Missão Gaia escrita por Kacchako Project


Capítulo 6
Narciso




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O capacete de Katsuki começava a lhe incomodar de maneira descomunal, parecia mais apertado do que nas outras rotações, como se não tivesse sido feito sob medida. Mas, como não bastava estar com a cabeça inundada pelos flashes da briga ridícula que tivera com Ochako, a merda do capacete tinha que tentar explodir o resto de sanidade que ainda possuía. Tentou alongar o pescoço, sem tirar os olhos do monitor à sua frente, para se acomodar melhor e relaxar a musculatura, só que não adiantou nada. Neste momento, a proteção essencial para qualquer piloto estava, simplesmente, sendo um acessório infernal. Só que Bakugou não tinha nenhum segundo disponível para refletir ou se livrar de seus incômodos, ele tinha que se concentrar na sua missão atual. Não podia falhar.    

— Começando contagem regressiva, em seguida, assuma o controle manual, piloto.

— Positivo, Tenente. 

— 10, 9, 8… — Ouviu a voz de Hawks fazendo a contagem e, inevitavelmente, sentiu um arrepio percorrer seu corpo. 

Bakugou sabia exatamente o que fazer, mas isso não o deixava menos apreensivo. As mãos suavam, os ombros estavam tensos e os olhos, cansados dos períodos mal dormidos, ardiam incessantemente. Estava exibindo a pior versão de si. Nunca imaginaria que para ser um piloto de sucesso, deveria estar tão ferrado como estava nesta rotação, nem a roupa oficial de viagem espacial melhorava sua aparência, Katsuki estava pior que o sistema de reciclagem de resíduos da Ártemis. Só que nada disso importava. Ele já havia chegado muito longe, já havia renunciado pessoas demais, tempo demais, em um único propósito: ser o grande herói da humanidade. Katsuki Bakugou em hipótese alguma falharia em sua missão.

Então, sentindo-se magicamente motivado, acompanhou o fim da contagem regressiva e assumiu rapidamente o controle da nave. Sorriu orgulhoso ao notar que fizera o movimento no segundo exato, mas deixaria para comemorar quando a missão fosse bem sucedida. Portanto, manteve as mãos na ignição e observava atentamente a trajetória da nave no pequeno monitor, esperando o momento exato em que sairia da mesosfera e iniciaria o processo de desaceleração. Tudo havia sido cuidadosamente calculado, Katsuki só precisava cumprir perfeitamente o protocolo da missão.

— Um minuto para desaceleração, em seguida, prepare os propulsores. — Ouviu mais uma vez a voz do Tenente. 

— Positivo — respondeu, sentindo a nave chacoalhar ao seu redor. 

— Atenção… 5, 4, 3… 

Mas, de repente, a contagem foi interrompida e substituída por um alerta de interferência que piscava loucamente em seu monitor. Merda! Ele não podia mais dispor da comunicação externa, teria que confiar em seu próprio timing e finalizar o pouso. Puta merda, o universo devia odiá-lo mesmo. E, sem pensar muito, Bakugou puxou a ignição e iniciou a desaceleração, enquanto acionava os comandos certos para voltar a visualizar o trajeto e fazer sua própria contagem até o solo. 

Quando finalmente conseguiu visualizar sua posição, constatou que tinha demorado demais no processo de desaceleração. Cacete, ele havia feito uma merda enorme! E, ironicamente, a unica coisa da qual se lembrava era da voz de Ochako falando: "você é um idiota", que soova mais alto do que a barrulheira da lataria da nave. Talvez ele fosse um idiota mesmo, já que, em uma hora vital, sua mente burramente o levava de volta àquela briga estupida. Será que ele queria se matar? Não! Katsuki era o melhor piloto daquela estação espacial! Não morreria sem antes concluir a missão. Foda-se a voz doce e triste de Ochako, ele daria um jeito nesta situação.

Analisando o velocímetro e o ponto da atmosfera em que estava, Bakugou concluiu que a única maneira de sobreviver era acionando os propulsores antes de atingir a marca ideal de 0 km/h. Seria um pouso de risco e caíria longe do local previsto, mas, se sobrevivesse, esse seria o menor de seus problemas. Claro que seria muito melhor seguir protocolo inicial e finalizar a missão sem danos, entretanto, todo o treinamento com Hawks também o preparara para momentos como esse; por isso não hesitou em ligar os propulsores e começar seu plano improvisado. 

Ele podia até ser um babaca, mas ninguém podia negar suas habilidades. Mesmo a  nave chacoalhando sem parar, parecendo que poderia se desfazer a qualquer momento, Bakugou tentava manter a concentração. Observava a nave chegar cada vez mais perto do seu destino, enquanto o combustível dos propulsores era consumido rapidamente, mais rápido do que ele havia calculado. Puta merda! O que ele tinha na cabeça?! Tinha que ter esperado a nave desacelerar um pouco mais, assim não gastaria tanto combustível. O cenário era o pior possível e não havia nada que pudesse fazer. Calculou mal, em breve os propulsores desligariam e ele continuaria em queda livre. E, mais uma vez, a única coisa que vinha a sua mente era Ochako gritando: Você não é um semideus!              

Com certeza Katsuki não era um semideus. Semideuses concluem suas tarefas e eram ovacionados ao término, ele era só um cara que não conseguia tirar a namorada da cabeça. Maldita, Bochechas; maldita, Cara de Lua. Fazia setenta e duas horas que haviam brigado, só que os sentimentos permaneciam tão aflorados quanto na rotação em que discutiram. Por que ele a deixara ir? Por que não a impediu e resolveu aquela diferença imbecil na mesma hora? Maldito orgulho! Era por causa dele que estava nesta situação. Sorriu sem humor e encostou-se confortavelmente na cadeira, sentindo as vibrações intensas enquanto esperava o fim daquele pouso.

As luzes piscavam freneticamente, o barulho enlouquecedor atravessava seu capacete perfurando seu cérebro como uma faca, a instabilidade da nave revirava seu estômago e a ansiedade pelo fim o consumia a cada instante. Por que essa porra não acabava logo? Quando enfim ouviu os propulsores desligarem e notou as luzes lentamente se apagando, sentiu um alívio. Você está sendo um idiota egocêntrico!, a voz dela gritou antes de tudo escurecer e Katsuki não ouvir mais nada.

— Missão finalizada. Resultado: um fracasso total! — exclamou o Tenente enquanto resetava o sistema de simulação.

— Tsk… esse capacete de merda me atrapalhou — disse Katsuki, saindo do módulo, que replicava uma nave, antes de tudo voltar ao marco zero.

— Hum… — Hawks coçou o queixo. — Eu diria que você demorou a perceber a falha na comunicação, consequentemente, atrasou a desaceleração, consumiu todo combustível com a ativação precoce dos  propulsores, e morreu no pouso. Mas o capacete também pode ser culpado pelo seu fracasso.

— Cacete! — reclamou, jogando o capacete no chão. — Essa porra não abafa os ruídos, não tem como pilotar assim, Tenente.

— Vou anotar isso — falou, acomodando-se em sua cadeira e observando Katsuki. — Mais alguma desculpa?

Katsuki não respondeu, afinal, o que ele diria? Briguei com minha namorada e agora nossa discussão não sai da porra da minha cabeça! Não, nem ferrando ele diria isso.    

— O céu é um lugar ótimo, sabe — Hawks começou a falar, ignorando o mau humor do piloto e o real motivo do fracasso. —  E pilotar é uma das melhores sensações do mundo. Ligar os motores, ouvir os ruídos enquanto sente o coração aquecer junto com a nave, e depois voar pela imensidão do universo… É incrível.

Bakugou jogou-se no chão e sentou ao lado de seu capacete, não estava com paciência para ouvir o discurso do Tenente, sempre se  perguntava o porquê de ele ser tão fora do padrão. Era bem mais fácil só receber uma advertência e repetir a simulação, mas não… Hawks insistia em ser diferente. Bakugou odiava a irreverência do seu superior, meio debochado e agindo como se não se importasse com o que acontecia ao seu redor. Era um verdadeiro pé no saco, porém, como suas habilidades e números — 98% de aproveitamento — eram incomparáveis, restava a Katsuki apenas ouvi-lo.

— E a visão é sempre de tirar o fôlego — continuou Hawks, encarando o teto da estação espacial. — E quer saber... Não tenho grandes interesses na Missão Gaia. Não partilho desse desejo que a humanidade tem de pôr os pés no chão e ficar preso a gravidade. Voar me parece bem mais interessante. Claro que respeito o legado do Comandante da paz, e de todos os outros, mas não me importaria em ficar por aqui. Ficar voando entre as estrelas...

— Tsk, então por que caralhos aceitou treinar os pilotos?  — perguntou impaciente. — Pode ficar por aqui se quiser, ninguém se importa.

— Talvez… — Hawks riu, dando de ombros e cruzando os braços. — Se nossa situação não fosse emergencial, e se uma pessoa em especial não se importasse, eu não me esforçaria tanto. Mas ela faz tudo valer a pena, piloto. Ela e o pirralho que tô esperando nascer. Além disso, eu adoraria comer uma carne de verdade, um frango ou talvez um peixe...

Puta merda — murmurou, esfregando as mãos no cabelo. Detestava quando o Tenente começava a falar sobre comida. — Podemos voltar ao simulador?

— Minhas motivações não são as mais nobres — disse, ignorando a pergunta de Katsuki —, mas elas estão claras em minha mente: comer carne de verdade e que o pirralho nasça na Terra. Esse é o combustível que sustenta minhas asas. Por isso eu te pergunto, piloto, o que sustenta sua asas?

Hawks, mesmo com a postura desleixada, encarava Katsuki seriamente. 

— A vontade de ser um herói para a humanidade, eu quero provar que sou o melhor piloto dessa espelunca — falou arrogante, cuspindo a resposta tão pronta quanto sua determinação em alcançá-la.

— Hum… Shouto tinha razão quando disse que você era parecido com o Comandante Todoroki. — Hawks levantou-se e espreguiçou-se, enquanto Katsuki esperava que ele dissesse mais alguma coisa. — Esse é um bom combustível, mas tá incompleto. 

— De que merda tá falando agora?

— Você tem muito potencial, Katsuki, chegou rapidamente aos noventa por cento de aproveitamento nas simulações e não hesitou em aceitar a missão mais incerta dos últimos tempos. Mas, qual é?! Ninguém voa sozinho! O que realmente te motiva, piloto?

— Tsk, salvar todas as pessoas na Ártemis — respondeu desviando o olhar. 

— Alguém em especial? 

— Podemos parar com a psicologia barata e voltar pra simulação, Tenente? 

— Acho que entendi, vocês brigaram... — concluiu, balançando a cabeça de maneira compreensiva. — Suas asas parecem meio quebradas mesmo.

— Não é da sua conta, Tenente — rosnou, segurando-se para não xingá-lo. 

— É verdade… Isso foi bem entediante — falou, fingindo frustração. — Mas eu só estava ponderando se atualizo o Comandante ou não sobre o desempenho do piloto que “salvará” os remanescentes.

— Eu posso repetir a simulação, cacete — disse, levantando do chão e pronto para melhorar seu desempenho.     

— Ah, não! — negou, pegando seu fone de ouvido e indo em direção a saída. —  Minha esposa tá me esperando pra almoçar, então, pode tirar o resto da rotação de folga. Talvez assim sua visão fique menos turva e você consiga fazer um bom voo; talvez consiga enxergar suas reais motivações também.

— Mas que porra… — reclamou, tirando a roupa oficial de voo e jogando-a com raiva no chão.

O plano de Bakugou era passar a rotação inteira treinando, cansar os músculos e a mente, levá-los à exaustão, para que assim que chegasse em sua cabine só lhe restasse a opção de dormir. Apagar totalmente e não pensar em Ochako, que o evitava de todas as formas possíveis. Não queria pensar que tentou contato, tentou procurá-la no módulo de manutenção, no módulo hospitalar e que até mandou mensagem para a Alien, que só lhe respondera: a ‘Chako precisa de um tempo, Bomber. Será que ela não entendia que isso era justamente o que ele menos tinha neste momento? 

— Ah, quase me esqueci… — disse o Tenente interrompendo seus pensamentos, já na saída do módulo. — Com mais o fracasso de hoje, seu rendimento caiu para oitenta e nove por cento. Vai ter que se esforçar mais para ser o grande herói, piloto!

E sem que Katsuki pudesse contestá-lo, Hawks saiu tranquilamente com as mãos no bolso e assobiando. Tenente Frango desgraçado! Não sabia de nada e ficava dando palpite em sua vida; ele se dedicara ao programa experimental como nenhum outro piloto, portanto, foda-se o mau desempenho das últimas rotações e suas motivações aparentemente incompletas, Bakugou completaria a missão. E como Ochako não queria conversa, ele também não tentaria mais nenhum tipo de aproximação, deixaria a questão em aberto e sim, continuaria voando sozinho.     

 

[...]

 

Depois de horas analisando as imagens dos satélites Flame 5, Moe finalmente achara o local perfeito para o pouso da nave que iniciaria o Regresso. Um lugar a duzentos metros ao oeste da área verde, próximo ao o que um dia chamaram de Mar Vermelho e longe o suficiente do relevo irregular detectado pelos satélites. Sentia um arrepio só de lembrar que quase considerou desistir da tarefa ao notar como o terreno era desnivelado. A Terra passara por uma terrível transmutação, e Gaia parecia querer testar todos os limites dos remanescentes ao plantar um jardim rodeado por montanhas, por um deserto e pelo mar. 

Por isso, além de verificar todas as informações que já tinha sobre a região, a cientista teve que fazer um novo estudo topográfico da antiga península arábica. Uma investigação minuciosa, já que queria ter certeza de que a humanidade teria alguma chance de recomeçar. E ela não era de se gabar ou buscar elogios pelo trabalho bem feito, mas, desta vez, Moe realmente merecia uma salva de palmas pela dedicação em tempo integral à missão. Estava mais do que orgulhosa do trabalho que fizera e, apesar de estar exausta, não conseguia esconder a felicidade que era encontrar exatamente o que procurava.

Assim como não conseguia tirar da cabeça o pensamento de que um verdadeiro milagre os esperava na Terra. Afinal, a península arábica era o local mais improvável para o repovoamento, pois, em sua pesquisa, Moe descobriu que, devido ao clima desértico, à escassez de água e a aridez do solo, o local fora habitado por antepassados nômades. Ou seja, não era o lugar ideal para um restart.  Mas,  mesmo diante de tantos obstáculos, havia um jardim com 65% de chance de ser habitável, com uma provável fonte de água potável e, possivelmente, com um solo fertil. Gaia lhes prepara um paraíso, um novo Éden, e lhes dava uma nova chance. Eles de maneira nenhuma poderiam desperdiçá-la.  

Submersa em tais pensamento, e enquanto caminhava a passos largos em direção à sala de comando, a fim de contar a descoberta ao Comandante Todoroki; Moe não percebeu Shouto igualmente apressado virando em sua direção. Consequentemente, chocou-se contra ele e foi de encontro ao chão frio da estação.

— Merda! — exclamou após o choque, vendo seu relatório flutuar. — Desculpa, eu não te vi… Estava tão distraída. 

— Você tá bem? — ele perguntou, ajudando Moe a se levantar.

— Eu tô ótima, Shouto — falou, sorrindo para que ele não se preocupasse. — Acho que a gravidade irregular amorteceu minha queda.

— A gravidade tem sido um problema recorrente desde a construção da nave — disse, pegando algumas folhas flutuantes e olhando-as brevemente. — Indo falar com o Enji?

— Sim, eu finalmente achei um lugar para a aterrissagem — respondeu orgulhosa, também recolhendo seu relatório. — Mas ainda quero conferir as coordenadas junto com o Comandante antes de enviar ao Tenente Hawks, e antes da Tenente Yaoyorozu finalizar a nave. Temos que traçar o percurso mais seguro, talvez fazer algumas simulações e… espero que o Comandante esteja disponível. Você tá vindo de lá?

— Não — negou, entregando as últimas folhas a Moe. — Estava com o Aizawa checando algumas informações sobre o dia do acidente com os meteoritos. 

— Hum... Achei que tinha te enviado toda a papelada oficial…

— Enviou, mas estou investigando as entrelinhas agora.

— Oh! — exclamou surpresa, seu pragmatismo científico não lhe permitia ter tal ideia. — Algum progresso?

— Tenho certeza que não houve sabotagem, só que ainda preciso confirmar alguns depoimentos.

— Certo — disse, sentindo-se grata por Shouto ter assumido a investigação tediosa que o Comandante havia lhe designado. — Se precisar de alguma coisa… algum acesso…

— Não se preocupe — falou confiante, preparando-se para de despedir. —  É do interesse de todos os tenentes que a Missão Gaia seja um sucesso.

— Claro, acho que temos tempo suficiente agora — confirmou, arrumando a franja e sorrindo entusiasmada. 

Shouto sorriu de lado e se despediu, só que não sem antes dizer, ainda que de maneira cansada, “bom trabalho, Moe”. Não era a mesma coisa que receber uma salva de palmas ou o reconhecimento do próprio Enji, mas ser minimamente parabenizada pelo seu atual esforço já era alguma coisa. Por isso, assentiu agradecida — Shouto realmente era um bom garoto — e seguiu rumo à sala de Comando. Estava determinada e com o discurso na ponta da língua, não tinha como o Comandante Todoroki não ficar satisfeito.

Em frente a porta da sala, Moe pôs a digital no leitor de identificação e entrou. Diferente da rotação do dia do acidente, em que tudo parecia estar pegando fogo, o lugar estava estranhamente vazio e calmo. A única pessoa na sala, além do Comandante, era Saiko, que ocupava a mesa da Tenente Yaoyorozu, digitando velozmente enquanto falava com a tenente e mais uma pessoa, que ela não saberia identificar, por chamada de vídeo. Não havia sinal de Hawks, Nishiya, Gunhed ou qualquer outro tenente. E o Todoroki estava concentrado nos múltiplos visores a sua frente, aparentemente exausto, porém com a postura irredutível.

— Comandante Todoroki — chamou ao se aproximar, recebendo um sinal positivo para que prosseguisse —, localizei o ponto ideal para a nave da primeira fase, e provavelmente da próxima também, pousar. Levando em consideração que a gravidade vai ser de 79 m/s, por causa do lançamento, e que a nave vai estar envolta em fogo, mais a combustão dos propulsores, considerei um local a 200 m a oeste da área verde. Pelas análises que fiz, o lugar é plano e longe o suficiente do mar. Precisamos confirmar as coordenadas e fazer algumas simulações, mas acredito que, se o pouso for bem sucedido, e com o traje adequado, o piloto possa fazer a caminhada até o…

— Srta. Kamiji — interrompeu-a, apontando para uma das imagens em seu visor —, o que acha que Shouto está fazendo?

— Hum? Acho que não entendi a pergunta, Senhor.

— Shouto está se dirigindo ao módulo de manutenção; já passou três horas na companhia de Aizawa, o astrônomo responsável por monitorar a trajetória da Ártemis; e ontem conversou com Yamada — revelou, encarando friamente Moe. — E como a senhorita encontrou-se com ele, e ainda parou para conversar, lhe pergunto: o que acha que Shouto está fazendo?

Moe engoliu em seco, mal podia acreditar que Enji estava monitorando de forma tão sistemática o próprio filho. E pior, pelo tom de voz, suspeitando negativamente das atividades investigativas de Shouto. O que ela deveria dizer? A verdade? Não. Essa não era uma possibilidade, pois tinha certeza que o Comandante não ficaria nem um pouco contente em saber que ela não estava cumprindo com sua tarefa de detetive. Suspirou cansada e relaxou os ombros. Não havia muita coisa que pudesse fazer, cedo ou tarde, o Todoroki perceberia a movimentação de Shouto.

— Ele não me disse para onde ia, senhor — respondeu, tentando manter a expressão indiferente. — Apenas perguntou sobre os meus relatórios e ficou contente pelo progresso da missão.

— Contou a ele sobre a investigação?! — questionou impaciente, virando a cadeira em direção a cientista e ficando cara a cara com ela.

— Não, senhor! Contei sobre o plano de pouso da nave — disse nervosa, mostrando os papéis que segurava. — Não faria nada sem sua autorização, Comandante!  

— Espero que isso seja verdade, Moe — retrucou, voltando sua atenção ao monitor. Respirou fundo e relaxou a postura. — Venho pensando constantemente sobre o futuro da Ártemis, depois que o regresso for concretizado… 

— Pensa em manter a estação tripulada, senhor? 

— Tenho pensado em transformar a Ártemis em uma prisão espacial — respondeu sem encará-la. — Sempre haverá traidores, afinal, homo homini lupus¹, Nunca deixaremos de ser animais selvagens, capazes de realizar as maiores atrocidades contra os da nossa própria espécie. Revoltas, rebeliões, motins, guerras… Somos assim, Moe, só queremos sobreviver.

Talvez a vida seja mais do que sobreviver ², Comandante.

Enji a fitou novamente, porém, dessa vez Kamiji não via o atroz Comandante à sua frente, via apenas um homem que carregava o fardo de guiar a humanidade de volta ao lar. Um homem que perdera parte de sua família; recursos preciosos durante a Grande Divisão e no acidente com os meteoritos; mas com a contínua missão de proteger e zelar pelo bem estar dos remanescentes. Enji Todoroki não tinha outra opção, ele tinha que superar os comandantes anteriores e garantir a sobrevivência da humanidade. E tinha que fazê-lo rapidamente, ou poderia ser tarde demais.

— Avise sobre as novas coordenadas de pouso ao Hawks e a Yaoyorozu — ordenou, ignorando o momento introspectivo que tivera. — E comece os preparativos imediatamente.

— Mas, Comandante, precisamos confirmar as coordenadas e fazer algumas simulações!

— Faça todas as simulações que quiser no resto desta rotação, depois comunique aos tenentes que vamos antecipar a data de lançamento. 

— Senhor, não podemos fazer isso! — exclamou exaltada. — Podemos manter a data do lançamento e seguir o cronograma em...

— Não temos tempo, Srta. Kamiji! — exclamou mais alto, levantando-se rapidamente e sentindo uma vertigem. — Use... use meu código de acesso. Faça o que quiser e comunique… comunique minhas ordens aos tenentes. Não podemos esperar nem mais um segundo. O tempo não está… não está a nosso favor.

— Positivo, Comandante — disse desanimada, largando o relatório em cima da mesa de comando e observando Enji sair da sala.

Moe notou o mal estar de Enji, mas sabia que o Comandante jamais cederia às próprias fraquezas. Era um homem orgulhoso e obstinado, por isso bufou frustrada e não fez nenhum comentário em relação a saúde do Comandante. Estava cansada demais também desse looping que vivia. Era sempre assim, quando alcançava um dos seus objetivos algo sempre a empurrava para trás. Sentia como se tivesse frequentemente levado uma rasteira, mas sem ninguém para lhe estender a mão.

Sentia toda a felicidade, que instantes antes lhe consumia, virando cinzas. Obedeceria à ordem recebida, porque, assim como todos naquela estação, desejava voltar para casa. Moe também precisava recomeçar. Porém, antes de começar as simulações e a conferir os dados com o acesso de Enji, ela pegou seu iplus e digitou uma mensagem para a única pessoa que entenderia suas poucas palavras: Shouto, estamos ficando sem tempo.

 

[...]

 

— Se você não ficar quieto, eu juro que enfio um alfinete em você, moleque — ameaçou Mitsuki enquanto tentava tirar algumas medidas do braço do filho.

— Essa porra não tem fim — reclamou, sentindo os braços quase dormentes. — Eu já tô cansado, velha! 

— Você quer morrer, garoto?! — perguntou, vendo Katsuki fazer uma careta. — Então, cala a boca e me deixa trabalhar, porra!

Katsuki, depois que fora impedido de continuar as simulações de voo, realmente achou que conseguiria descansar, comer alguma coisa e talvez dormir um pouco durante o restante daquela rotação; no entanto, fora surpreendido e interrompido por sua mãe, que trouxera consigo todo seu material de costura e design. Sabia que seus pais estavam tentando ajudar, ao desenvolver uma roupa mais resistente para sua viagem espacial, mas ele estava exausto. As olheiras acentuavam terrivelmente sua carranca costumeira, a cabeça martelava sem parar, e o corpo já não o obedecia como antes. Nunca estivera tão mal em sua vida, parecia meio doente e apático; quem não o conhecia talvez não notasse o quão abatido ele estava, porém, sabia que não poderia esconder nada de Mitsuki.           

— Não sei por que você tem que fazer isso se já tem todas as minhas medidas, cacete!

— Porque eu não cago fibra de carbono, Katsuki! — gritou sem paciência. — Puta merda! A quantidade que nós temos nem vai dar pra cobrir seu corpo todo, vamos cobrir só as partes vitais e o interior do seu capacete. Por isso eu preciso das medidas exatas! Não dá pra desperdiçar um centímetro sequer! Entendeu, garoto idiota?!

— Não precisa gritar, bruxa velha — disse, massageando as têmporas enquanto a mãe contornava a fita métrica na sua cintura. — Eu já entendi! Só não sei por que meu velho não veio fazer isso… Ele é claramente mais competente.

Faltou pouco para Mitsuki ceder à provocação, socar o filho e ir embora daquela cabine; deixando a tarefa árdua, e um tanto melancólica, de tirar as medidas de Katsuki para o marido, que era infinitamente mais paciente que ela. Mas, quando lembrou o real motivo do estresse e mau humor do filho, Mitsuki lhe deu um peteleco na testa e disse:

— É golpe baixo me colocar contra seu pai só porque você e a Ochako estão brigados.

— Uma coisa não tem nada a ver com a outra, velha — negou desviando o olhar.

— Ah, não?! — perguntou de maneira debochada, exibindo um sorriso vitorioso enquanto media o tórax do filho. — Você está mais mal humorado e chato que o normal, não para de fazer simulações naquele protótipo de merda, não tá se alimentando direito, e sua aparência está mais fudida do que a Terra durante o acidente nuclear. Se isso não é por causa da Ochako, então com certeza é uma crise de abstinência sexual. Eu posso te dar privacidade se precisar aliviar a tensão no banheiro, querido.

— Tsk, mais que porra! Só tá falando merda, cacete — disse Katsuki, afastando-se das mãos da mulher e sentando-se na cama de cabeça baixa. — Eu tô ótimo, só preciso me concentrar na minha missão e continuar focado.

— Focado em morrer assim que for lançado da Ártemis?! — perguntou, cruzando os braços indignada com mentira descarada.

— Não dá tempo de ficar pensando nela, nem de ficar tentando resolver essa merda — respondeu, imitando a pose da mãe e lhe mostrando o melhor olhar de indiferença que podia. —  E também ela não quer falar comigo! E quer saber?! É melhor assim!   

— Tá bom… Eu te pari, garoto, sei quando tá mentindo — afirmou Mitsuki, dando um tapa na cabeça do filho e o encarando seriamente. — Katsuki, você tem o meu sangue! É mais inteligente que a maioria das pessoas, incrivelmente talentoso e dedicado, mas também é orgulhoso e detesta admitir que está errado, se esforça demais para alcançar seus objetivos e sempre põe as suas vontades em primeiro lugar. Faz isso desde os onze anos, e quem tá perto só tem duas opções: ou concorda com você ou some da sua frente!

— Esse discurso tá uma bosta, velha. Tem certeza que fez o curso de mães direito? — debochou, sentindo um gosto amargo na boca.

— Cala a boca que eu ainda não terminei — ordenou, dando outro tapa no filho e ouvindo-o xingar. — Eu sou sua mãe, Katsuki! Eu e seu pai sempre vamos apoiar suas escolhas, sejam elas perigosas ou não, heróicas ou não; nós sempre vamos estar ao seu lado. Mas ela, a Ochako, não tem essa obrigação sanguínea, ela…

E antes que Mitsuki pudesse concluir sua fala, a porta da cabine se abriu, exibindo a pessoa que Katsuki queria desesperadamente ver, mas que achava que não queria vê-lo nunca mais. Será que ela havia vindo conversar? Cacete! Bastava vê-la por um segundo que já começava a reconsiderar todas as suas palavras. Ele não hesitaria em expulsar a mãe para que eles conversassem em particular, claro, se essa fosse a vontade dela. No entanto, notando a cara de surpresa que Ochako fazia, estava mais que nítido que sua intenção naquela cabine era outra.

— Oh, desculpa… — pediu Uraraka meio nervosa, ainda parada na porta. — Eu não sabia que vocês estariam aqui. Posso voltar outra hora. É… eu volto depois!

— De jeito nenhum, querida! — disse Mitsuki, rapidamente puxando-a para dentro da cabine e abraçando-a. — Estava louca pra te ver. Como você está, meu bem? Parece mais magra. Tá se alimentando direito?

— Sim… Quer dizer, às vezes pulo uma refeição ou outra — respondeu sincera e surpresa com a recepção da mulher. — Tô trabalhando bastante, mas não tô mais com o Gunhed.

Uraraka deu de ombros, sentindo um nó se formando na garganta, era primeira vez que compartilhava alguma ocorrência das últimas rotações com uma pessoa sem ser Mina. Amava a melhor amiga, só que estar com a mulher que considerava sua segunda mãe lhe deixava totalmente vulnerável.    

— Ah, querida! Eu sinto muito, sei como você adorava aquele lugar que fedia a óleo velho. — Mitsuki a abraçou mais uma vez e lhe deu um beijo na testa. — Mas se tivesse um buraco na minha cabine, eu só confiaria em você para fazer o conserto. 

— Obrigada, Mitsuki! — agradeceu sorrindo e retribuindo o abraço.

— E o seu braço? Fiquei sabendo do acidente, fiquei tão preocupada…

— Eu já tô melhor — respondeu, já acostumada com o clima acolhedor com que Mitsuki a recebeu. Até instantes atrás, Ochako não tinha noção da saudade que sentia dos Bakugou mais velhos. — Ainda tô com os pontos, mas eu tô bem… Não dói mais.

— Acho que tenho algumas braçadeiras elásticas lá no estúdio — disse, ao mesmo tempo em que analisava o braço de Ochako. — Elas vão te ajudar na mobilidade, e Masaru está doido pra te entregar aquela jaqueta também. Não é porque é meu marido, mas ficou perfeita pra você, querida. Você tem que passar lá depois! 

— Claro! Assim que eu puder vou lá — respondeu com os olhos brilhando. Ochako sabia que tinha o afeto dos Bakugou, contudo, não imaginou que continuaria sendo tão bem tratada depois da briga que tivera com Katsuki. Era um alívio saber que ainda era bem-vinda e que não perdera parte de sua família. — Bom… Eu não posso demorar, só vim buscar umas roupas.

— Claro, meu bem, deixa eu te ajudar com isso.

Enquanto as duas mulheres conversavam casualmente, Katsuki observava a cena boquiaberto e convicto de que Ochako, em hipótese nenhuma, havia vindo falar com ele. Com exceção do momento de entrada, ela não lhe encarou uma única vez, nem pelo canto olho, e não lhe dirigiu a palavra ou mencionou seu nome. Ele estava sendo completamente ignorado. Podia ver seu sorriso singelo, ouvir sua voz doce e cansada, notou o modo triste com que mencionara Gunhed; mas nada disso era compartilhado com ele. Katsuki era apenas um espectador intrometido.

E isso estava totalmente errado! Ela deveria estar ali por ele, para conversar com ele, e para que tentassem de uma vez por todas resolver esse vácuo que havia se instalado entre eles. Estava enlouquecendo. Por que Ochako não conseguia apoiá-lo? Por que tinha que fazer tanto drama? Eles haviam sonhado tantas vezes com o dia que regressariam. Imaginaram, fizeram planos e trabalharam todos os dias com esse propósito; porém, bruscamente, tudo se desfez. Agora, Katsuki estava completamente sozinho.       

Bufou irritado, levantando-se da cama e indo em direção ao banheiro. Afinal, não era obrigado a vê-la de conversinha com a velha, muito menos presenciar a mudança sutil que Ochako fazia ao retirar suas roupas do pequeno móvel que dividiam. Não era para nada disso estar acontecendo, mas também, foda-se! Se ela estava querendo seguir em frente, ele que não ficaria em seu caminho; Ochako estava sendo fiel à promessa de deixá-lo sozinho, e Katsuki faria o mesmo: não desistiria da Missão Gaia. 

Trancou-se no banheiro e, enquanto encarava seu reflexo no espelho, sentiu vontade de parti-lo em mil pedaços. A imagem que via, definitivamente, não era o semblante de um herói. Katsuki respirou fundo e, controlando seu impulso, lavou o rosto. Não era hora de se lamentar ou de sentir autopiedade, tudo isso era resultado de seu esforço e de suas decisões, e ele não mudaria absolutamente nada em seu passado. Por isso, resolveu enxugar o rosto e manter a altivez. Era o melhor piloto da Ártemis! Ninguém podia tirar isso dele. Olhou-se novamente e, dessa vez, viu o reflexo do herói dos remanescentes, o piloto bem sucedido e com o nome gravado eternamente na história. Katsuki gostou do que viu e, por ter gostado tanto, decidiu que confiaria somente no espelho.

 

 




  


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Notas finais do capítulo

¹ Frase do dramaturgo romano Platus que ficou muito conhecida quando foi citada por Thomas Hobbes.

² Frase da Clarke Griffin, personagem da série The 100.



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