Recomeços escrita por Sophia Snape


Capítulo 15
Me chame pelo seu nome


Notas iniciais do capítulo

Conversando com uma leitora muito querida esta semana, resolvi falar um pouco sobre as minhas inspirações para começar a escrever Recomeços.

Quando assisti Call me by your name pela primeira vez fiquei obcecada pela ideia de levar o nosso casal favorito para uma pequena cidadezinha na Itália, vivendo um amor de verão, carregado de dramas, romance, chuva, mar e finais felizes. Então o plot veio todo na minha cabeça em meados de 2018 e fiquei com o prólogo escrito por todo esse tempo.

Com a correria do dia a dia não consegui voltar a pensar nela, mas sempre que vinha uma ideia na minha cabeça corria para escrever e deixava. Daí veio o ano louco de 2020 e o que era uma série de notas perdidas acabou ganhando forma.

Até o meio do ano passado a história ainda se passaria na Itália, mas mudei de ideia quando meu melhor amigo, que mora na França, me mandou um pequeno vídeo de uma vila medieval no sul, e fiquei encantada.

Alguns meses depois esbarrei na série Virgin River, da Netflix, e me surpreendi com o quão parecidos eram os enredos, mas Recomeços NÃO é inspirada na série - embora eu goste muito dela. Apenas a cena do parto, que foi acrescentada depois, teve inspiração na personagem Mel, porque naquele momento me dei conta que a Hermione de Recomeços era muito parecida com a Mel da série.

Pensando nisso atualizei a nossa playlist no spotify. Boa leitura!



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Hermione passou a noite toda em claro, pensando em tudo que tinha acontecido naquele domingo. Ela rolou várias vezes de um lado para o outro na cama, apenas para entender que não conseguiria dormir com tantos pensamentos rondando a sua cabeça. Ela tinha muito o que processar, mas apenas a sensação do toque dele no seu rosto era o suficiente para tirá-la totalmente do eixo.

Ela simplesmente não conseguia parar de pensar na sensação, no quanto a sua pele reagira a presença dele, ao cheiro, tudo. E Hermione queria mais. O que teria acontecido se a Sra. Janet não tivesse interrompido? Ela teria feito alguma loucura como se inclinar na direção dele? Ela teria deixado seus sentimentos expostos? Pior, ela o teria beijado?

Hermione estremeceu com o último pensamento, sentando no centro da cama enquanto deixava a cabeça cair numa das mãos. Ela tinha que pisar com mais cuidado de agora em diante. Eles estavam finalmente se aproximando, e seria um erro cogitar que eles pudessem ter qualquer coisa além de uma amizade. Isso já era mais do que ela podia imaginar, já era o melhor cenário que ela conseguira vislumbrar.

O que ele havia dito sobre se reconciliar com os pais também não tinha saído da sua cabeça. Severo estava certo, é claro, e era tudo que Hermione queria. Parte dela sabia que sua vida não caminhava porque ela estava presa ao passado, com os pés ancorados na dor e as mãos algemadas pelo medo. Ela sabia que se quisesse recomeçar a viver, deveria fazer as pazes com o seu passado e se entregar para o presente, mas ela poderia fazer isso? Ela seria corajosa o suficiente?

A pergunta ficara ecoando na sua cabeça até que os primeiros raios de sol começaram a atingir o quarto, transpassando as cortinas brancas. Hermione suspirou, sentindo um gelo familiar na barriga, mas mais confiante que nunca. Ela tinha uma lista de prioridades para resolver na sua vida, e ela sabia exatamente qual seria a primeira.

Seria um processo doloroso, mas inevitável. Ela não poderia fugir para sempre. Mesmo que ela terminasse essa jornada sozinha e ferida, ela pelo menos teria o consolo de ter sido fiel a si mesma e verdadeira com quem ela amava. Era o suficiente. Teria que bastar.

...

Severo suspirou, impaciente. Ele tinha arruinado uma poção importante e não estava satisfeito. Qual foi a última vez que ele arruinara uma poção? Que ele se descuidara no laboratório? Nem nos momentos mais críticos daquele ano terrível que antecedera a Batalha Final ele havia cometido um deslize tão mundano.

— Onde você está com a cabeça, Severo? – ele murmurou para si mesmo, mas a resposta viera na imagem da jovem mulher que povoara todos os seus pensamentos desde que chegara na vila.

Ele fez um esforço para trazer a imagem da aluna sabe-tudo, irritante, dentes salientes e mãos ansiosas balançando no ar para responder uma pergunta, mas foi inútil. A primeira imagem em sua cabeça era de uma mulher extremamente bonita e competente, ousada, obstinada, brilhante. Estava ficando perigoso essa... aproximação? Ele nem sabia do que chamar o que eles tinham, mas independente do que fosse, era perigoso. Ele poderia lidar sendo o sócio dela, talvez até considerando uma amizade. Mas mais do que isso era demais.

Só que a questão era: ele já a desejava. Se ele tinha alguma dúvida, ficou claro quando ele não resistira e a tocara. Uma mecha, um cacho perdido, e tão tentador. Ele não queria nada mais que enrolar os dedos nos cachos dela, agarrando-a suavemente pela nuca, e puxá-la para um beijo avassalador, sentindo as curvas suaves do seu corpo contra o dele, engolindo-a em um abraço apertado, sentindo sua respiração de perto...

— Merda.

Ele levou as mangas até o cotovelo e abriu o primeiro botão da blusa branca de linho que costumava usar no laboratório quando estava sozinho. Resignado, embora ainda bastante irritado consigo mesmo por perder uma poção tão cara, ele baixou as chamas para que a poção se estabilizasse em segurança.

— Completamente arruinada.

O que ele estava pensando tocando-a daquela maneira? Nade de bom poderia vir disso, e ele teria que se controlar. – Quão idiota você é, Severo. – ele desistiu de tentar trabalhar, se resignando a velha cadeira do escritório enquanto se perguntava vagamente se 9h era muito cedo para o álcool. Dando de ombros, ele despejou o líquido no copo e se inclinou para trás, escutando o rangido familiar do couro desgastado em contato com a madeira.

Ele perdeu totalmente a noção do tempo até que escutou o barulho da mulher que dominara os seus pensamentos trabalhando na porta da entrada. Mentalmente, ele listou cada passo dela: ela caminharia até o balcão, tirando as luvas e aquela toca de tricô ridiculamente adorável que ela passara a usar desde que o inverno começara a se infiltrar com mais força pela região; depois, ela guardaria as chaves na segunda gaveta à esquerda e passaria o olho para ver se tudo estava em seu devido lugar, e então ela despejaria o café fresco da padaria do Sr. Bernard na garrafa térmica que ela comprara a algumas semanas e reporia as balas no pote de vidro da mesinha de canto. Daí ela suspiraria satisfeita e mudaria a placa de fechado para aberto, e caso ele não estivesse na loja, ela caminharia até os fundos para cumprimentá-lo, porque dificilmente algum cliente chegaria antes das 10h.

Seguindo o padrão dos últimos dias, eles conversariam sobre coisas triviais, fariam até algumas brincadeiras, se alfinetariam, e então começariam a discutir sobre a Botica. O dia se passaria num borrão, porque quanto mais a loja crescia, mais pedidos chegavam e eles tinham que se dividir entre a produção de poções e o atendimento externo.

Seus pensamentos foram interrompidos quando ele ouviu a porta que levava ao laboratório se abrindo e fechando em seguida, indicando que ela estaria com duas xícaras de café: um, com um pouco de leite e três cubos açúcar (e um cubo extra que ela colocava quando achava que ele não estava olhando), e o outro puro, bem escuro e fumegante, do jeito que ele gostava de tomar pelas manhãs – especialmente as bem frias.

— Entre. – ele murmurou, abrindo a porta com um gesto displicente.

— Bom dia. Café?

As bochechas dela estavam vermelhas de frio, assim como a ponta do nariz. Seus olhos cor de mel brilhavam em contraste com as chamas de lareira ao lado dele, e os cachos despediam para todos os lados num coque feito as pressas. Adorável.

— Sim – sua voz estava rouca, lânguida, como se tivesse custado muito para dizer as palavras mais simples – obrigada.

Ele aceitou, não perdendo que o olhar dela vagou para a sua roupa amarrotada. – Noite difícil?

Severo cantarolou em resposta. – Você pode dizer isso.

— Algum problema?

— Uma poção difícil que exigia mais da minha atenção. – não era uma mentira – Quis adiantar os lotes das poções restauradoras, mas acabei perdendo alguns ingredientes.

Ele não precisava estar olhando para ela para saber que a tinha pego de surpresa. No entanto, ela foi educada o suficiente para não prolongar o assunto. – Tenho algumas burocracias para olhar agora, mas se quiser posso te ajudar depois do expediente.

Severo a olhou atentamente. – Você está ficando muito além do horário de expediente. Não seria justo.

— Eu sou sócio da Botica agora, esqueceu? Não é como se você estivesse se aproveitando de um funcionário. – ela brincou, satisfeita pelo pequeno sorriso que conseguiu arrancar dele.

— De qualquer forma, vamos ter que voltar a conversar sobre a possibilidade de contratarmos alguém no futuro. Você está sobrecarregada.

— Nós dois estamos. Vamos ter um tempo difícil até o Natal.

Severo acenou em resposta, se levantando da cadeira. – Chegaram os dois novos contratos dos hospitais bruxos da Alemanha. – ele entregou a ela dois envelopes – Quanto ao Natal, vou conversar com o Bernard para saber se há alguém na vila disposto a ficar no balcão.

— Você acha seguro ter um trouxa tão perto do laboratório?

Ele ponderou, encostando na beirada da mesa. Seus braços se cruzaram no peito quando ele respondeu. – Não é o ideal a longo prazo, claro, mas pode funcionar só por algumas semanas.

Hermione acenou, olhando rapidamente para o relógio. – Conversamos mais sobre isso durante o almoço?

Severo acenou, dando a volta na mesa. – Não vou poder sair para almoçar hoje, a poção exige que eu mexa de trinta em trinta minutos pelas próximas seis horas.

— Tudo bem, me chame se precisar. Ah, quase esqueci. Há uma rede de lojas no norte da França querendo fechar contrato. Já disse que não temos tempo para uma nova cartela de clientes, mas estão irredutíveis.

— Impossível aceitar novos pedidos agora.

— Na verdade, seria a partir de janeiro. Sei que estamos apertados, mas a proposta me pareceu interessante.

— Falamos sobre isso depois.

— Certo. Sobre o almoço, tomei a liberdade de pedir o seu quando estava na padaria mais cedo hoje. Bernard vai mandar alguém entregar por volta de 13h.

Ela disse, sorrindo antes sair e fechar a porta atrás de si. Severo suspirou e sentou pesadamente na velha cadeira, fechando os olhos enquanto massageava a têmpora. Felizmente, ele tinha muito trabalho pela frente, pois ceder aos seus pensamentos seria um caminho sem volta. Pior, um que ele trilharia tranquilamente e de boa vontade, se significasse que a sua vida a partir daquele ponto seria sentir o que ele estava sentindo: felicidade. Pura e simples. Só de olhar para ela seu coração se enchia de algo que ele achou que nunca mais sentiria, e que ele tinha muito medo de nomear.

Antes fosse curiosidade, desejo. Luxúria. Mas ele sabia que era mais do que isso. E era essa a linha que ele não queria cruzar. E o mais estranho era que toda vez que ele estava com ela, a imagem da mulher misteriosa tomava forma e voltava com força para a sua cabeça. Ele nem sabia se ela era real, se alguém realmente estivera no quarto do St. Mungus com ele durante todos aqueles meses de semiconsciência, mas por algum motivo estranho sua mente estava gostando de pregar peças nele, colocando um rosto na imagem de um fantasma, de um delírio.

E agora a realidade estava novamente brincando com ele, trazendo para a sua vida uma pessoa que ele jamais imaginara que mudaria tudo. Que viraria toda a sua vida, todas as suas certezas, de cabeça para baixo. Tudo que ele achava que sabia, tudo que ele considerava certo, simplesmente não bastavam. Ele queria... o que, exatamente? O que ele tinha quando estava com ela. Essa vontade de ter coisas que ele considerava impossíveis, que ele desistira a muito tempo. A vontade de sair para jantar, de conversar, de segurar a mão dela. De abrir o seu longo casado preto para abriga-la do frio enquanto caminhassem na praia. Queira preparar o jantar e, com sorte, o café da manhã.

E essa noção o atingiu tão profundamente que tudo que Severo queria era odiar a Srta. Granger, era culpá-la por desejá-la. Mas ele não podia. Mesmo sabendo que jamais teria os seus sentimentos retornados, ele não se ressentiria disso. Ao contrário, ele abraçaria esse sentimento porque pela primeira vez o amor – sim, que se dane, ele daria o nome ao sentimento mesmo que isso custasse caro – não trazia nada de ruim. Ele se sentia rico. Grato. Ele queria abraçá-la por se sentir vivo. Porque só o fato de amar já era o suficiente.

Ou pelo menos ele esperava que fosse.

...

— Que barulho infernal é esse? – ele perguntou quando um toque agudo soou de dentro da bolsa dela.

Hermione riu, apertando um botão lateral no aparelho trouxa para guardá-lo de volta. – É um celular, Snape. Você certamente sabe o que é isso.

— Claro que sei. Quis dizer o que você está fazendo com um.

— Presente da Gina. Era mais fácil falar com ela e o Harry assim. Além do mais, veio em boa hora. Seria estranho se nós dois não tivéssemos um celular. É praticamente um pré-requisito no mundo trouxa atualmente. Sem falar que é bem útil.

— Não consigo ver nenhuma utilidade nisso.

— Ora, você pode falar com as pessoas onde quer que elas estejam. Também pode mandar mensagens de textos quase instantâneas. É um aparelho-

— De tortura. Me diga, Granger, por que eu iria querer ter um meio mais fácil de falar com outras pessoas? Escute o que eu digo, esse pequeno aparelho infernal na sua bolsa ainda vai enlouquecer toda uma geração de trouxas.

Hermione sorriu, concordando em partes com ele. – A tecnologia é importante. Os trouxas tem se superado a cada ano. O século XX foi um verdadeiro salto para um mundo completamente novo. Imagine onde eles chegarão daqui a, não sei, 15 anos?

— Tudo é tecnologia, Granger. – ele fez uma pausa, pedindo a ela para passar o sal – Uma roda era tecnologia, uma caneta é uma tecnologia para quem antes usava pena e tinteiro. Não nego que o século XX realmente deu um salto muito mais rápido que todos os séculos anteriores, e em parte porque duas grandes guerras quebraram todos os parâmetros do que era de fato a humanidade, mas essa mesma busca por inovação pode ser também o cerne do problema.

— Você quer dizer que a busca por soluções poderia desencadear problemas que não seríamos capazes de resolver.

— Não digo a busca por soluções, embora seja mais ou menos essa a ideia. Digo uma busca desenfreada por outra coisa.

— Poder? Dinheiro?

— Ambos. É um sistema capitalista, afinal de contas.

— Faz todo sentido, claro. Mas o que você acha que pode acontecer? – ela apoiou o queixo na mão esquerda, cada vez mais interessada pelo assunto – Uma terceira guerra?

Ele deu de ombros, tomando um longo gole de água gaseificada. – Talvez. Mas não do jeito que você está imaginando.

— Um inimigo invisível, talvez.

Ele deu de ombros. – Provável.

— Você acha que seria pior uma guerra como as anteriores, ou um inimigo invisível, como a própria natureza?

Severo pensou um pouco, considerando. – O segundo, claro. A guerra entre os homens, entre iguais, por mais terrível que possa ser – e nós dois sabemos muito bem como pode ser – acaba. Eventualmente. Com muita tragédia. Muitas mortes desnecessárias. Mas tem um fim. Com um inimigo invisível... Com a própria natureza? Difícil dizer.

— Você acha que não encontraríamos maneiras de permanecer aqui, na Terra?

— Eu acho que ela é o nosso lar, mas talvez não para sempre. Quantos anos a humanidade está na Terra? E a quantos milênios a Terra existe? Somos dispensáveis para este planeta. Vulneráveis. Suscetíveis.

— Nada como um tópico leve para o almoço. – ela sorriu, se servindo de mais salada.

— Eu sinto muito.

Ele parecia genuinamente envergonhado, e Hermione ficou fascinada com o adorável tom de rosa que atingiu o seu pescoço.

— Não sinta. Conversar com você é sempre muito estimulante. Agora vou dormir pensando em quantas maneiras a natureza pode nos expulsar daqui.

Ele sorriu, divertido. – Muitas, tenho certeza. Aposto em tufões.

— Ondas gigantes? Invasão alienígena.

— Muito hollywoodiano. – ele dispensou, e Hermione o olhou em choque antes de explodir em risadas.

— E desde quando você usa expressões como ‘muito hollywoodiano’? Eu nem sabia que você gostava de cinema.

Severo riu, dobrando o guardanapo. – Caso você tenha esquecido, Hermione, eu nasci num bairro trouxa. Passei toda a minha infância e início da adolescência num bairro industrial muito comum e sem graça. Não tinha amigos, e a minha única desculpa para sair de casa era o cinema.

As implicações do que ele acabara de dizer pairaram no ar denso entre eles. Hermione quase podia ver o menino na sua frente, vulnerável e solitário, muito provavelmente vítima de alguma violência doméstica. Hermione não sabia do passado dele para além do amor que ele tivera pela mãe de Harry, e ela nem se sentia confortável em instigar mais. O passado era dele, e só dele, de mais ninguém. Mas não era difícil deduzir que a sua infância fora difícil, na melhor das hipóteses. E o modo como ele olhava fixamente para o seu prato, os dedos segurando com uma força desnecessária os talheres frágeis, era toda a confirmação que ela precisava.

— E o que você assistia? – Hermione decidiu mudar de assunto, e ele pareceu relaxar com isso enquanto pensava na resposta.

— Fiquei fascinado por Uma Odisseia no Espaço. Claro que eu não compreendia, naquele momento, até onde a genialidade do Kubrick ia, mas fiquei completamente admirado. Para além disso, claro, a maneira como os filmes são feitos, como são projetados, sempre foi um mistério a parte para mim. Não só a beleza dos filmes em si, mas...

— Toda a tecnologia envolvida. – ela completou, concordando, porque era exatamente assim que ela se sentia quando estava numa sala de cinema, mesmo que já fizesse muito tempo. – Os trouxas fazem a sua própria magia.

Severo inclinou a cabeça, seus olhos negros brilhando com algo que ela não conseguia definir exatamente. – De fato.

— Não lembro a última vez que fui ao cinema. Acho que foi no terceiro ano, durante as férias.

— Qual filme? – ele perguntou, curioso, e ficou ainda mais interessado quando ela corou.

— O Rei Leão. – ela respondeu, franzindo o nariz de uma maneira adorável.

— Não tive a oportunidade de assistir, embora esteja mais ou menos familiarizado. E você nunca mais voltou?

Ela deu de ombros, olhando fixamente para a mesa. – Havia tanto a ser feito. Simplesmente não tive tempo. Além disso... – Hermione parou, sem entender porque quando estava com ele as palavras simplesmente jorravam da sua boca.

— Além disso? – ele insistiu.

— Seria muito doloroso. Todas as memórias que tenho no cinema, ou no teatro, são com os meus pais.

— Entendo.

— Costumávamos assistir muitos musicais também. Fomos várias vezes ao West End. Minha mãe se apaixonou completamente pelo Michael Crawford, e meu pai – Hermione começou a rir com a lembrança – bem, odiava. Ele morria de ciúmes.

— Qual era o musical?

— O Fantasma da Ópera.

Severo franziu o cenho, sabendo que o nome era familiar embora não conseguisse extrair nenhuma memória disso. Musicais eram caros, muito além do que ele podia frequentar na época. E depois... bem, não era como se ela tivesse tido uma vida nos anos que seguiram.

— É um romance gótico no final do século XIX. Foi adaptado para os palcos em 85 e é sobre um homem desfigurado que vive nas catacumbas da Ópera Garnier.

— O que acontece? – ele se inclinou sobre a mesa, apoiando os cotovelos na madeira, de repente muito interessado na história.

— Ele se apaixona por uma garota do coro, que por acaso tem uma voz linda, e a ajuda a se tornar uma Primma Dona. É um personagem muito intrigante, complexo, cheio de nuances. E é perigoso porque ele, o Fantasma, tem um passado, falhas, muitas cicatrizes, - físicas e emocionais, e você quer apenas consolá-lo, entendê-lo. Mas sabe que é perigoso. É perigoso porque ele é falho, comete erros, e- Hermione parou, de repente se dando conta de que não parava de falar.

— Continue. – Severo sorriu, fazendo um gesto com as mãos.

— Merlin. – ela escondeu o rosto nas duas mãos, sentindo as bochechas arderem.

— Agora estou curioso.

— Bem, você vai ter que ler.

— Ou talvez eu vá até Londres e assista.

Hermione o olhou, cética.

— Você está ciente que em um musical as pessoas vão cantar e dançar periodicamente no palco, certo?

— Talvez eu deva considerar só o livro então.

— Talvez. – ela sorriu, concordando – E já que estamos falando de romances góticos que se passam na Cidade Luz, temos uma proposta para parcerias em Paris. Me pareceu muito promissor.

Severo suspirou, recolhendo os pratos e talheres. – Que tipo de parceria?

— É uma linha de cosméticos trouxa. Parece que um dos diretores criativos estava aqui a passeio durante o verão e comprou um dos cremes antienvelhecimento. Ele apresentou para o resto da equipe e ficaram fascinados pelo resultado, e mais ainda por ser cem por cento natural.

Severo assentiu, satisfeito. – Por acaso eu tenho um fornecedor competente. Toda a sua plantação é cem por cento orgânica.

 - Eu ia mesmo te perguntar sobre isso. Vi que você importa vários produtos da Escócia. É alguém que conheço?

Severo inclinou a cabeça, um brilho malicioso em seus olhos. – Mais que isso. Alguém que você estudou – e ajudou – ao longo dos anos em Hogwarts.

Hermione pensou por um momento antes que a realização a atingisse. – Neville!

Severo acenou ligeiramente em resposta, se recostando novamente na cadeira.

— Mas-

Centenas de perguntas correram pela mente da Hermione naquele momento, e ela tinha certeza que parecia tudo menos atraente com aquela expressão de puro choque em seu rosto.

— Mas? – ele instigou.

— Ele sabe? O Neville sabe que fornece ingredientes bruxos para você?

— Correção: ingredientes bruxos e trouxas. Não há magia nos produtos trouxas, Hermione, apenas um conhecimento vasto e muitas tentativas e erros. Você já me viu fazer vários deles, sabe disso.

— Sim, eu só, não sei... Quero dizer, Neville!

— Ele sabe. Fizemos uma espécie de parceria que foi muito benéfica para ambos. O garoto sabe o que faz, tenho que admitir, e ele prometeu que não diria nada a ninguém sobre esse arranjo.

Severo deu de ombros como se não fosse nada demais, enquanto Hermione ofegava em surpresa.

— Que tipo de parceria?

— Você é realmente uma criatura muito curiosa para o seu próprio bem, Hermione Granger.

Ela corou, sem graça. – Peço desculpas. Fiquei surpresa, só isso.

— Bem, sobre essa parceria: faça um relatório sobre a margem de lucros e a demanda que eles estão pedindo. Vamos analisar com calma.

— Tudo bem – Hermione concordou, levantando – Vou fazer uma ligação e solicitar mais detalhes.

— Me mantenha atualizado. – Severo levitou os pratos e talheres até a pia, conferindo o relógio. Estava quase na hora de mexer a poção novamente, ele pensou. Vagamente, ele notou enquanto ela o ajudava a limpar a mesa improvisada do almoço e se organizava para voltar para a loja.

Num rompante, num súbito momento de loucura, insanidade, ou qualquer coisa equivalente que ele não saberia denominar naquele momento, Severo a chamou.

— E Hermione?

Ela olhou para ele em expectativa, colocando as mãos nos bolsos de trás da calça jeans. Ele parecia ansioso, deslocado, muito diferente da sua postura habitual no laboratório, que era um ambiente totalmente confortável para ele.

— Sim?

Por vários segundos Severo não conseguiu falar nada. Os pensamentos corriam num turbilhão, mas as palavras não conseguiam sair da sua boca. Ele tinha certeza que parecia um idiota, mas não conseguia fazer o seu corpo funcionar. Era só perguntar, apenas falar com ela, mas quando ele estava prestes a abrir a boca um apito soou da bancada, indicando que era hora de mexer a poção ou metade de um dia de trabalho iria para o lixo.

Ele desviou o olhar, dando dois passos longos e apressados para o caldeirão. O modo Professor Snape assumiu todos os seus gestos, e Hermione soube naquele momento que o que quer que fosse a sua pergunta, se perdera no espaço entre eles, dissolvendo junto com o vapor da poção.

— Era sobre a revisão dos contratos da Alemanha – ele mentiu, soando muito convincente como qualquer espião aposentado soaria. Mas não para ela.  – Nada que não possa esperar.

O silêncio era tão opressor que nenhum dos dois sequer ousou se mexer. Mesmo de costas, Severo sabia que ela estava parada olhando para ele, ainda esperando que ele perguntasse o que realmente queria. Mas quando a pergunta original não veio, ele escutou a resposta dela num murmúrio, algo como “Tubo bem, estarei na loja se precisar”.

Ele apenas assentiu e não ousou respirar até que ouviu o click na porta, indicando que ela saíra do laboratório. Depois de horas tenho um monólogo consigo mesmo sobre não se envolver, sobre se afastar, sobre tê-la como amiga e nada mais, tudo que ele conseguia pensar naquele momento era o quão idiota ele parecia, porque tudo que ele queria era chamá-la para um encontro.

...

— Severo, nós não decidimos sobre a marca da Botica.

Ele levantou os olhos do relatório que estava lendo, e Hermione sabia que tinha que pisar com cuidado para tocar novamente no assunto. Na última vez que conversaram sobre a logomarca ter o desenho do patrono dela, a discussão saíra dos trilhos e ele se ofendera com a pergunta.

— Eu dei uma opinião, cabe a você decidir agora. – ele respondeu.

— Você sugeriu a lontra, mas eu acho que faria mais sentido se fosse algo que representasse nós dois.

Ela corou com a última parte da frase, como se houvesse muito mais implicações ali para além da superfície.

— Realmente não é importante para mim, Granger.

— Mas deveria. A Botica é fruto do seu trabalho, mais do que justo que tenha algo a ver com você.

— Isso tudo para saber o meu patrono? Quanta sutileza. – Severo provocou, e Hermione sabia que estava sendo testada.

— Será que você pode conversar comigo sem medir a profundidade das minhas intenções a cada segundo? – ela estourou, impaciente – É claro que eu estou curiosa, Snape, mas não estou fazendo nenhuma artimanha para tentar descobrir isso. O sonserino aqui é você, não eu.

Severo a olhou com os olhos ligeiramente arregalados, e ela quase recuou. Quase.

— Muito bem. – ele finalmente falou, jogando os óculos displicentemente sobre a mesa lotada de pergaminhos, relatórios e contratos – Se você quer mesmo saber, Granger, eu não sei qual é o meu patrono. Sinto que ele mudou, mas não saberia dizer porque não tive a necessidade de conjurar um desde o fim da guerra. Satisfeita?

Hermione segurou o olhar dele por um minuto, chocada demais para dizer qualquer coisa. Na última conversa que tiveram ele disse que tinha certeza que não era mais uma corsa, mas como ele poderia saber?

— E você não está curioso? – ela insistiu, ciente de que estava atingindo outro nervo.

Severo estreitou os olhos, ficando de pé. – Por que eu estaria?

Hermione franziu a testa, olhando para ele como se fosse óbvio. – Porque o feitiço do patrono é muito poderoso, além de ser uma ótima forma de comunicação.

Ele deu de ombros. – Eu dificilmente preciso me defender de dementadores no momento, preciso? Além disso, falo com poucos bruxos atualmente. A maioria dos fornecedores e empregadores bruxos faço contato por cartas.

— Mas- A mente dela correu, querendo muito fazer a pergunta de um milhão de euros. Ele pareceu entender o rumo dos seus pensamentos.

—  Muito cuidado com a próxima pergunta, Granger.

Ela desviou o olhar, decidindo que tinha insistido demais. – Não é nada, realmente. Só fiquei pensando em quais combinariam com você. Um pássaro-trovão? Uma pantera, talvez?  

Severo soltou uma risada curta. – Pantera?

— Bem – ela deu de ombros, sentindo as bochechas arderem.

— Se vamos trabalhar na linha dos animais que tem a cor preta, ou que tenham asas, e presumo que você esteja os considerando pelas roupas que usava quando era um professor em Hogwarts, teremos que considerar também os urubus, algumas espécies de gatos e-

— Um morcego, talvez? – ela sugeriu, cruzando os braços sobre o peito e levantando uma sobrancelha num gesto claro de divertimento.

— Não seria de tudo ruim, suponho. – ele sorriu maliciosamente para ela.

— Se um dia você tentar conjurar um patrono de novo, não se esqueça de me avisar.

— E como você vai lidar com a sua curiosidade grifinória até lá?

Ele estava a provocando, e Hermione sabia disso. Mas ela apenas se virou para ele, com toda a graça que a maturidade pode proporcionar, e sorriu. – Não sou mais uma aluna ansiosa, professor. Eu consigo controlar.

— Embora – ela continuou – Do jeito que você é irritante, não duvido que nunca mais conjure um só para me provocar. Ou punir.

— Posso pensar em punições mais interessantes, Granger. – o comentário saiu antes que ele pudesse fazer alguma coisa sobre isso.

— Hermione.

Severo piscou, confuso. – O que?

— Me chame de Hermione. Já passamos disso, não concorda? – sua voz era suave e provocativa, como a voz de uma sereia numa noite estrelada. Ele mal se deu conta quando ela saiu, seu perfume preenchendo todo o ar em volta dele.

Severo ficou parado olhando para o lugar onde ela estava por vários minutos, sentindo uma sensação estranha de aperto no peito. Várias perguntas bombardeavam a sua mente. O que era isso entre eles? Ela sentia também, ou ele estava sozinho nessa insanidade? Por que ela o deixava tão perturbado?

E por que, por Merlin, isso não era algo ruim?

...


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