lá, eu achava estranho.

Hesitei um instante, tentando lembrar os sinais secretos que eu e Alexia inventávamos quando crianças para falar sem ninguém saber o que era. Enquanto crescia, descobri que era bem comum gêmeos inventarem suas próprias línguas, mas a maioria abandonava depois de uns anos.

Eu e a Lexi abandonamos a maior parte. Mas, quando queríamos falar mal do tio Flávio ou compartilhar segredos, ainda usávamos alguns. Era uma boa forma de conversar sem meus pais saberem o que estávamos falando.

"Eu gostava. Não mais." — comentei, encolhendo os ombros. Alexia concordou com a cabeça, soltando o cabelo e prendendo-o novamente, agora num rabo de cavalo ainda mais alto do que estava anteriormente.

"Não gosto como ele fala." - Alexia fez careta. - "Ele fala linguagem."

Assenti, eu também não gostava quando meu tio usava o termo "linguagem de sinais". Eu não falava uma linguagem. Falava uma língua. Tinha gramática e regras, igual o português. Ele sabia disso, era ridículo que insistisse em falar "linguagem".

"Pelo menos a tia Viviane é legal." — comentei, olhando para a cozinha sobre o ombro. - "A Libras dela é ruim, mas ela é legal."

"E deixa a gente comer chocolate antes do almoço." - Alexia riu. - "Tio Flávio ainda tá falando sobre aquilo com você?"

Concordei com a cabeça. Minha irmã hesitou antes de pegar o controle e desligar a TV.

"Quer ir falar com ele? Papai não vai se meter se não ver que estamos falando."

Hesitei.

Meu pai não gostava que discutíssemos com meu tio, mas... Bom, desde que ele não visse... Uma conversa se fazia necessária.

"Você vai comigo?"

"Quer que eu vá?"

Fiz que sim com a cabeça.

Alexia se levantou estendendo a mão para mim e eu sorri enlaçando o braço com o dela enquanto saíamos.

Tio Flávio estava sentado na calçada de casa, as costas apoiadas no portão de grade. Ele usava um suéter azul e parecia relaxado enquanto soprava a fumaça. Quando nos viu, colocou logo o cigarro de volta na boca e ergueu as mãos para perguntar:

"Querem um?"

"Não." — respondi franzindo a testa.

"Definitivamente não."

"Bons meninos." — tio Flávio concordou enquanto nos sentávamos ao seu lado e em seguida apagou o cigarro sob o sapato. Embora já escurecesse, o chão continuava quente - "O que foi?"

"Queria conversar." — dei de ombros. - "Sobre você querer me dar um aparelho auditivo de presente."

"Você pensou sobre?"

Concordei sorrindo. - "Eu quero um amplificador novo. Pro meu teclado. Acho melhor."

Meu tio franziu a testa e Alexia deu risada.

"Ícaro..." - levantei a mão, pedindo que ele parasse.

"Eu sei que você acha melhor e tal... Mas, se vai ser meu aniversário, quero ganhar  um presente que eu queira." - dei de ombros. - "Eu também sei como você foi criado, mas, eu não preciso que me conserte com um aparelho auditivo, tá legal? Não tem nada errado em mim. Ser surdo não me torna quebrado. Preciso que você entenda isso. Não sou um dos seus pacientes. Sou seu sobrinho."

Meu tio suspirou tamborilando os dedos sobre os joelhos antes de voltar a falar.

"Não acho que esteja quebrado. Mas, você já abriu mão de tanto. Você não precisaria ter parado as aulas de música e fotografia, também poderia ter sido mais fácil te encontrar um psicólogo quando aconteceu aquilo com os cachorros e você não quis mais sair."

Suspirei.

"É difícil achar psicólogo que saiba Libras." - concordei. - "Mas, dizer que seria mais fácil se eu usasse aparelho não é justo. Também seria mais fácil se todo mundo soubesse Libras. Mas, não fazem isso porque é muito mais confortável para os ouvintes que surdos usem aparelhos do que eles irem atrás de aprender a Libras."

"Sendo que é muito mais difícil pro surdo aprender a oralizar do que pro ouvinte aprender língua de sinais." — Alexia se meteu. - "Você sabe disso tio. Viveu isso em casa. Você conseguia aprender o quê? Dez sinais por dia? Quantas semanas demorou pro meu pai conseguir falar 'oi' em português?"

Meu tio virou o rosto como se perdido em lembranças por um instante, a julgar pela sua expressão, não eram lembranças exatamente agradáveis. Lembrei da época em que tentei frequentar o fonoaudiólogo. Demorei exatamente três semanas e quatro dias para conseguir falar propositalmente "ca". E isso nem era uma palavra completa!

Me ajeitei no chão quente e apertei o ombro dele, chamando sua atenção.

"Sei que você tem boa intenção. Agradeço. Mas, não quero ficar tentando encaixar num molde que não foi feito pra mim, sabe? Sei que tem surdos que gostam de usar aparelho, sei que tem os que não gostam e que sentem que isso é um desrespeito com a luta por direitos que a gente passou e... Não sei... Sei que tem quem usa aparelho e luta mesmo assim e sei que tem os que usam aparelho e negam completamente a identidade surda. É complexo. Não julgo quem usa aparelho auditivo como alguns surdos julgam. Mas, eu não quero usar."

Encolhi os ombros enquanto tio Flávio olhava de mim para minha irmã. Alexia colocou a mão no meu ombro em sinal de apoio. Ela mal falou, mas acho que ela sabia que eu não precisava que ela falasse, apenas precisava não estar sozinho.

Ter conversas assim com meu tio era difícil. Sabe... O conceito de normal surgiu na medicina. Acho que isso explica muito, né? Se o que é definido como norma surgiu nessa área, deficiências são basicamente vistas como doenças: precisam de remédios, de correções, de consertos, a anormalidade não pode existir. Nem todo médico pensa assim, claro... Mas meu tio era do tipo que pensava, tentar argumentar com ele não era fácil. Eu tinha que ir pelo lado cultural e histórico para ter alguma chance de vencer a discussão, porque ele só veria o lado médico. Então... A mão da Alexia no meu ombro era bem-vinda. Era um apoio necessário.

Flávio suspirou, esfregando os olhos.

"Só quero ajudar."

"Eu sei. Mas, você ajuda mais aceitando que eu quero ser assim e que as soluções que eu preciso são diferentes. Ajuda a mim e ao meu pai também você entender e aceitar isso."

Tio Flávio deu um longo suspiro antes de concordar com a cabeça e me puxar para um abraço. Parecia fácil demais se eu pensasse muito, mas não era pra pensar muito. Não tinha o que pensar. Apesar das brigas sobre isso, tio Flávio sempre foi do tipo que me incentivava no que eu queria, então... Acho que eu não devia tá tão surpreso. Dei um sorriso para meus pensamentos, retribuindo um instante antes de me afastar e levantar oferecendo a mão para a Alexia.

Minha irmã deu de ombros, se levantando sozinha e falando algo para meu tio antes de enlaçar o braço com o meu e entrarmos, encostando o portão atrás da gente.

Antes de voltarmos para sala, Alexia puxou minha mão.

"Você falou bem. Se sente bem? Sei que não gosta de bater de frente com o tio."

"Estou bem, Alexia." — garanti e hesitei um instante antes de completar. - "ObrigadoFoi mais fácil do que eu achei que seria."

Alexia deu um sorriso de lado antes de me abraçar com força encostando o queixo no meu ombro um instante. Retribui o abraço e respirei fundo sentindo o cheiro do seu creme de pentear: tinha cheiro de manga. Alexia apertou mais os braços em volta do meu pescoço antes de se afastar.

"Tudo certo pra você conhecer a mãe do Mathias esse fim de semana?"

"Eu acho que sim. Tenho que confirmar com ele ainda." - encolhi os ombros. - "Ele não parecia muito animado com a ideia de eu ir dormir na casa dele."

Minha irmã me analisou um instante parecendo preocupada antes de me dar o braço de novo. Entramos na sala e sentamos no sofá, Alexia encostou o queixo no meu ombro e bagunçou meu cabelo antes de voltar a falar:

"Seja paciente, ok? O E-R-I-C me perguntou do Mathias esses dias... Disse que ele parece vir ficando mais nervoso... Ele tá preocupado." - olhei confuso.

"Ele disse o por quê?"

"Não. Você tem alguma ideia do que esteja deixando ele assim?"

Neguei com a cabeça. Alexia franziu os lábios um instante antes de erguer as mãos.

"Só... Seja paciente. Sei que você não é muito bom nisso, mas tenta. Pelo que ele disse, o Mathias não tá num momento muito fácil, então... Acho que seria bom se você tentasse ajudar."

"Eu tento." — garanti e ela balançou a cabeça.

"Não do jeito certo. Você fala que tá tudo bem, mas sempre tenta tudo seu jeito, Ícaro. Você não gosta de abaixar a cabeça ou de ceder um pouco a razão, isso é bom às vezes, claro, mas... Você fecha os olhos quando não quer conversar e debocha muito quando algo não é do seu grado. Só tenta ser um pouco compreensivo com o nervoso dele quando for lá, ok? Não só diz que tá tudo bem, tenta mostrar que ele pode relaxar, mesmo se ele fizer algo errado." — ela fez bico enquanto falava. - "Eu gosto dele. Ele é legal."

"É. Tá eu vou tentar." — mordi os lábios enquanto acrescentava - "Também fico preocupado quando ele fica muito nervoso."

***

Respirei fundo, me jogando na cama sentindo dores nas costas. O jantar foi ótimo, tia Vivi cozinhava maravilhosamente e sempre fazia questão de fazer maionese para mim e para Lexi. Depois de jantarmos, ficamos todos na cozinha, conversando em volta da mesa.

Era sempre assim.

Peguei o celular para olhar a hora.

23h34.

Sinceramente, acho que se não tivessem que trabalhar amanhã, meus tios teriam ficado aqui essa noite.

Suspirei desbloqueando o aparelho e me lembrando que tinha algo a confirmar ainda e me obrigando a aguentar ficar acordado mais alguns instantes. Abri o chat com o Mathias, mas acabei colocando o celular de lado outra vez e me levantando.

Acendi a luz do quarto, me sentindo repentinamente ansioso e andei em círculos um instante, olhando os desenhos pendurados nas paredes, presentes de Sabrina.

Abri a janela do quarto para que o ar da noite entrasse, sentindo um calor forte no rosto e respirei fundo, batendo os pés e beliscando meus braços de leve enquanto olhava ao redor, tentando encontrar algo para fazer e descarregar aquela onda súbita de energia e ignorar o sufocamento no meu pescoço. Peguei o travesseiro em cima da cama e apertei-o entre os braços um instante, tentando me acalmar, mas não ajudou.

Joguei o travesseiro de volta na cama e fui para trás do teclado, resolvendo descontar a ansiedade súbita na música. Quando eu não podia sair por aí tirando fotos de tudo, a música era meu refúgio. Gostava da forma como cada nota vibrava e alcançava meu corpo, vindo da ponta dos dedos até me envolver por inteiro como uma corrente elétrica... O calor do som... A diferença da vibração entre as notas graves e finas... Tudo aquilo me alcançava de uma forma quase terapêutica.

Aquelas vibrações acalmavam meu corpo e minha mente, me envolviam numa proteção única enquanto clareavam meus pensamentos.

Respirei fundo, chegando às notas finais me sentindo muito melhor do que quando comecei. Encerrei a música sorrindo de lado e voltei a me sentar na cama, me sentindo contemplado.

Olhei para o meu teclado pensando em como no começo era complicado encontrar as notas agudas, eu precisava da ajuda do amplificador para conseguir sentir as vibrações daquelas notas, dei sorte de ter encontrado alguém disposto a doar algo tão caro. Depois que eu decorei onde ficava cada nota, conseguia tocar com ou sem amplificador, não era tão emocionante já que eu não sentia as vibrações de todas as notas, mas funcionava e isso bastava.

Peguei o celular de novo, pensando no que Alexia havia me dito mais cedo e abrindo novamente a conversa com Mathias.

[Ícaro]
Ou sumido, como foi o dia?
Mathias
Oi
Oii
Oiii
Eu to te vendo onlineeeee

Franzi a testa esperando.

Consegui contar até 65 antes da mensagem dele finalmente vir.

[Mathias]
Oi
Desculpa
Não to bem
Mas não é nada demais, nem liga
O dia foi ok por aqui e aí?

 

[Ícaro]
Tem certeza que não é nada?
Pode falar se quiser

 

[Mathias]
Bom, eu não quero
Como você tá?

 

[Ícaro]
Grosso
Eu to bem
E você o que te chateou?

 

Roí a unha enquanto esperava.

Ele demorou a responder.

 

[Mathias]
Nada demais
Perdi nota num trabalho porque começaram a fazer perguntas q eu n sabia responder
To acostumado já

[Ícaro]
Que droga :c

[Mathias]
É bom
Eu nem devia me chatear mais com isso
Toda vez que tenho que apresentar trabalho fazem isso
Só q dessa vez foi numa matéria em q to indo mal então...

 

[Ícaro]
Poxa
Por que ficam fazendo isso?
Achei que era comum acordo não fazer nenhuma pergunta pro colega apresentando

 

[Mathias]
É complicado
Não quero falar sobre
Como eu disse não é nada demais
Desculpa se pareço grosso falando assim, mas é sério. Não quero.

Hesitei, me sentindo chateado com a esquiva.

[Ícaro]
Ok
Só queria conversar só

 

[Mathias]
Então vamos conversar :)
Vc vem que horas amanhã?

[Ícaro]
Tá confirmado msm? Ctz que tudo bem eu ir?

[Mathias]
Certeza absoluta ♥

 

[Ícaro]
Ok. Vou depois do almoço.
Quero tirar umas fotos antes, então eu devo chegar tarde

 

[Mathias]
Vai tirar fotos onde?
Eu posso te encontrar e acompanhar ate aq
N é o melhor lugar pra andar sozinho, especialmente com uma câmera tão cara quanto a sua, acredite

 

[Ícaro]
Eu ia tirar umas fotos no parque mas é sentido oposto né?
Então não sei
Acho que vou tirar umas fotos aleatórias no shopping e comprar sorvete

 

[Mathias]
Ok, te encontro no shopping então
Avisa quando tiver vindo pra eu sair e ir pra lá

 

[Ícaro]
OK

[Mathias]
Quer fazer vídeo chamada? Aprendi uns sinais novos

 

[Ícaro]
Você fica exibido quando aprende sinal novo
Vamos

 

[Mathias]
É que eu gosto de me exibir pro meu professor ;)

 

Dei risada quando li isso.

 

[Ícaro]
Que eu esteja sabendo você ter outro professor de Libras agora T.T
É pra ele que você quer se exibir e?

 

[Mathias]
Não
Quero me exibir pro professor bonito que beija bem

[Ícaro]
Não sabia que você era do tipo que beija professores

 

[Mathias]
Se o professor for você eu beijo kkkk

 

Ri de novo, balançando a cabeça e apertei no botão de vídeo-chamada, ansioso para conversar com ele, esquecer um pouco da ansiedade estranha que ainda sentia e ajudá-lo a fazer o mesmo.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Agora que já sabemos muito da família do Ícaro.... Próximo capítulo vamos começar a saber um pouco mais da família do Mathias :)



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Sinais" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.