Recomeços escrita por Sophia Snape


Capítulo 5
Entre vinhos e literatura


Notas iniciais do capítulo

Desculpem a demora! Entrei num período corrido e de completa seca criativa, maaas estamos de volta.

Algumas considerações: até agora o Severo e a Hermione interagiram mais com os outros personagens do que um com o outro, mas isso vai mudar a partir deste capítulo. Esperem longas conversas e interações cada vez mais próximas.

Segundo: AMO a França, amo a língua, amo as músicas, mas não sei falar francês ~triste então me perdoem se escrevi algo errado e se quiserem me corrigir nos comentários, fiquem à vontade.

No mais, boa leitura! Os comentários de vocês fazem meus dias, então não sejam tímid@s.



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Uma semana se passou. Depois duas, três, e então, um mês havia se passado e eles se estabeleceram numa rotina. Severo jamais admitiria que era agradável, mas qualquer observador, até o menos atento, poderia dizer isso.

E mesmo Severo as vezes tinha que se esforçar e lembrar que estava mantendo-a por interesse. Ele tinha objetivos específicos para continuar aceitando a mulher no seu espaço pessoal, mas ela estava tornando tudo muito difícil. Ou fácil demais. Sim, era esse o problema. A Sr.ª Granger havia crescido para ser uma mulher extremamente competente e dona de si, e para o desgosto de Severo, havia tudo de sabe-tudo, e menos de irritante.

As vezes ele se pegava desejando que ela cometesse um erro, um deslize, por menor que fosse, só para que sua raiva fosse justificada. Mas conforme os dias passavam, ele via cada vez menos motivos para isso. Ela até evitou estar no café no mesmo horário que ele, o que o agradou e o enervou ao mesmo tempo. A mulher era irritantemente perspicaz. Fazia o seu trabalho impecavelmente bem, evitava os lugares onde ele estava fora dos limites da Botica, não fazia perguntas idiotas, e pior, fez o número de clientes crescerem pelo seu ‘excelente atendimento’.

Severo queria encontrar motivos para odiá-la, onde ela só dava motivos elogiá-la.

— Honestamente, Minerva.

Severo resmungou enquanto cuidava de uma poção nos fundos do laboratório. Claro que ele enviou uma série de cartas para a bruxa mais velha que sempre começavam com “O que você estava pensando?” e “Você ficou completamente louca?”, e algumas mais criativas que terminavam com promessas de vinganças e ameaças sobre cortar a produção de poções para a Ala Hospitalar, e algumas que terminavam com “Tenha uma péssima tarde cheia de problemas burocráticos e alunos explodindo caldeirões. Com ódio, Severo”.

Não adiantou. Minerva respondia apenas algumas das várias cartas que ele enviara, parecendo achar tudo aquilo muito divertido. Era enervante. E então, claro, Severo começou a descontar em Hermione, tornando a vida dela um inferno.

— Não é assim que tomo o meu chá, Granger. – ele dissera uma tarde, depois de estabelecer que ela ficaria responsável por fazer uma série de tarefas pessoais e profissionais que incluíam o chá, a reposição de compras, a organização da dispensa, a etiquetação dos frascos e a contabilidade do caixa.

— Como assim? – Hermione franziu a testa, provando o chá. – Está exatamente do jeito que você toma todos os dias. Eu reparei como você faz e repeti.

Ele a olhou impaciente. – Claramente você perdeu algo, Granger, porque o gosto não está o mesmo.

— Você nem provou o maldito chá! – ela retrucou, claramente perdendo a paciência.

— Ora, ora, Granger. Não podemos falar assim com o superior, podemos? Até onde eu sei, é passível de demissão por justa causa.

— Mas-

— Eu ouvi o sino? – ele a cortou – Acho que é um cliente. E não se esqueça do chá.

Ele não precisava ser um exímio legilemente para saber que ela pensou em todos os palavrões possíveis para respondê-lo. Honestamente, Severo tinha que dar o crédito para a garota. Não, mulher. Hermione Granger não era mais uma garotinha a muito, muito tempo. E graças a Merlin por isso. Tornava tudo um pouco menos irritante, mas ainda mais desafiador.

Severo se descobriu obcecado por ela. Obcecado pela maneira como ela atendia os clientes, e pela maneira em que ela olhava para ele: aqueles grandes olhos castanhos, seus cabelos parecendo mel derretido em cascatas, e as pequenas e quase imperceptíveis sardas no pequeno e perfeito narizinho arrebitado.

Tudo nela era um convite para a insanidade, e Severo não gostava nada daquilo.

Para completar, ela ainda fazia ótimas poções e estava mais do que disposta a seguir o que ele falava sem bater o pé no chão como uma aluna mimada. Quando ele sugeria que o método dele era comprovadamente mais eficaz que as instruções de um livro qualquer, sua primeira reação não era retrucá-lo como ele poderia imaginar, mas de ouvir. E então aqueles olhos doces e decididos eram voltados para ele, para absorver o que ele diria. Honestamente, ele nunca teria paz?

— Senhor? – quando a voz melodiosa e suave o chamou da porta, Severo teve a sua resposta – O Sr. Bernard está lá fora. Quer falar com você.

Severo suspirou, olhando as horas. – Estou indo. Aproveite e tire a sua hora de almoço, não vou sair hoje.

— Tudo bem. – ela assentiu, e Severo pode respirar novamente. Se ele achava que tinha algum controle sobre a coisa toda, estava terrivelmente enganado.

...

— Então, o que temos hoje? – Severo perguntou enquanto estendia uma toalha simples na mesinha de canto da loja.

O Sr. Salvatore sorriu, abrindo as sacolas: - Filé de frango grelhado com salada da terra e arroz.

— E o desafio?

O Sr. Salvatore sorriu. – A entrada é o desafio. Prove e me diga.

Severo se serviu de uma generosa porção de salada e deu a primeira garfada. Ele fechou os olhos por um longo momento e suspirou. Isso, ele pensou, é comida de verdade.

— E então?

— Sinto o gosto de uma mescla de folhas aqui. Alface, alface roxa, espinafre e almeirão.

— Sim, sim, mas e o tempero?

— Azeite, claro. Sal.

— Sim...

Severo levou o garfo a boca mais uma vez, levando todo o seu tempo para saborear. – Pimenta moída. Tem alguma coisa diferente, cremosa.

O Sr. Bernard se moveu, impaciente. – Ah, vamos. Já te dei desafios realmente difíceis. Isso não é nada.

Severo tentou de novo, começando a ficar frustrado. – É o molho. Alguma coisa agridoce que não consigo identificar. Vinagre?

— Você realmente perdeu o jeito da coisa hoje. – Bernard sorriu, embora menos triunfante do que pensara que seria – Diga, meu caro amigo, não tem a ver com a Sr.ª Granger, tem?

Severo rapidamente enrijeceu.

— Ah, vamos, garoto. Não faça assim. E não olhe de cara feia para o prato. Eu caprichei nesse.

— Não quero trazer a Sr.ª Granger para o tópico desta conversa.

— E por que ela incomoda tanto? Você teve outros assistentes antes, mas nenhum deles tirava o seu apetite.

Severo apenas resmungou, se recusando a responder.

— Bem. se não quiser falar, não fale. Você sabe que não sou um homem intrometido.

Severo finalmente olhou para ele, sorrindo. – Você é o homem mais intrometido de toda a França.

Os dois se olharam por alguns segundos antes de explodirem em uma risada.

— Mas não pense – o Sr. Bernard enxugou os olhos – que isso vai me distrair do assunto.

Severo revirou os olhos, escondendo uma careta por trás do guardanapo. – A Sr.ª Granger é uma jovem mulher que gosta de meter o nariz onde não é chamada. Ela é irritante, presunçosa, intrometida, curiosa demais para o próprio bem e, sim, superestimada.

O Sr. Bernard tomou um gole de sua bebida com uma expressão alegre e presunçosa no rosto. – É mesmo? E por que uma pessoa com todas essas... qualidades, ainda seria sua assistente? Um mês se passou e, até onde eu sei, ela continua trabalhando para você quase oito horas por dia. E encantando a vila no restante do tempo, claro.

Claro. – Severo comentou com escárnio.

— Bem – ele suspirou, resignado – se não quer falar, não fale. Mas a moça claramente está tentando fazer um bom trabalho. E conseguindo. Dê uma chance a ela, Severo.

— E eu não estou dando? – ele abriu os braços para enfatizar.

— Se dê uma chance também.

Severo empurrou o garfo no prato, irritado. – E o que diabos isso quer dizer?

O Sr. Bernard balançou a cabeça, rindo. – Apenas termine o seu almoço, garoto.

— Eu não gostei desse tom, velho. – Severo avisou.

— Você tem gostado de poucas coisas nas últimas semanas, meu jovem.

— Eu poderia estar gostando do almoço se não estivesse me importunando com comentários sem sentido.

— Te vejo mais tarde na praia. E eu espero que você esteja lá. A Valerie ficaria terrivelmente chateada se você não fosse.

— Estarei lá – ele resmungou – Pela Valerie.

— Traga aquele vinho delicioso que trouxe da última vez. Ah e... a Sr.ª Granger virá também.

— O que? – mas ele já tinha saído pela porta. – Merda!

O gosto amargo que ficou na boca dele deu a dica para o ingrediente secreto que não havia conseguido identificar mais cedo. Pena que ele tinha perdido completamente o apetite.

...

Hermione se olhou no espelho pela vigésima vez. Os artigos na revista davam várias dicas de roupas, sapatos e maquiagens.

O que vestir numa balada? Como montar a sua make para arrasar? Qual o melhor look para visitar a cidade luz? Hermione bufou, pensando que era uma pena não ter o tópico: O que vestir para impressionar o ex-professor-atual-chefe que muito provavelmente te odeia para um evento de verão na praia?

Ela suspirou, rindo de si mesma. Não é como se ela tivesse muita escolha. Pelo menos havia engordado um pouco nesse último mês, e parecia mais saudável. Sua pele estava menos pálida também, mais bronzeada. O que ressaltou a cor do seu cabelo e dos seus olhos, ela tinha que admitir.

As pessoas tendiam a pensar que Hermione não se importava com a aparência, que era pouco feminina, prática, etc. Na verdade, era o oposto. Ela só tinha um estilo mais próprio, sóbrio, e pelo que a revista francesa dizia, confy— ou seja lá o que isso significava. Hermione gostava, sim, de se cuidar, de vestir uma roupa bonita, e até passar uma maquiagem mais leve. Ela só havia se descuidado nos últimos anos com o acúmulo de trabalho e o constante drama na vida pessoal.

Ela havia se perdido nas blusas sociais básicas e nas calças sem graça porque era mais prático, mais fácil. Mas agora... ela queria se reencontrar. Revirando a pequena cômoda perla quarta vez, Hermione puxou a única roupa que ela nunca tinha usado: um vestido branco de decote quadrado e botões frontais que iam até pouco acima dos joelhos, deixando uma pequena fenda para o restante das pernas. Era ousado na medida certa, nada provocante ou muito relevador, mas Hermione nunca havia tido coragem de usar.

Hoje, contudo, ela estava jogando a racionalidade pela janela e se entregando a algo que ela não sentia a muito tempo: esperança.

E amor próprio.

Uma combinação perigosa, mas que caía bem e combinava com o vestido.

...

Hermione sentiu a areia macia sob seus pés descalços e suspirou feliz. Eram sete horas da noite, mas o sol ainda não havia se posto, deixando o clima abafado e deliciosamente suspenso na mistura das ondas de calor com o ar marítimo. Parecia um sonho, e um que Hermione fazia questão de não acordar. Todo o resto que ela vivera nos últimos anos mal pareciam vida se comparados a isso, e ela sentiu uma pitada de culpa por pensar assim. Não era a Inglaterra o problema. Não era sequer o casamento. Era ela. E agora tudo parecia...

— Hermione, querida! – o Sr. Bernard gritou, acenando, e ela acordou de seu transe. Ela viu alguns rostos conhecidos da vila ao andar até onde ele e a Sra. Bernard estavam, acenando para alguns e sorrindo para as crianças que gritavam e corriam na praia.

— Olá, querida. O Sr. Salvatore dirige um pouco mal, mas pelo menos você chegou inteira. – Valerie comentou.

Hermione bufou. – Pouco é um eufemismo. Ele atropelou pelo menos duas lixeiras dentro da vila. Achei que nunca chegaria aqui.

Valerie riu, entregando uma taça de vinho rosé a Hermione. – Tome, isso vai te fazer esquecer a experiência terrível. Teríamos trazido você, claro, mas viemos muito cedo para organizar.

— E aquele macaco velho do Snape que não trouxe você? Aquele homem está impossível. – Bernard recriminou.

Hermione acenou a mão no ar. – Não se preocupe, não poderia vir mais cedo por conta da botica. – Antes que o Sr. Bernard pudesse continuar, ela mudou de assunto. – A propósito, ficou lindo aqui.

A praia em si era um espetáculo a parte, com uma vasta área coberta por areia, onde algumas dezenas de pessoas se espalharam tanto no chão quanto em cadeiras de plásticos, até a beira do mar, onde as ondas quebravam com menos força agora que a maré estava acalmando.

Crianças corriam por toda a parte, e ela reconheceu dois ou três cachorros de famílias da vila brincando com elas. Um toldo foi montado a poucos metros, onde uma longa mesa para trinta pessoas se estendia pela praia, com muita comida, bebida, luzes e música.

A Sra. Bernard pareceu pegar a dica e rendeu o assunto. – Tivemos muita ajuda. Da próxima, fazemos questão que participe. Ainda teremos muitos outros festivais, aniversários e comemorações pela frente. E, por favor, fique à vontade. Você está em família. Há muita comida no buffet, e mais vinho ao lado. Divirta-se.

Bernard concordou, puxando a esposa para uma dança. – Você está na França!

Hermione riu, tomando quase meia taça num único gole para acalmar os nervos.

— Calma, Granger, isso não é um shot.

— Merlin, Snape! – ela engasgou, tentando ignorar o fato de que a voz sedosa e maliciosa enviara arrepios por toda a sua pele. – Você tem que se esgueirar assim? E eu sei o que estou fazendo.

Severo fez um gesto de rendição, irritando-a ainda mais. – Só não espere que eu te carregue bêbada para a vila.

— Eu não preciso de uma carona. – ela resistiu ao insano impulso de estalar a língua para ele – Vim com o Sr. Salvatore ali, e vou voltar com ele.

Severo bufou, com aquele ar de sabedoria que a enervou. – O Sr. Salvatore nunca sobrevive ao fim de nenhuma festa, Granger, e sempre desaba em algum canto.

— Eu vou dar um jeito, Snape. Afinal de contas, sou uma bruxa. Posso desaparatar.

— Claro que sim. – ele apenas deu de ombros, deixando os óculos escuros escorregarem um pouco no nariz de modo que ela pode ver os olhos negros dele olhando para o mar, indiferentes.

— Como ‘claro que sim’? Não entendi o tom.

— São vinhos franceses de ótima qualidade, Granger. Alto teor alcóolico. Se as próximas duas taças que tomar forem para o seu organismo desse jeito, você deixaria cada parte desse seu corpo irritante por países europeus diferentes caso aparatasse. Confie em mim, o vinho é forte. E sobe rápido.

Ela estava fumegando de ódio.

— Sou uma mulher adulta que está fora dos limites da botica e fora do horário de trabalho. Então, se me der licença, vá importunar outro.

Hermione saiu ultrajada. Quem ele pensa que é?, ela murmurou para si mesma, se perguntando se era uma boa ideia tomar outra taça ou não. Decidindo, embora não de forma madura, que não daria ouvidos a ele, ela tomou a segunda. E a terceira. E depois a quarta.

— Querida, esse vinho rosé sobe rápido. – A Sra. Janet, dona da pousada, avisou, e Hermione resistiu ao impulso de revirar os olhos – Por que não pega um pouco de ceviche? Está uma delícia!

— Ceviche?

— Nunca comeu? – se Hermione não estivesse tão afetada pelo álcool, provavelmente teria corado pelo tom de descrença da mulher – É um prato peruano delicioso, e cai como uma luva com o vinho que está tomando. Aqui, prove.

Hermione olhou um pouco em dúvida para o peixe cru, mas tentou mesmo assim.

— E então?

Enquanto Hermione era inundada pelo prato mais delicioso que ela já provara na vida, a Sra. Janet explicava como era feito, os ingredientes envolvidos, quanto tempo deixar na geladeira... Mas Hermione conseguia se concentrar vagamente, a voz animada da senhora francesa ficando mais distante com o seu sotaque forte a medida que ela tomava todo o tempo do mundo para saborear os vários gostos que explodiam na sua boca.

— Aqui, tente assim. É batata doce frita, e é o melhor acompanhamento para o prato.

— Hmm – Hermione cantarolou – Ficou ainda melhor, e não sabia que isso seria possível.

A Sra. Janet riu. – Depois prove as batatas rústicas, e de sobremesa temos os éclairs da Chocolaterie do Jacques.

— Eu vou, mas no momento estou tendo um caso tórrido de amor por esse peixe cru.

— Então você está tendo um caso de amor com o Sr. Snape, foi ele quem fez. – o coração de Hermione parou no momento em que ela conseguiu ligar caso de amor e Snape na mesma frase.

— Sinto muito? – ela conseguiu falar, tentando não soar muito alterada.

— Severo, o seu chefe, faz o melhor ceviche. Parece uma receita fácil, mas tem que ter mãos mágicas como a dele para encontrar o ponto certo. Sabe, eu e o meu marido fomos ao Peru quando éramos jovens, e nunca mais consegui comer um ceviche tão bom quanto o que fazem lá. Até o Severo chegar, claro.

— Mesmo?

— Comentei sobre isso num dos almoços na casa da Valérie, e ele tomou com um desafio particular fazer um que fosse tão gostoso quanto o nativo. E o que eu posso dizer – ela deu de ombros, rindo – perdi 30 euros na aposta, mas consegui revisitar uma lembrança muito querida pelo paladar.

Ela riu, totalmente alheia a expressão de puro choque de Hermione.

— Oh, chère! J'ai parlé à Hermione du fameux ceviche de M. Snape.

— Oui oui! Nous avons dû payer 30 euros pour lui.

— Mais barato que viajar para a América do Sul, com certeza. – Hermione sorriu, concordando, enquanto tentava assimilar o fato de que o Severo era, além de tudo, um excelente cozinheiro – Embora valha muito a pena. Já esteve lá, mon chéri?

— Não, não. – Hermione suspirou, finalmente deixando o ceviche e as batatas doces de lado – Estive na América Latina, no entanto. Brasil.

— Belíssimo país! Os melhores turistas são brasileiros. Chegou a conhecer o nordeste? As praias são lindas.

Um filme se passou na cabeça de Hermione enquanto ela pensava na pergunta da Sra. Janet. Ela estivera em muitas viagens pelo Ministério, mas nunca chegou a realmente conhecer os lugares que visitava. Ela lembrava vagamente do papel de parede gasto do escritório na Alemanha, e das entradas de pelo menos cinco ministérios ao redor do mundo.

— Viajei muito a trabalho – ela finalmente disse – mas nunca tive tempo de conhecer os lugares turísticos.

— C'est triste!

Hermione concordou vagamente, sentindo um incômodo estranho percorrê-la. Olhando rapidamente ao seu redor, ela se assustou ao encontrar os olhos negros imperturbáveis de Severo travados nela, aparentemente escutando toda a sua conversa com a Sra. Janet e o marido. Ela se sentiu exposta e vulnerável pela primeira vez naquela noite, e não gostou nem um pouco.

Parecia que ele estava deliberadamente tentando puni-la por se intrometer na sua vida, e Hermione quis se encolher com essa conclusão. Ela trabalhava com ele a um mês e eles sequer trocavam meia dúzia de palavras durante o turno de trabalho. Era frustrante e Hermione quase se convenceu de que era um erro.

— Não seria o primeiro. – ela murmurou para si mesma, notando que o Severo desistira de parecer interessado na conversa acalorada do Sr. Bernard para finalmente se virar para ela.

— Deve ter sido horrível. – ele simplesmente comentou, se inclinando na mesa de improvisada.

Hermione suspirou, tentando parecer entediada. – O que?

— Viajar para tantos lugares sem realmente conhecê-los. Realmente, o trabalho mais horrível. O Ministério deveria se envergonhar.

Hermione fechou os olhos e deu um suspiro exausto. – Então vai ser assim?

O tom de voz dela o desconcertou. Severo novamente esperava que ela atirasse o garfo mais próximo na cabeça dele, no entanto, ela o olhou com uma sombra de... decepção? Não poderia ser.

Ele vestiu a máscara da neutralidade e devolveu a pergunta. – Assim como, Granger?

— Toda vez que tentarmos conversar fora da botica agiremos como dois idiotas em torno um do outro?

A voz de Severo era irritantemente indiferente. – E você esperou algo diferente, Granger? Você deveria saber melhor do que isso.

— Estou começando a achar isso também. – Hermione concordou, num tom derrotista que não era compatível com nenhuma fibra do seu ser. Então, como se ela tivesse levado um tapa invisível da França, da praia, do vinho, ou da vida, uma estranha sensação de teimosia e ousadia a preencheu.

— Mas veja bem, agora estou completamente obcecada por esse prato, qual o nome mesmo? Ceviche? Não sei se poderia viver sem isso novamente. E esse vinho? Absolument fantastique! E em qual lugar do mundo eu teria éclairs tão deliciosos esperando para serem devorados na sobremesa?

Severo apenas levantou a sobrancelha, seus olhos brilhando com uma diversão contida.

— Além do mais, tem alguma coisa mágica aqui esta noite. Não consegue sentir?

— Sim, Granger, é o vinho. Você está bêbada, essa é a magia. Uma que trouxas e bruxos tem em comum.

Hermione apenas bufou, agora olhando para os casais que começavam a se formar para dançar ao som de Milord. Os casais riam, contagiando o lugar com uma leveza e alegria tão genuínos que ela até esquecera quem estava ao seu lado, relaxando ao som da voz hipnotizante da Edith Piaf e das gargalhadas contagiantes do Sr. Bernard.

Mon Dieu! ... Qu'elle était belle

J'en ai froid dans le coeur

— Vous asseoir à ma table. – a voz sedosa e arrastada do homem que não saía dos seus pensamentos a alcançou num francês perfeito, e ela sequer conseguiu esconder o seu choque. No último mês Severo apareceu pouquíssimas vezes na frente da loja, e deixara a tarefa de atender os clientes totalmente por sua conta. E nas poucas vezes que ela o presenciara conversando com alguém da vila, geralmente era o Sr. ou a Sra. Bernard, que falavam inglês.  

Hermione teve vontade de gritar para o universo naquele momento, porque era altamente injusto que um homem como ele, com aquela voz, ainda falasse um francês digno de um nativo. Era injusto e enlouquecedor, e quase levou Hermione ao limite da sanidade.

Parecendo uma idiota, ela aceitou o que parecia ser um convite para se sentar enquanto ele a conduzia para uma das cadeiras vazias no final da mesa.

— Estou confusa. Foi um convite ou você estava cantando Edith Piaf?

Severo apenas torceu o canto da boca, divertido. – Era os dois.

Sem saber o que fazer com o bom humor e a disposição extrovertida do homem que praticamente a ignorara nos últimos trinta dias, Hermione recostou na cadeira, voltando seu olhar novamente para a faixa de areia que se estendia diante dela e para os moradores da vila que se divertiam.

A música acabou e logo começou La Foule, arrancando vários aplausos e assovios da plateia. Hermione sorriu com isso, tentando se controlar para não cantarolar junto com a canção.

— A Valerie adora Edith Piaf. – Severo comentou depois de um tempo, trazendo Hermione de volta para a terra.

— Eu notei. Ela me lembra um pouco a Sra. Weasley. – Hermione sorriu com carinho ao lembrar do dia que a presenteou com ingressos para o show da Celestina Werbeck. Ela ainda podia ouvir os gritos de felicidade da Molly, e os de indignação da Gina pedindo para trocar de presentes.

— As partes boas e ruins. – ele murmurou em resposta. Hermione levantou as sobrancelhas, curiosa, num sinal claro de que elaborasse. – Ela é leal e protetora, cozinha muito bem e tem uma grande família da qual é completamente devotada. É muito inteligente, embora viva sendo subestimada por isso por ter escolhido cuidar do marido e dos filhos a continuar como professora da Universidade. Elas também são grandes fãs de uma cantora que poderia ser equivalente nos mundos bruxo e trouxas.

Hermione concordou, esperando pelos pontos negativos.

— Em contrapartida, ela é irritantemente curiosa, e adora se meter na vida alheia sob o pretexto de ajudar. Também adora atuar como casamenteira nas horas vagas.

Hermione riu. – Agora entendi porque a Emma é sua personagem favorita.

— Jane Austen?

Hermione olhou para ele tão rápido que derrubou a taça. – Não me diga que você leu?

— Por que o espanto, Granger?

— Não imaginei que você estaria interessado no que uma autora trouxa teria a dizer. Especialmente uma mulher.

Severo a olhou chocado. – Estou confuso: sou um purista de sangue ou machista? Já fui chamado de muitas coisas, Granger, e confesso que a maioria era verdade. Mas machismo nunca foi um dos meus vários defeitos. – e depois, baixinho, ele completou. – Nem o purismo de sangue.

— Sinto muito, isso saiu errado. – ela corrigiu rapidamente, tentando explicar – Quis dizer que a maioria das pessoas subestima a profundidade da escrita austeniana e resume somente a concretização amorosa dos personagens, quando é muito mais que isso. É uma denúncia crítica, sob uma linguagem articulada e satírica, da sociedade britânica da época – da qual ela inclusive fazia parte.

Ela falou rapidamente e com paixão. – E não, não acho que seja um purista, mas também não acho que você estaria particularmente inclinado a literatura trouxa. Poucos bruxos estão, mesmo aqueles que são nascidos-trouxas.

Severo apenas assentiu quase imperceptivelmente, mas não respondeu. Um silêncio desconfortável desceu entre eles e Hermione quis se bater por ter sido tão insensível. Tentando preencher a lacuna entre eles, ela continuou. – Você tem algum autor favorito?

Severo olhou para ela com o rosto impassível de sempre, mas ela pode capturar um vislumbre de curiosidade e perplexidade passar em seus olhos. Foi tão rápido que ela poderia ter imaginado, mas poder observá-lo a tanto tempo, a realmente enxergá-lo, ela podia notar uma coisa ou duas sobre a sua personalidade.

— Gosto do Sr. Dickens. Oscar Wilde, Flaubert. Dos clássicos, gosto de Shakespeare. E no último ano tenho lido mais não-ficção.

Hermione assentiu, ainda meio em choque e confusa, tanto pelo vinho quanto pelo fato de que estava discutindo literatura – trouxa, não menos – com o homem que se recusara a interagir com ela no último mês. - Madame Bovary é um dos meus livros favoritos.

Severo cantarolou em resposta. – Uma mulher que corre atrás dos seus próprios desejos.

Hermione concordou, sua mente resgatando a citação que a jogou fora de seu próprio núcleo da primeira vez que lera.  – “Não conseguia agora convencer-se de que a calma que vivia fosse agora a felicidade que sonhava.”

O mestre de poções não escondeu a surpresa dessa vez.

— Não me olha assim. – Hermione disse, atropelando um pouco as palavras. O vinho realmente subiu rápido, ela pensou amargamente embora jamais admitisse em voz alta. – Não tenho nada a ver com a Emma Bovary. Não me vislumbro com nada que é supérfluo. Mas essa citação me pegou. As vezes acho que nos contentamos com uma espécie de calma que vem com a segurança e o conforto, e nos esquecemos de como é realmente se sentir tão... feliz. Como agora.

Severo assentiu discretamente, se perdendo tanto nas palavras dela quanto nos próprios pensamentos. A garota estava certa, claro. E ele sabia exatamente o que era se sentir daquela forma. – Mas as vezes a segurança e o conforto são as únicas opções na mesa. É o mais perto da felicidade que muitos vão chegar.

As palavras dele eram mais um reflexo da sua própria vida, que sempre fora conturbada, obscura, tensa. Ele sabia, mesmo que bem no fundo da sua mente, que por mais tranquila e ideal que os seus dias fossem agora, ainda faltava alguma coisa. Ele tentava deixar esses pensamentos de lado sempre que possível, claro, mas agora... essa garota, a Sr.ª Granger, colocou tudo à prova.

— Sim, mas é suficiente?

A pergunta aparentemente despretensiosa dela preencheu o curto espaço entre eles, lançando-os nas memórias e no passado que não poderiam fugir. Hermione queria voltar no tempo e devolver as palavras para si mesma, mas não era mais possível.

Quando pareceu que finalmente Severo diria alguma coisa, a conexão foi quebrada com Hermione sendo puxada da cadeira por um animado Sr. Bernard. – Vamos dançar, querida! Olha que noite linda!

Hermione riu, tentando se equilibrar entre os giros e parando apenas para olhar para trás. Antes de ser engolida pela pequena multidão dançante na areia, a última coisa que ela viu foram os olhos inescrutáveis dele a acompanhando.

...


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