Bay Window escrita por Maga Clari


Capítulo 1
Namoradeira




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Era uma noite fria de outono quando tudo aconteceu. 

As folhas dançavam a ventania das valsas, as casas já se embelezavam com adereços de Halloween, e o rock and roll dos anos 40 soando em discos dos poucos adolescentes do Largo Grimmauld. Talvez, na realidade, não passasse de apenas duas ou três casas, distantes uma das outras, o suficiente para que ninguém se aborrecesse o suficiente para intervir. 

Na mansão de número 12, haveria mais um apreciador de rock and roll, em seu solitário repertório de canções mudas, apenas performadas em seus lábios silenciosos que murmuravam sem parar a sua coletânea favorita enquanto descansava no banco de pedra que decorava o jardim de inverno. Estava deitado, a barriga para cima, o rosto olhando o céu e os dedos (indicador e médio) segurando um cigarro recém-aceso. A luz do fogo trazia a penumbra perfeita para o melhor dos pintores lhe fazer um retrato, se pedisse. Os pensamentos, entretanto, desviaram todos os outros focos para o ruído grosseiro de pés em folhas secas, que logo revelaria o invasor que respirava com certa dificuldade pelo frio. Por algum tempo ele hesitaria entre as portas metálicas da grade dos fundos da Mansão conhecida por abrigar a muy antiga família Black, em outras palavras, os donos do pedaço. Por acaso do destino, os dois olhares se encontraram e o garoto do lado de dentro foi quem falou primeiro.

― Posso ajudar..? ― seu tom era óbvio e cansado e talvez até tedioso, mas não fazia por mal ― Se for entrega expressa é pela porta da frente. ― e voltou-se ao seu cigarro outra vez, sem muita paciência, mas percebeu que o invasor continuava no mesmo lugar ― O senhor é surdo? Fala inglês? Je parle française aussie. Un poquito de español. Não? Que tal BSL?

Nada parecia resolver e o garoto permanecia em pé, desolado, um embrulho nas mãos, uma sacola e zero coragem de abrir a boca para falar qualquer coisa. O garoto de dentro sentou-se, de repente, curioso. A fumaça soprada rodeava um pouco de suas orelhas e cachos teimosos em seguir a brisa noturna.

― O que há? ― ele tentou, em língua de sinais. Mas não obteve resposta. Desistindo, retornou ao seu idioma de origem ― Qual é o seu problema?! ― O tom de voz era um pouco rude, mas o membro da família Black já havia perdido a paciência em seu costumeiro pavio curto ― Está perdido..?

Antes mesmo que concluísse a fala, Black já havia sido interrompido pelo garoto de fora que simplesmente tirou o embrulho da sacola e ofereceu.

― Sirius Black, correto? Largo Grimmaud, 12? ― diante da resposta silenciosa, tendo apenas a expressão de gelo e choque do outro, tomou com verdadeira, apressando-se em justificar-se ― É o uniforme de Régulo.

Sim, o choque foi real. Tão real e doloroso quanto uma granada vinda dos céus. Sirius pegou o embrulho em desconfiança enquanto analisava mais uma vez o mensageiro que permanecia em pé com certo ar solene e de natureza quase aristocrática. O cabelo bem escovado, a divisão próxima às orelhas, a camisa por dentro da calça, o suspensório. Quem seria aquele mensageiro, afinal?

Sirius soprou o que sobrara do fumo e jogou a bituca do cigarro por cima do portão, demonstrando familiaridade em suas más maneiras, sabendo que o estranho estaria a julgá-lo, mas não era como se isso o perturbasse. Não demorou-se em se levantar direito enquanto analisava a encomenda em suas próprias mãos. Era o uniforme de Régulo. O que isso poderia dizer? Estaria ele vivo? Machucado? Avisara-o, alertara-lhe sobre os perigos, mas o teimoso não parecia prestar qualquer atenção aos seus pedidos, chegara ao ponto de implorar de joelhos. De nada havia adiantado. Régulo defendia o que Sirius condenava. Mas ainda era seu irmão. Seu irmãozinho.

― R.A.B está bem ― o mensageiro pareceu compreender o que devia estar evidente em seu rosto ― Ainda na ala hospitalar, mas pediu que eu o entregasse isso. Para se lembrar dele, eu suponho.

― Você… Você o conhece? ― Sirius pegou-se curioso, talvez até esperançoso, o que mais pediu por semanas havia sido notícias. 

― Somos amigos.

― Oh.

O mensageiro deslizou os dedos por algo em seu casaco e tirou de lá uma medalha com distintivos em forma de pins na faixa. Um sorriso indeciso se formou.

― Estávamos em lados opostos. Um belo dia, precisei de remédios e ele me arranjou.

― Régulo?!

― Sim. Um amigo de ouro! Espero que se recupere logo… Diga-lhe que mandei lembranças, caso o mandem de volta.

Com isso, o garoto limitou-se a um aceno de cabeça, chapéu para fora e chapéu de volta, o costumeiro cumprimento de cavalheiros. Sirius, entretanto, não conteve-se em curiosidade:

― Espera! ― vendo que conseguira impedir-lhe por um instante, respirou fundo, segurando toda a ansiedade ― De que lado você estava?

― O que acha? ― o sorriso veio sem querer, sentindo-se levemente atraído por aquele garoto cheio de mistério e perigo. Do jeitinho que sempre sonhou. O tipo de amor impossível que aparecia em sua imaginação ao dormir. Vendo que havia deixado Sirius Black sem palavras por alguns instantes, olhou para os lados e então inclinou a cabeça e os olhos na direção que já estava para ir.

― O quê.

― Gosta de caminhadas? ― dessa vez, a pergunta veio em sussurros.

― Me parece interessante.

E foi como os dois caminhos se cruzaram. Sirius, taciturno e sem qualquer etiqueta, e Remus ― que só revelou seu nome já pelo fim da noite ― com todo o charme de quem conhece os dois lados do mundo, a bondade e a maldade, sabendo muito bem equilibrar as duas energias dentro dele.

A madrugada parecia mais romântica do que realmente era, e Remus talvez estivesse enxergando possibilidades onde não existiam apenas pelo simples prazer de curar feridas que já haviam cicatrizado há muito, muito tempo. Depois da Guerra, tudo se transforma nesta paisagem sinestésica onde era possível descrever momentos em tons de cor, escalas e aromas. Se lhe perguntassem sobre aquela noite, diria, sem nem pensar a respeito, que a noite tinha cheiro de menta, que era cinza, como as orbes do herdeiro dos Black, e, principalmente, que seria uma peça de Beethoven, clássica, bonita, antiga, tão antiga quanto o sentimento que nutria dentro dele, e que só agora parecia encontrar maneiras de sair.

Com o passar das estações, as caminhadas se tornaram rotineiras. Sempre nas madrugadas, sempre solitárias, sempre só deles. Sirius descobriu que Remus era seu vizinho e que morava no modesto edifício de número 11. Dava para vê-lo da janela de seu quarto. Admirá-lo também tornara-se hábito, associado periodicamente aos seus cigarros de menta e outras vezes hortelã. Costumava observá-lo em sua namoradeira, imaginando quando e se poderia, um dia que fosse, levá-lo até ali. Convidá-lo a sentar de frente para ele, onde até então era o espaço ocupado por um para dois, nunca devendo sequer pensar se chamar namoradeira quando não existe namorado para sentar-se junto na janela.

Sirius descobriu que Remus era pintor, escultor e que tinha um pé de valsa. Certa vez, escutara, bem de longe, o disco rodar e rodar e pelos passos imaginou se tratar da nova e contagiante batida de rock and roll. Sirius já havia feito trocas e mais trocas de discos, muitas vezes apreciando os acordes junto com ele, mas nunca em conjunto, por saber que era batalha vencida aquela em sua casa. Passava horas e horas anestesiado em seu quarto a devanear como seria tê-lo bem ali, como seriam os abraços e afagos e tudo o que poderia vir depois, como seria uma noite de amor. Imaginou como seria se a batalha de Remus fosse outra, mais fácil, mais justa, que não precisasse fingir e negar que algo estava acontecendo. 

Outra vez, o assunto surgiu. Contou-lhe sofrer de um mal desconhecido, pouco estudado, sendo esta a razão para que o mandassem embora. Havia dias bons e dias medianos, mas os dias de lua eram os que menos gostava. Aquele era um dia desses, a lua já havia surgido e Sirius arriscou um pouco mais de ousadia ao por os dedos em seus cabelos, como que para acalmá-lo.

― Eram os dias de folga. ― segredou a Sirius.

― Não compreendo.

― Eu sei. É difícil. ― Remus sabia, oh se sabia! Mas tentaria, tentaria por ele explicar ― Folga é para os que tem alguém. 

― E quem você teria, se pudesse?

― Nos dias de lua, me sentia triste. Seu irmão me acalmava às vezes. Trazia uma bebida. Dizia que ia ficar tudo bem.

― E você gostava dele? ― a pergunta era genuína, mas certo medo lhe bateu.

― Gostava. Mas não desse jeito. Não do jeito para que os dias de lua valessem à pena, sabe?

Está tudo bem ― Sirius disse, deslizando a palma da mão sobre a do outro, que congelou ao simples toque de gelo quente. Era como ouvi-lo. De novo. Só que melhor. Muito melhor. 

― Queria que as coisas pudessem ser diferentes.

― Elas podem ser.

Remus não sabia onde seu novo amigo pretendia chegar com aquela conversa. O que sabia, entretanto, é que gostava do aroma dele e dos olhos que eram a versão mais perfeita do paraíso. Sua voz parecia a de Régulo, mas não era igual a dele. Era mais doce, calma, incrível e cheia de energia. Do tipo que faz o coração palpitar. E ele não aguentaria muito mais. Sabia que precisava por fim ao que escondia. Não poderia, depois de tantos meses, dar para trás. 

Por este pensamento, o garoto decidiu bater na Mansão Black do Largo Grimmauld número 12. De casa, vira Sirius costurando patches em sua jaqueta. Achava interessante o jeito que havia se apaixonado pelo patinho-feio dos donos do pedaço. O seu estilo controverso e tão seguro… Poderia ser o suficiente para uma vida de artes e música. Remus, entretanto, almejava mais.

A coragem veio em forma de passos ruidosos e um botão de rosa. À luz do dia, ao sol crescente e sem um pingo de receio. Esperou que o mordomo da casa trouxesse o garoto também dono do seu coração para que o agarrasse na frente dos vizinhos que passeavam com os cachorros, com as crianças de colo ou com os familiares mais velhos. Agarrou-o porque sabia que ele já era suas madrugadas de lua e se arrependeria pela vida inteira se não o fizesse. Sirius não fazia ideia que o verdadeiro motivo de Remus ter sido mandado embora havia sido seu gosto por semelhantes, por acreditar na humanidade, nos homens e no significado da palavra amor. Acreditava que a diplomacia resolveria e o mundo poderia voltar a girar como um só.

Sirius não fazia ideia que Régulo inventara essa história de entregar uniforme como lembrança para que os dois se conhecessem. Sirius não fazia ideia que seu irmãozinho conservador acreditava no outro e torcia para que ele fosse pelo menos feliz. Que chegaria o dia em que Remus poderia sentar-se consigo na namoradeira e olhar para a mesma vista, só que dessa vez de um mesmo ângulo.


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Notas finais do capítulo

Oi meus xuxus,
Sei que muitos podem desconhecer a famigerada "namoradeira", então vim aqui explicar. Nas casas antigas, coloniais, era comum que se construísse janelas com dois bancos embutidos e servia basicamente para casais apreciarem a vista enquanto conversam, um de frente para o outro. Hoje em dia, o conceito ampliou e a namoradeira virou "janela saliente", tendo uma espécie de sofá acolchoado no lugar dos antigos banquinhos embutidos. É isso, qualquer coisa joguem no google.

Um xêro e fiquem com Merlim!



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