Zeta IV escrita por Mihaell


Capítulo 1
Oneshot




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Zeta IV

“Major Tom!” Pensou ter ouvido, mas não esboçou reação.

A capitã da Força Aérea Nacional Anna Miller Arendell suspirou quando a primeira oscilação sorriu para os tripulantes da Zeta IV. Ora, sabia que seu coração não tinha direito do luxo de acelerar os batimentos àquela altura. Anna mal soube calcular quanto tempo da vida tinha dedicado até a chegada daquele momento – talvez a vida toda, ela imaginou. Fechou os olhos e buscou aliviar a pressão que repousava em ambos os ombros. Repassou de forma mental todo o processo que já conhecia.

Primeiro, o lançamento era impulsionado por uma queima de combustível tão grande capaz de gerar uma explosão que tiraria o fôlego dos que nunca haviam presenciado. Depois, esse mesmo propulsor, vazio e exausto, se entrega ao mar junto aos motores de estágio 1. Não satisfeito com seu peso, a Grande Obra da engenharia moderna abandona os motores do estágio 2, após ser impulsionado até 100km de altitude: ali então presenciavam a Linha de Kármán, o limite entre a atmosfera terrestre e o espaço infinito. Nos próximos 60 segundos, nem tanto mais, nem tanto menos, os motores do estágio 3 acenam em um adeus mudo antes de apagarem. Você está a 230km de altitude do chão, dos seus familiares e amigos, à pelo menos 5 mil km/h. Ninguém pode freá-lo, nem a resistência do ar, nem mesmo Deus. E então, você venceu a gravidade.

Anna observou os outros tripulantes, ansiando vê-los tão nervosos quanto estava. O coronel Anthony Williams era velho e o comandante-oficial da missão: mal esboçava qualquer reação. Do outro lado, estava a segunda-tenente e engenheira mecânica Sidney Rodríguez, que enfim, parecia tão inquieta quanto Anna.

“Controladores de voo da Zeta IV” Ouviu atentamente a voz no rádio “Propulsor? Orientação? Médicos? Sistemas? Telemetria? Navegação? Controle? Dados? Instrumentos? Coordenadas? Resgate? Comunicação? Acoplagem?” Todos seguidos de um sinal positivo “Controle de lançamento, positivo. Base de Controle para Zeta IV, 60 segundos e contando”.

Naquele ínfimo instante, Anna deu-se conta do quão tinha esperado aquilo.

Formada com honras na universidade e no curso da Escola de Pilotos de Teste da Força Área Nacional, Anna logo foi recomendada para o grupo especial de elite, no qual ela participou poucos meses até largar para começar seu mestrado em Engenharia Aeroespacial no Instituto de Tecnologia do estado. Tinha subido duas patentes nas Forças Armadas até ingressar no Agencia Espacial. Seis anos tinham se passado e enfim, ela alcançava sua primeira missão tripulada.

“Ignição”. “5”. “4”. “3”. “2”. “1”.

Tudo começou a oscilar, e então ela parou de ouvir. 

“0, lançamento!”.

Oh, sim, A voz brincalhona de Elsa surgiu em sua mente, motores ligados pra longe de mim, querida. Só se cuide, por favor.

Anna sentiu o mundo ficar para trás. Ao passo que a vibração aumentava, a pressão auxiliou para sua mente e corpo estagnarem no estado de alerta. Começou a suar. Não tinha o que assistir do lado de fora ainda. A ruiva sabia que aqueles seriam os mais longos seis minutos da sua vida, pois eram seis minutos convertidos em horas devida a tensão que se acumulava na cabine e na respiração pausada. Oh sim, aquele era a circunstancia que tudo costumava dar errado, e os ônibus espaciais explodiam, tudo queimava em um longe incêndio. Talvez fosse a Terra alertando estarem indo longe demais ou talvez fosse o Universo rejeitando a presença dos humanos. Um ou outro, então, decidiriam se Anna cumpriria ou não a promessa feita para Elsa.

A força g que era alcançada ao tentar sair do planeta era um dentre vários motivos que impediam qualquer pessoa não treinada de realizar uma viagem espacial: a aceleração rápida gera uma pressão aplicada ao corpo humano pela constante gravitacional – exatos 9,80665 metros por segundo ao quadrado. O problema é que o nível dessa pressão ao sair do planeta, era muito maior do que a pressão exercida numa freada brusca de ônibus, por exemplo, porque diferente dos automóveis e suas duas dimensões, pilotos de avião também tinham de trabalhar com mudanças verticais. De tal forma, seus corpos sabiam que em um mergulho acentuado, seu estômago seria levado até a garganta, e então não demoraria para o sangue descer da cabeça para os pés e você desmaiar sem oxigênio. Isso, porém, não podia acontecer com pilotos, eles podiam botar tudo a perder se isso fosse permitido. Anna riu, lembrando de toda a base teórica e do treino prático. Era igual, mas ao mesmo tempo tão diferente. Só tentou relaxar.

“A suspensão e o equilíbrio estão bons, câmbio” Anna foi arrancada do seu devaneio pela voz do coronel Williams.

Portanto, lá estava: Anna orbitava a termosfera. Olhou pela janela e pôde ver o profundo azul do oceano, os longos relevos, montanhas geladas e as densas nuvens que pairavam sob tudo isso. Se virasse os olhos mesmo que pouco, penetrava na extensão que era a exosfera, escura e ao mesmo tempo tão brilhante. Estavam do lado iluminado pelo sol naquela manhã, mas ainda assim Anna podia ver a borda da Terra cintilar. A mulher não conseguia explicar o sentimento que lhe rodeava a boca do estômago e a fazia encolher os dedos do pé, mas sabia dar nome ao aperto que sentia na garganta: Anna queria chorar. Chorar de felicidade ou de gratidão, ou pelos dois. Era uma das coisas mais bonitas que tinha presenciado em vida.

De repente lembrou-se de sua esposa. Então soube que nunca teria um desejo mais forte do que o de ter Elsa ali, junto a si. Ah sim, Elsa enlouqueceria se estivesse ali.

48 horas antes

“Está um tanto quanto distante hoje, querida” Anna sorriu, pousando ambas as mãos nos ombros de Elsa, que estava sentada de frente para o computador. Diversos papéis sob a mesa tinham cálculos que a mulher ruiva até entenderia se estivesse minimamente interessada. Não era a ocasião, porém. Tudo que Anna queria era um beijo e uma refeição caprichada – estava relativamente farta da granola que comia toda manhã “Nem me ouviu entrar... isso é raro”.

“Estou terminando de checar alguns dados” Ela usou aquele tom de voz seguro e profissional que sempre usava quando seu crachá estava pendurado no bolso do uniforme. Mal se assemelhava à Elsa dengosa, que pela manhã fazia careta para não ter que levantar e se exercitar junto à Anna “E você capitã, não deveria estar terminando de arrumar suas coisas? Já terminaram os últimos exames médicos?”.

“Hm” Anna pareceu pensar na resposta que não veio de forma verbal. A mulher ruiva apenas afastou a trança única que Elsa usava e depositou um beijo cálido na nuca da mulher, que arrepiou, mas nada disse – certamente, ela não se entregaria fácil “Terminaram sim, mas está na hora do almoço... e por isso passei aqui para convidar formalmente uma linda loira charmosa para dividir essa curtíssima hora comigo. Então” Anna se ajoelhou, segurando a mão de Elsa que teve que girar a cadeira de escritório “Aceita almoçar comigo?”.

Elsa olhou fundo nos olhos verdes da esposa, se esforçando para não rir da péssima atuação. Quando a loira mordeu o lábio inferior, Anna sabia ter ganhado.

A mulher ruiva se afastou da mesa de Elsa, enquanto a outra desligava os sistemas, se certificando que todo o trabalho tinha sido salvo. Pegou cada uma das suas anotações – que, para Anna eram aleatórias, e as colocou em ordem. Anna soltou um suspirou apaixonado. Ver Elsa trabalhar era uma das suas inspirações, e mesmo quando a outra realizava pequenas tarefas banais, como organizar a mesa do escritório, seu coração se alegrava e ela se sentia a mulher mais sortuda de todo o maldito mundo. Elsa parou um instante para observar Anna que divagava, como sempre.

Elsa achava Anna bonita em qualquer momento do dia, mas principalmente quando divagava. Era um trejeito mais que enraizado da personalidade da mulher que tanto amava, e por isso mesmo não podia deixar de admirar. Era honesto. Aproveitou da distração da outra para se aproximar. Ao segurar o rosto sardento entre as mãos, os olhos azuis de Elsa mergulharam nos verdes da Anna. A amava tanto, que às vezes, podia sentir seu peito explodir, em um sincero desejo. Se aproximou devagar, sentindo a respiração de Anna fazer cócegas em seu nariz, até roubar um beijo quente e apaixonado.

Anna sentiu as maçãs do rosto esquentarem e ela quase engasgou. Sim, sim, Elsa Arendell raramente era sua esposa quando estavam trabalhando. Quando na Agência Espacial, Elsa Arendell era sua superior hierárquica, a major responsável por chefiar grande parte das missões da área de astrofísica.

De qualquer forma, Anna sentiu-se grata pelo beijo, fosse ele de Elsa ou da major.

Caminharam de forma respeitosa até o refeitório, que estava razoavelmente cheio, porém silencioso. Todos conversavam baixo e pareciam ter muito expectativa no lançamento da primeira nave tripulada depois de quatro anos.

Elsa serviu-se de frango e salada, além de água natural. Anna serviu-se do olhar de desconfiança que Elsa dirigiu pra si, quando catou um gorduroso pedaço de lasanha de carne e o afundou no prato. Ela sorriu amarelo pra esposa que revirou os olhos.

“Major Arendell!” Um bando de recrutas prestou continência quando passaram pela mesa delas. Elsa se limitou a sorrir e os liberando para o almoço.

“Não entendo porque ignoram minha presença” Anna apertou as sobrancelhas, aparentando estar irritada, antes de deitar os braços e o rosto na mesa e fazer um bico de criança emburrada para Elsa “Sou capitã, há muitos abaixo de mim e poucos acima. Deviam respeitar isso, não concorda?” *inserir aqui o meme do cachorro triste*.

“Bom” Elsa sorriu de forma travessa, levantando as sobrancelhas “São novatos, ainda não sabem quem é quem. Mas se a senhorita usasse sua farda e seus adornos direitinho, tenho certeza que saberiam quem você é”.

“Nah” Anna limpou a garganta com um gole de suco “Sou muito legal para ficarem me prestando continência pra lá e pra cá”.

“Então por que reclamou?” A mulher loira questionou.

“Porque sempre que dizem seu nome, dizem o meu também e eu sempre viro pra atender! Às vezes é irritante, Els” Anna continuou emburrada.

“Quem quis meu nome foi você, te perguntei no cartório” Elsa provocou “E nós já trabalhávamos juntas, não me diga que nunca pensou nisso”.

“Não” Respondeu franca. Elsa riu.

Apesar da conversa amena, o resto da refeição pareceu correr sob uma tensão desnecessária, que ambas sabiam de onde vinha: nenhuma das duas queria falar sobre a missão da Zeta IV, dali a dois dias. Tinham estudado, trabalhado e admirado a vida inteira as missões que levavam o humano além da Terra. Mas quando souberam que Anna enfim tinha sido escalada, nenhuma das duas soube o que pensar. Quando a euforia passou, Anna sabia que Elsa ficaria preocupada e não podia dizer o contrário. Também estava preocupada com a esposa: muito raramente Elsa se abria para falar dos medos e sentimentos ruins que podiam acomete-la. E quem diria o contrário? Elsa não queria preocupar Anna. Era um looping, onde acabava um, começava outro. E assim, o elefante branco foi se aconchegando na sala.

Anna também tinha receio de tocar no assunto e ser mal interpretada. Dentro da Agencia, elas eram oficias em trabalho e ambas sabiam ser excelentes profissionais. Elsa sabia que as chances de falhar qualquer coisa eram mínimas – principalmente porquê ela também averiguava muita coisa acerca da missão, verificando cada pequeno circuito junto à equipe técnica. Seguindo essa linha de raciocínio, receava tocar no assunto e parecer estar desqualificando o serviço profissional da esposa, que tinha uma experiência e uma carreira tão extensa quanto a própria Anna: honras e méritos com o doutorado de astrofísica, Elsa também era professora de física e ciências matemáticas no curso de formação da Agencia Espacial.

Suspirou.

“Algo errado, Anna?” A mulher loira indagou, levantando uma das sobrancelhas – o gesto fazia parte da sua prática de ‘estou lendo as expressões da Anna’.

“Só estou pensando que...” Fez uma curta pausa, mas tomou coragem. Ora, faltavam apenas 46 horas “A comida da Estação Internacional não deve ser tão gostosa quanto essa lasanha, não é? E que o traje espacial é terrivelmente quente e abafado”.

Elsa riu, levando uma mão até a boca. Então apoiou o cotovelo na mesa e o queixo sobre a palma da mão “Bom, você já experimentou ambos, não posso dizer o que acho. Mas de uma coisa sei: vou ficar dez dias sem lavar roupa ou cozinhar, estou feliz”.

“Que horror, Els” A expressão de Anna rapidamente caminhou de preocupação para um sorriso bobalhão “Você é terrível! Até parece que não faço nada disso”.

“Estou brincando, estou brincando...” Elsa continuou rindo, enquanto tentava em vão tomar seu copo d’água, “Mas não acho que é o traje ou a comida que te preocupa. Pode falar comigo, sabe disso, não é?”.

“Acho que estou com medo, Els” Anna suspirou de repente, colocando ambas as mãos sobre a mesa. Quando estava nervosa, tinha o costume de apertar os dedos da mão, massageando-os. Elsa reparou “Sempre quis isso, fui treinada pra isso, passei nos exames médicos, psicológicos, em todos os treinos e... então vou ser uma das 400 pessoas em todo o mundo que já saíram do planeta! Isso não é incrível? Mas sinto que vou pirar...”.

Elsa segurou as mãos na esposa.

“Ei, olhe pra mim” Elsa pediu de forma carinhosa. Anna atendeu ao pedido, depositando toda sua alma nos olhos azuis e profundos da outra “Tudo vai ser absolutamente perfeito, Major Tom”.

Anna gargalhou com o apelido, abaixando os olhos envergonhada. Elsa era uma fã assumida da discografia de David Bowie.

“Sabe que o Major Tom era louco e deu tudo errado, né?” Anna disse baixinho, como quem não quisesse dar espaço para o azar.

“Depende do ponto de vista” Elsa respondeu, antes de começar a cantar em um tom de voz baixo também, apenas para Anna e ela ouvirem.

“This is ground control to Major Tom, you’ve really made the grade and the papers want to know whose shirts you wear”.
Aqui é a base de controle para o Major Tom, você realmente conseguiu! E os jornais querem saber quais são as camisas que você.

Anna sorriu envergonhada. De fato, ela iria conseguir.

“Now it’s time to leave the capsule if you dare”.
Agora é hora de sair da cápsula, se conseguir.

Anna assumiu seu papel de Major Tom – como capitã Anna e começou a cantar as estrofes que pertenciam ao aspirante do espaço.

“This is Major Tom to ground control, i’m steping through the door and i’m floating in the most peculiar way... and the stars look very diferente today”.
Aqui é Major Tom para a base de controle, estou atravessando a porta e flutuando de um jeito muito peculiar, as estrelas parecem diferentes hoje.

Ambas as mulheres sorriam uma para a outra, sem se importar com o resto do refeitório ou do mundo. Não importava, não interessava. Anna devia apenas continuar a música, conforme um dia foi escrita, mas ao invés disso ela pulou algumas linhas.

“Tell my wife I love her very much, she knows”
Diga à minha esposa que eu a amo muito, ela sabe.

Elsa sorriu, sentindo nada mais que a imensa vontade de beijar Anna.

“Você batalhou o mundo por isso, Anna” Sussurrou “E por isso mesmo vai ir e também vai voltar, e continuará sendo você mesma. Vai dar tudo certo”.

“Vou ganhar bolo de chocolate quando voltar?” Anna quis aproveitar a circunstância para furar a reeducação alimentar que ambas estavam fazendo.

“Só se eu receber uma massagem” Elsa respondeu com um semblante desafiador.

“De acordo, então!” Anna ofereceu a mão para a esposa, em um aperto firme e honesto “Eu prometo que você terá sua massagem, major!”.

“Então você terá seu bolo, capitã” Elsa aceitou o aperto de mão.

E Anna estava ansiosa para cumprir com a promessa. 


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