You've got the love escrita por Fanfictioner


Capítulo 4
Yesterday


Notas iniciais do capítulo

Dá até vergonha aparecer aqui, afinal atrasada na postagem E ainda não consegui responder os comentários de últimos dois capítulos... a faculdade está sugando a minha alma, juro! Logo menos, vulgo final de semana, eu vou ter um tempinho livre e dar todo o amor e carinho que os comentários PERFEITOS de vocês merecem!
Esse capítulo está super sério e debate várias questões pessoais da vida tanto do Remus quanto do Sirius, além de colocar vários pontos que nós sabemos que acontecem DIARIAMENTE na vida de milhões de pessoas da comunidade LGBT+. Espero que, apesar do tom triste e sóbrio do capítulo, vocês gostem.

AVISO MEGA IMPORTANTE SOBRE ESSE CAPÍTULO: contém cenas de violência física e referências a ideação suicida que podem gerar gatilhos, então quem for sensível eu recomendo tomar cuidado.



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LEIAM AS NOTAS INICIAIS!

 

(narração de Remo Lupin)

Algum lugar entre meu nariz e meus olhos doía muito, como em uma crise de sinusite, e minha cabeça estava pesada como numa ressaca. Bem, eu estava de ressaca. Ressaca moral. Como eu tinha deixado as coisas chegarem naquele ponto?

Desde sexta, quando eu chegara em casa muito perturbado pelo pedido que Sirius me fizera, eu ainda não tinha conversado com ele, nem com ninguém, embora Lily tivesse tentado me ligar algumas dezenas de vezes ontem. Eu também não tinha saído do quarto muitas vezes além do mínimo necessário para comer e ir ao banheiro, e, dada a cor da minha urina, eu sabia que até beber água eu estava negligenciando.

Por alguma razão paradoxal, eu tinha ficado muito mais criativo naquele pico de depressão do final de semana, e estava passando o dia criando artes na mesa digitalizadora, editando coisas para meu portfólio e fazendo rascunhos de muitos, muitos desenhos. Agora meu pulso doía também.

Aparentemente trabalhar estava preenchendo o enorme vazio que havia dentro de mim. Um buraco por onde eu me esvaia por inteiro. Um buraco que meus pais tinham feito o favor de abrir, e eu mesmo estava alargando.

— Com o quarto escuro desse jeito, não me surpreende que você esteja com dor de cabeça desde ontem. – gemeu Lily quando entrou no meu quarto domingo de tarde. – Seus pais estão cogitando levar você ao hospital, achando que está doente, sabia?

— Ótimo, quem sabe me sedam de uma vez. Ou talvez vejam que eu estou realmente doente de viver aqui, com tudo que eles fazem comigo. – respondi, tirando os olhos rapidamente da tela, apenas para observar Lily.

Ela tinha uma expressão nem um pouco boa, e parecia preocupada.

— Você está acabado, Rem.

— É, estou.

— O que está fazendo?

— Alguma coisa. Muitas coisas. – expliquei, mostrando a pasta de coisas que eu tinha produzido. – Uns desenhos, coisas para o portfólio, coisas para o álbum do Sirius. Não ia ser legal deixar ele na mão depois de ter me comprometido a fazer a arte.

Lily sentou-se na borda da minha cama e me olhou com um pouco de piedade, e foi só aí que eu realmente aceitei que a dor no fundo dos meus olhos estava insustentável e eu precisava sair do computador um momento. Girei a cadeira, ficando de frente para ela.

— James está okay?

— O que aconteceu?

— Como assim? – perguntei, apertando o rosto, que doía bastante.

— O que aconteceu sexta-feira?

— Você sabe o que aconteceu, Lily... sei que Sirius contou a vocês. – disse, dando de ombros.

— Ele só disse que você tinha dito que precisava de um tempo. E eu achei que estava tudo bem, mas como você decidiu não mais me atender, nem responder mensagens, eu liguei para sua mãe. Será que você pode me falar o que está rolando? Parece que tomou um enorme pé na bunda, sendo que foi exatamente ao contrário!

— Não aqui, Lily. Não agora.

— Então quando, Remo?! Há semanas você vem agindo como se nós fôssemos idiotas e não soubéssemos que alguma coisa está muito mal! Será que você pode falar para sua melhor amiga o que tá rolando?! Ou por que deu um fora em Sirius? – insistiu ela, subitamente irritada e sussurrando a última parte.

Eu queria muito esmurrar algo quando ela mencionou aquilo. A ausência de Sirius estava doendo, e saber que eu tinha pedido um tempo quando tudo que mais queria era ter aceitado namorar com ele era suficiente para me deixar louco!

Tudo estava tão horrível, e meus pais estavam me sufocando mais do que nunca. Minha vida estava um inferno e eu só queria desaparecer, porque eu tinha dado um fora na única coisa boa das últimas semanas. Eu era muito estúpido!

Agora Lily, me mostrando o lixo que eu estava sendo com meus amigos. Oh, bem, eu não estava mesmo num momento fácil! Havia muita pressão em mim, minha cabeça estava doendo muito, e o jeito como Lily falara pesou.

— Será que você não entende que está tudo uma merda, e eu não sei falar sobre isso?! – disse, quase gritando, ignorando que meus pais estavam na sala lá embaixo.

— Eu não sei falar, Lily, sobre o que está rolando! Só sei que sou um babaca, estou preso nessa situação e está absurdamente sufocante viver na minha pele nas últimas semanas! Então a menos que você tenha uma alternativa indolor para eu sumir daqui, morrer logo e ir para o inferno que meus pais dizem que gente como eu vai, eu não sei o porquê de estar perdendo seu tempo! Eu sou só muito covarde, e Sirius certamente não precisava lidar com mais problemas na vida dele!

Em algum momento em meio a esse surto eu me levantei, apertando o ponto entre meus olhos e nariz, sentindo meu rosto arder e uma iminência de choro, que não veio. Lily, sendo o anjo da minha vida que ela é há tantos anos, apenas me abraço. Durou um bocado aquilo e, por um momento, um pedaço do vazio foi embora.

Eu queria conseguir chorar. Mas era como se eu estivesse quebrado.

— Vamos tomar chocolate quente. – disse ela, segurando minha mão e me olhando sério.

— Não dá. Meus pais estão me obrigando a ir ao culto de domingo.

— Tem a ver com isso tudo, não é?

— Também.

Ela respirou fundo e apertou minha mão.

— Por favor, não faz nenhuma merda. A gente vai tomar chocolate amanhã e conversar sobre tudo. Eu amo você, Rem.

Depois de um beijo na minha bochecha e um abraço apertado, Lily saiu, e eu fiquei sentado na cama, percebendo que, de fato, meu quarto estava muito escuro. O que era bom, pois corroborava a coisa de eu estar com enxaqueca, que eu inventara para meus pais. Perto das seis, minha mãe pediu que eu me arrumasse para ir à igreja, e avisou que tinha separado remédios de enxaqueca para mim na bancada da cozinha.

Eu não ir à igreja tinha deixado de ser uma opção para meus pais.

Isso porque que eles tinham chegado à conclusão, quase um mês atrás, de que, seja lá quem fosse, a “menina” que eu estava “conhecendo e aproveitando a boa companhia” não era boa o suficiente para mim. Era óbvio que meus pais estavam desconfiando de que minhas saídas excessivas se referiam a alguém que eu conhecera, e era claro que eles achavam que era uma menina.

De qualquer modo, eles haviam concluído que o fato de “ela” ainda não ter vindo conhecer minha família indicava que ela não devia ser boa para o Senhor também. Consequentemente, não boa para mim.

E foi aí que entrou Emmeline Vance.

A filha de um casal muito amigo dos meus pais, que, adivinhe só, frequentava a mesma igreja.

Acontece que, aparentemente, essa tal Emmeline sempre tivera algum interesse em mim e vinha rezando para Deus para que eu fosse a pessoa certa para sua vida, ou algo nesse sentido. Não conseguia entender bem essa parte.

Então, recentemente, algum neurônio rompido dela tinha entendido que Deus falara com ela que nós tínhamos algum destino juntos. Some isso com o desgosto dos meus pais pela “garota” com quem eu vinha saindo, adicione ainda muita beatice, e você tem a receita perfeita para engatilhar depressão em um jovem homossexual reprimido.

Piração religiosa!

— Remo, por favor, tranque a porta da cozinha! E não esqueça sua bíblia! – gritou meu pai, da garagem.

Claro, pai. Posso queimá-la no caminho? De preferência me queimando junto, e de uma forma bem lenta e dolorosa.

***

— Certo. Temos sorvete de chocolate e tempo o bastante. – disse Lily, me entregando uma colher e abrindo a tampa do pote de dois litros de sorvete que ela comprara.

Estávamos no pátio externo da UAL, sentados em duas tolhas de piquenique que ela trouxera. A primavera avançava e o calor começava a ganhar algumas batalhas contra o péssimo tempo de Londres, ficando agradável nos sentarmos na sombra do pátio. Aparentemente nada de aula de expressão artística para nós dois naquela tarde.

Acho que eu nem ligava mais para as presenças, àquela altura.

— É complicado.

— Descomplique.

— Não sei bem por onde começar, Lily. – disse, pegando uma colherada de sorvete. – Minha cabeça está bagunçada.

— Comece pelo começo. Você ficou estranho pouco depois do seu aniversário... aliás, foi na semana do aniversário do James. A semana antes da entrega dos portfólios.

Respirei fundo, sabendo que era ali. Fora no domingo, no primeiro dia da semana, que meus pais me chamaram para conversar e falar como se sentiam sobre o relacionamento que sabiam que eu estava escondendo, e sobre os propósitos do Senhor para mim, através de Emmeline.

Ou ela ou Ele estavam muito pirados, e eu tinha uma ideia forte de quem era o maluco dos dois.

Contei para Lily o que eu consegui naquele momento, comendo muito sorvete por pura ansiedade. Estava difícil de respirar, e eu me perguntei por que, outra vez, eu tinha esquecido a bombinha de asma. Minhas mãos estavam suando, e Lily estava muito concentrada em mim, tendo até tirado os óculos escuros dela para me olhar melhor, por mais que ela detestasse sol nos olhos.

— Caralho! É muita piração, Remo! Todo mundo surtou ali! Seus pais, essa garota, os pais dela... não me surpreende a sua cabeça estar completamente fora do ar. Como você está conseguindo fazer faculdade? – disse ela exasperada.

— Eu quero morrer todos os dias, Lily. Formar é a única chance que eu tenho de ir embora, sumir daquela casa, sumir deles, dessa igreja, dessa vida! Eu preciso de dinheiro para sair de casa, e as coisas só pioram a cada dia.

— Vem morar lá em casa. Meus pais não vão se importar, eles amam você! E Petúnia está quase sempre com o noivo, então podemos pegar o quarto dela para voc-

— Não é simples assim, Lily. – comentei, balançando a cabeça.

— A gente dá um jeito!

Não daríamos. A vida não era tão fácil, e eu não queria dormir na rua, nem ser um desempregado sem diploma. Se meus pais soubessem de qualquer coisa, duvidava muito de que eu teria a compreensão deles, e, de qualquer modo, agora faltava tão pouco. Eu me formaria em apenas dois meses e meio!

Eu só precisava aguentar até lá. Claro que sem Sirius e um mínimo motivo para sentir que eu não era uma completa aberração para minha família tudo era mais difícil, e essa coisa com Emmeline não estava melhorando nada. Mas se eu pudesse suportar mais dois meses, então eu poderia ser livre!

Só que dois meses parece a eternidade quando você acorda todos os dias desejando ter morrido na madrugada.

— Você sabe que Sirius merece uma resposta, não sabe? – perguntou Lily algum tempo depois, quando nós estávamos num silêncio reflexivo.

— Sei.

— Ele não faz ideia do que aconteceu. Não sabe o que deu errado, ou o que foi culpa dele, ou por que você não fala mais. Foi abrupto, e foi meio cruel, Rem. Ele merece uma explicação.

— Não posso fazer isso com ele, Lily. Eu não posso sequer ser eu! Quem dirá sermos nós! – doía admitir aquilo, mas era a verdade. – Sirius não merece que eu o arraste para a loucura que está minha cabeça, e eu preciso de sanidade para sobreviver até a formatura.

— E você tem absoluta certeza de que é sozinho e se submetendo ao que está se submetendo que vai alcançar essa sanidade? – ela me olhava com muita descrença, ao ponto que eu ri, sabendo que estava fazendo um papel ridículo.

Lily respeitou meu silêncio e ficamos mais um tempo apenas comendo o sorvete. Havia muitas ideias na minha cabeça, e eu não sabia mais se qualquer coisa que eu pensava fazia o menor sentido. Era como se meu cérebro estivesse afogado, tentando emergir, mas sendo puxado de volta ao fundo a cada esforço.

— Eu não sei o que vou fazer, Lily. Eu quero desistir, e ao mesmo tempo, eu sei que falta tão pouco, que eu deveria tentar mais... Eu queria muito ter dito sim a Sirius.

— Diz isso para ele.

— Não posso, sabe que não posso.

Ela pareceu pensar, então me deu um soquinho no ombro e finalmente falou.

— Então só faz a arte do álbum dele e passa lá para levar. As músicas estão ficando muito boas, sabia?

— Sabia que ficariam. – disse dando um risinho. Sirius era talentoso demais para o próprio bem.

— Quando for lá, pergunta dele uma coisa só.

— Lily. – repreendi.

Eu não tinha qualquer direito de perguntar nada a ele, não depois de ter pedido um tempo e sumido completamente como um imbecil. Mas Lily insistiu em seu ponto.

— Pergunte! Falo sério, pergunte dele como foi sair de casa.

— Ele já falou, os pais dele não gostaram. Ele pegou o telescópio e foi para a casa do Ja-.

— Não, Remo. A história toda. – Lily assumiu uma expressão séria ao falar aquilo.

De fato, Sirius não me contara a história. E bem, nem eu contara a ele o que acontecia na minha casa.

— Acha que vale a pena? Ele deve estar furioso, de qualquer modo.

— Ele vai falar com você, sei que vai. Você precisa ouvir algumas coisas, e entender outras. E só Sirius passou pela experiência que você está passando, Rem. Só ele vai entender você da maneira certa.

Era verdade. Dorcas tinha uma família muito acolhedora com a sexualidade dela, e Peter era muito bem resolvido em ser gay, de maneira que a família não teve outra opção a não ser agir com toda naturalidade do mundo sobre o assunto. Concordei, sem querer discutir mais. Nas últimas semanas eu andava cansado de tudo, cedendo sempre que podia para poupar o pouco de energia que eu ainda tinha para continuar.

Mas confesso que fiquei balançado, eu sentia que queria me desculpar com Sirius, devia uma explicação a ele. E mais do que isso, eu precisava de conselhos sobre como aguentar o que eu estava passando em casa.

***

Levou mais doze dias para que eu pudesse, finalmente, ter coragem de ir até a casa de Sirius.

Claro, isso também aconteceu porque eu estava sufocado de afazeres da faculdade (e empregando um esforço genuíno em não gastar meu réu primário com Emmeline Vance ao encontrá-la na igreja dos meus pais – forçado, diga-se de passagem – três vezes por semana) e levei mais tempo do que achei que levaria para concluir as propostas que tinha para as artes do álbum de Sirius.

Eu sabia o suficiente sobre ele para supor um pouco mais do estilo das novas composições, embora ainda não tivesse ouvido nada para além do que conhecera no dia que o visitara pela primeira vez. Foi baseado naquilo e no que eu sabia sobre ele que criei a estética toda do álbum. Era uma arte versátil, adaptável, mas que refletia Sirius em qualquer interpretação possível, e eu esperava, sinceramente, que ele gostasse.

Aos sábados ele tinha folga, ou costumava ter, e eu tive a audácia de não avisar com antecedência que pretendia passar na casa dele. Simplesmente juntei minhas coisas e fui, esperando que ele estivesse lá (e mais do que isso, rezando para que estivesse sozinho!).

Sirius precisava autorizar minha entrada no prédio, então liguei para ele quando cheguei na portaria.

— Alô? – atendeu ele, e eu pude ouvir a confusão na voz.

Certo, Remo, por favor, fique calmo e não trema a voz! Você consegue.

— Oi. Você pode atender?

— Posso. Posso ajudar?

— Está em casa?

— Ahm... sim. – ele pareceu ponderar, e eu senti o peso que era ele estar cogitando dizer que não.

— Eu meio que estou na frente do seu prédio. Posso subir? É rápido, juro! Só quero entregar algo.

— Okay. Pode subir, vou avisar o porteiro.

Eu cheguei a cogitar que ele estivesse tirando sarro da minha cara, porque, bem, era Sirius. Mas ele de fato autorizou minha entrada no prédio, e eu peguei o elevador até o andar dele. Conforme eu subia, meu estômago descia e se afundava em algum lugar perto da bexiga, me deixando muito nervoso e com vontade de ir ao banheiro.

Merda de bexiga pequena!

Sirius estava me esperando com a porta do apartamento aberta, de calção e pantufas, e meu coração deu um solavanco dolorido, seguido de um calor no baixo ventre que eu sabia não ter relação alguma com a urina que eu estava retendo.

Foco! Foco, Lupin!

Mas meu esfíncter uretral ganhava fácil do meu cérebro, de modo que eu cheguei ao apartamento de Sirius e, antes que pudesse falar qualquer coisa sobre minha real intenção ali, precisei dizer.

— Sei que é estranho, mas, por favor, eu preciso muito ir ao banheiro! – disse com certa urgência.

Honestamente, quem se coloca numa situação dessas na porta da casa do ex?

Os astros já nem se preocupavam em aplicar o inferno astral em mim, já que eu conseguia alcançar a vergonha e a humilhação muito bem sozinho. Sirius segurou um riso e se esforçou para falar firme.

— Claro. Pode ir.

Eu não esperei segundo convite, e segundos após finalmente liberar a bexiga eu pude então pensar racionalmente. O que foi completamente pior, porque me dei conta de que estava ali e precisaria ter uma conversa de retratação com Sirius.

— Como é mesmo que chama a pessoa que não aceita seu pedido de namoro, mas precisa aliviar o joelho na sua casa? – perguntou Sirius assim que eu saí do banheiro.

Primeiro eu me senti atacado, mas então eu vi que ele estava com um sorrisinho genuíno no rosto e entendi que era apenas o humor sarcástico dele em ação.

— Chama “pessoa que fez as artes do meu álbum de graça”. – retruquei no mesmo tom, fazendo ele rir. – Foi a ansiedade, eu juro.

— Se você diz. Alguma coisa em que eu possa ajudar? – perguntou ele, sentado na bancada que ele usava como mesa de refeição.

— Eu trouxe... ahm... a arte. Do seu álbum.

— Ah, nossa! Eu nem pensei que você ainda se lembrasse disso, achei que tinha ido pro ralo a coisa de me ajudar.

— Tinha me comprometido, não? – disse, pegando o iPad para mostrar a ele o que tinha feito.

— É... compromisso. Eu achei que fosse fugir desse também.

Dessa vez não tinha sorrisinho, e eu soube que ele estava realmente chateado sobre isso. Foi incômodo, mas eu ignorei e apenas deixei que ele visse a arte, entregando o arquivo aberto.

— Tem duas propostas, em fundo branco e a versão negativa. Pode escolher o que mais gostar. Só deslizar para a esquerda.

Ficou um clima horrível enquanto ele avaliava o que pensava das artes que eu tinha feito, e até ali eu não tinha me dado conta do quanto a opinião de Sirius seria relevante para mim, porque estava genuinamente nervoso de ele criticar meu trabalho. Não que eu pensasse que ele seria maldoso a esse ponto comigo. Mesmo que eu estivesse merecendo, dado o jeito com que o tinha tratado.

— Forgotten in a cafe.

— Perdão?

— Forgotten in a cafe. Esse vai ser o nome do álbum. Você deixou os espaços para o nome do álbum, então estou compartilhando... – disse ele, dando zoom nos detalhes.

Claro. Esquecido num café. Era uma referência ao meu iPod resgatado meses atrás, e a todas as influências musicais que aquele episódio tinha dado a Sirius. Eu não esperava jamais que ele fizesse algo assim, Sirius não era esse tipo emocionado e todo afetivo, mas ali estava ele, nomeando seu primeiro álbum em uma citação indireta de mim.

— Ah. Gostei. – foi tudo que consegui dizer.

Honestamente, era melhor ter ficado calado.

— Ficou tudo incrível, parabéns! Manda para o meu e-mail, por favor, Lupin. Eu vou conversar com o produtor e ver o que combina mais.

Foi exatamente assim, frio e distante.

— Ah, certo. Desculpe, eu poderia ter feito isso direto. Ahm... é, desculpe ter vindo. – disse ao pegar meu aparelho de volta, corando e me sentindo muito estúpido.

— Sem problemas. Obrigado pelo trabalho, de verdade.

Eu estava realmente pronto para ir embora quando percebi que precisava ser minimamente adulto e falar com Sirius. Ele, com certeza, não tinha acreditado que eu viera desde East Putney até aqui apenas para mostrar a merda de duas artes no computador, quando poderia tê-las mandado pelo celular.

— Olha, eu sinto muito. De verdade.

— Tudo bem, já passou. – disse ele no mesmo tom, muito longe de ser o Sirius que eu conhecia.

Tentando ficar calmo, foquei no que Lily tinha me aconselhado: perguntar a Sirius sobre como fora, para ele, sair de casa.

As coisas não tinham melhorado nada nas duas últimas semanas, eu me sentia cada vez com menos coragem e ânimo de lidar com tudo, completamente destruído pelas minhas escolhas, e pelas dos meus pais. Eu precisava ouvir de alguém que era, sim, possível sobreviver àquele inferno.

— Posso perguntar algo?

— À vontade.

— Como foi quando saiu de casa?

Sirius me olhou completamente confuso.

— Você quer saber... como... por que isso agora, Aluado?

Alguma coisa saltou no meu peito quando ele me chamou assim, mas de um jeito bom e aceso.

— Por que isso agora? Depois dessas semanas longe, depois do tempo que você pediu... por que vir aqui agora, perguntar como saí de casa?

— Porque eu não estou aguentando mais, Sirius. E não tenho mais ninguém com quem falar.

Eu senti que ele tinha entendido o tamanho do fardo que eu estava carregando, porque ele aliviou a expressão na mesma hora e gesticulou para que eu me sentasse no pufe da sala.

— O que... o que quer saber? Por onde quer que eu comece? – eu demorei a responder, pensando.

— Como você soube? Que era. Como foi com seus pais? Como eles reagiram?

— Foi exatamente como qualquer pessoa hétero, que simplesmente sabe que é hétero. Eu simplesmente sabia que gostava de meninos, e sempre soube que era gay. E como você soube?

— Porque eu pedia para não ser e não funcionava. – disse, encarando meus tênis, sentindo aquele buraco vazio começar a se encher.

Encher de uma sensação esquisita e agitada. Agonia.

— Eu cresci ouvindo o quão errado era. E talvez essa lavagem cerebral tivesse funcionado, sabe? Porque eu sentia nojo de mim no começo. Uns dezesseis, dezessete anos. Eu rezava para que, sei lá... me curassem disso.

— Que merda! Seus pais sabiam, então?

Naquele momento eu conseguia ver o Sirius que eu conhecia e gostava tanto. Aquele Sirius de papo solto e interesse nas coisas que eu contava. Eu sentia falta dele.

— Nunca! Foi tudo sozinho, e escondido na maior parte do tempo. A Lily foi muito necessária nessa parte. Ela desconstruiu esse meu ódio de mim, mostrou como me aceitar e entender quem eu era.

— A Lily é uma santa. – disse ele, e eu ri, porque era verdade.

Insisti no ponto sobre a família dele descobrir, e fora como eu imaginara: desprovação. Não do tipo que eu receberia, mas ainda era desaprovação. Era mais por aparências e hipocrisia do que um preconceito infundado e fundamentalmente religioso, como no meu caso.

Os pais de Sirius pareciam ser soltos demais, e ao mesmo tempo muito exigentes para manter aparências externas. Eu achava que esse era, provavelmente o pior tipo de pais. Aqueles narcisistas, que fazem os filhos de vitrine, do jeito que mais machuca e traumatiza qualquer ser humano.

— Eles diziam que não tinha problema em ser gay, desde que dentro de quatro paredes. Mas não as paredes da casa deles. – eu podia sentir a revolta e a mágoa dentro de Sirius. Revirei os olhos em apoio.

— Então você saiu por liberdade mesmo?

Ele negou com a cabeça, com um pouco de rancor. Eu imaginava que não teria sido tão fácil, afinal ninguém foge de casa apenas por estar meio chateado com o tratamento dos pais. Só faz isso quem, como eu, chega ao limite.

— Saí depois de uma surra que abriu meu lábio. Porque meu pai não aceitou que eu reclamasse, em plena mesa de jantar, do jeito que ele me humilhara para um amigo. Dizendo que eu estava numa fase de “me engraçar com bigodudos ao invés de peitudas”.

— Que incrível! Homofóbico e misógino em uma frase só! – resmunguei, ficando realmente irritado.

— Exato!– disse Sirius, revirando os olhos. – Ele fazia boxe, e usou em mim cada soco que sabia. Quando eu consegui revidar algo, minha mãe estava aos berros, e meu irmão assistiu tudo, sem apartar nada. Eu acho que machuquei meu pai, porque quando eu vi, tinha sangue na minha mão.

Eu estava torcendo o rosto ao imaginar o que acontecera. Meu estômago não era exatamente fã de relatos de violência, e eu estava realmente incomodado, além de achar repulsiva e perturbadora a ideia de Sirius sendo moído em socos.

— Enquanto ele estava agarrando o rosto, eu tentei subir para o meu quarto. Pegar meu celular, eu acho. Nem lembro mais. Só sei que ele me agarrou no meio da escada, e eu bati minha boca na balaustrada, meu lábio abriu e jorrou sangue e toda essa nojeira. Aí sim minha mãe pediu que parássemos. Meu pai sair e colocou gelo no rosto, como se nada tivesse acontecido, como se eu não estivesse quase desacordado na escada, sangrando. Fui para o Pontas naquela noite, e só voltei lá uma vez, dois dias depois, para pegar minhas coisas.

— Eu estou com náuseas só de imaginar, Sirius. Eu sinto muito mesmo. – eu disse, enjoado, com aquela agonia se avolumando dentro de mim.

Nenhum de nós disse mais algo por um tempo, e então eu soltei.

— Talvez eu apanhe também.

Sirius me encarou, absorvendo o que eu tinha acabado de falar, os olhos meio curiosos, meio arregalados. Nem mesmo eu percebera a facilidade com que aquelas palavras tinham saído da minha boca. Claro, era algo que eu pensava, até mesmo imaginava meu pai o fazendo, mas nunca comentara isso. Verbalizar tornava mais real.

— Você está pretendendo contar para eles?

— Eu preciso me assumir. E vazar em seguida.

— Está ruim assim? – ele quis saber, com uma expressão preocupada.

Foi minha vez de dar o risinho sem graça e respirar bem fundo. Aquela agonia continuava a crescer no buraco vazio dentro de mim. Sirius teve o bom senso de ir buscar dois copos de água, e quando ele voltou, eu comecei a falar.

— Você merece a verdade. E a verdade é que eu estou enlouquecendo lá. A verdade é que a última coisa boa que eu tive foram aquelas semanas com você antes do aniversário do James. – disse, com um nó se formando na garganta.

— Eu não cheguei a entender por que você se afastou.

— Meus pais.

Então contei a Sirius exatamente tudo que eu contara a Lily. Sobre meus pais desconfiarem de eu estar namorando e sobre meu afastamento da religião.

Contei sobre como Emmeline Vance aparecera dizendo que ouvira “Deus” dizer que estávamos destinados a ficarmos juntos, e como meus pais tinham pirado completamente e acreditado naquela baboseira. Como, desde então, estavam me obrigando a ir à igreja várias vezes por semana para “orar” com Emmeline,  pedir uma benção divina para nosso relacionamento ou sei lá o quê, em algo próximo a um cativeiro domiciliar.

Eu tinha asco daquilo em que tinha sido enfiado. Asco da violação de consciência que estava sofrendo, sem poder fazer nada a respeito.

Contei como eu tinha implorado que não fizessem isso, que eu não queria, que eu não concordava, e nem seria feliz daquele modo, e sobre como meus pais tinham ignorado completamente. Como eu chorara de desespero, e tivera uma crise de ansiedade, e meu pai apenas lera a bíblia em minha cara por meia hora, dizendo que eu estava sendo controlado por demônios, enquanto eu entrava em pânico.

— Isso é a maior piração que eu já ouvi! Seus pais enlouqueceram! Você podia ter tido um surto!

— Meus pais estão desesperados para que eu seja sempre a pessoa que eles querem que eu seja. Mas eu estou exausto, Almofadinhas! Eu sou duas pessoas minha vida inteira! Eu fui o filho do Lyall e da Hope Lupin, a vida inteira, mas eu juro que não sou ele!

“Eu fui sempre um pianista de igreja, tímido, calado e bonitinho, porque é assim que um bom filho tem que ser. Eu nunca pude ser eu, não dentro da minha casa. Eu só sou eu com Lily e Dorcas, ou com Peter, pintando e fazendo artes, bebendo no pub, ouvindo as músicas e assistindo as séries que quero. Eu só tive momentos escondidos de ser eu mesmo, ou mentindo, ou fora de casa. A vida toda. Às vezes, eu sinto que não existo.”

— Não posso dizer que entendo, mas eu sinto muito, Aluado. – os olhos de Sirius estavam brilhosos de um jeito úmido, e eu senti que podia facilmente chorar.

De cansaço.

Eu estava cansado de ser duas pessoas.

Cansado de como só fora de casa eu podia beijar meninos, só lá podia me sentir normal e amado por ser eu mesmo, só lá podia admitir que eu não era heterossexual. Podia não ser discriminado e ameaçado de queimar no inferno.

Cansado de a rua ser mais segura para ser gay do que a minha própria casa.

Cansado de como eu achava tudo fácil antes. Cansado de só ter problemas que cresciam e cresciam. Estava tão cansado de continuar lutando para coabitar, dentro de mim, as duas personalidades que vivia, e cansado de como uma delas me fazia completamente infeliz. E desde que tudo começara com Emmeline, eu me sentia cada dia menos vivo, mais revoltado e deprimido.

— Eu queria ter dito sim, Sirius. Aquele dia, doeu para caralho não poder dizer sim a você. – eu sentia meus olhos esquentarem. - Mas eu não posso sequer ser eu mesmo para mim... eu sequer posso existir, Sirius!

— Não diga isso, Aluado. É claro que você existe! Você existe e é incrível, nós todos amamos você! James, Lily, Dorcas... eu.

Ouvir aquilo teria despertado em mim o gatilho exato para agarrar Sirius e me resolver com ele. Ser recíproco e dizer que sentia o mesmo, e me engalfinhar com ele em um amasso que ganharia intensidade muito rapidamente, deixando nossas roupas no chão em minutos. Mas não naquele dia.

Naquele dia, ouvir aquilo me fez chorar.

Eu estava completamente devastado, com pedaços de mim ardendo de agonia, e eu nem mesmo sabia se havia motivos o suficiente para continuar a existir, porque meus pais estavam me matando estrangulado com sua beatice e sua piração.

Mediando aquele caos estava Sirius, a única pessoa que eu conhecia que experimentara algo do que eu estava passando, mediando a queda livre em que eu estava. Ele sentou-se ao meu lado e me abraçou.

— Nós amamos você, Aluado. Você não pode continuar nessa piração, está claro que seus pais perderam a sanidade tanto quanto os meus. – ele sussurrava enquanto eu chorava silenciosamente, sendo rasgado de dentro para fora.

— Eu não sei o que fazer. – disse, ainda deitado no peito dele, quando finalmente consegui falar.

— Você tem a gente.

— E nem para aonde ir. – acrescentei.

— Você tem a gente. – ele insistiu, me fazendo levantar a cabeça para olhá-lo. – Não vamos deixar você sozinho, Remo. Seus pais estão matando você.

Sirius estava distorcido em meus olhos úmidos demais, e eu tentava enxergar mais claro.

— Por que está fazendo isso por mim?

— Isso o quê?

— Está se enfiando até o pescoço na merda que é a minha vida, depois de eu ter sido ridículo com você. – perguntei, me sentindo infantil por isso.

Certo, de quanto mais humilhação eu precisava? Restaria algo ainda da minha dignidade quando eu fosse embora?

— Você também acreditou em mim e nessa minha vontade de escrever o álbum. E eu já estive na mesma que você agora, e se não fosse o James, eu não acho que teria sobrevivido muito mais tempo também.

Alguns quilos tinham saído do meu emocional prejudicado depois daquele choro, e havia algo quase próximo de serenidade se instaurando no meu peito, embora não no lugar daquele buraco de vazio. Não. Esse buraco só meus pais poderiam consertar, e eu não achava que fariam.

— Eu pensei que tinha algo a ver com você me amar, sabe? – impliquei algum tempo depois, fazendo Sirius dar um risinho debochado.

— Você anda convencido demais, Aluado. – ele devolveu, me empurrando com o ombro, de leve.

***

Pelas duas semanas que se seguiram, ficava cada dia mais insustentável ficar em casa. Estava difícil até para dormir. Eu vinha tendo pesadelos sobre como seria me assumir gay para meus pais, a maioria deles envolvia alguma ação violenta que fazia eu acordar em um pulo, encharcado de suor e com o coração acelerado.

Meus amigos todos estavam prestando apoio como podiam, e eu começara a ponderar que, talvez, eu precisasse me assumir logo. Eu sabia que era uma ação sem volta, que não haveria a menor chance de continuar em casa depois de fazê-lo. Eu pensava em dinheiro e trabalho, casa e comida, e tinha medo.

“Você está tão na merda, Remo Lupin!” eu pensava diariamente.

Foi numa terça-feira quando, depois da aula, meus amigos se reuniram, e até Sirius apareceu, para montar um plano para eu sair de casa. Não concordei com algumas coisas, questionei e tentei mudar o foco, mas Dorcas, Marlene e Lily estavam irredutíveis, e James, Peter e Sirius estavam muito empenhados em me fazer perceber os esforços deles pela situação.

Levou algumas horas aquilo tudo, mas eu voltei para casa com uma pontinha de esperança, além de uma ansiedade muito alta, e uma sensação de estar flutuando. Em três dias eu ia assumir minha sexualidade para meus pais, e então sair de casa.

Não era nada muito complexo, mas a ideia era ir, ao longo dos dias, tirando minhas coisas de casa, como roupas e pertences, para que não houvesse necessidade de voltar lá, nem ter problemas para sair. James, Lily e Sirius se responsabilizariam por ir me buscar e me acompanhar até a casa de James, aonde eu ficaria provisoriamente.

Pelo resto da semana eu furei meus compromissos com a “piração Emmeline”, e concentrei meus esforços em parecer normal e calmo, e em tirar meus pertences de casa. A cada mochila de coisas que eu levava para a casa de James, uma nota de ansiedade e nervosismo surgia, e eu precisava usar a bombinha algumas vezes ao longo do dia.

Era bom que as coisas não ficassem agressivas, porque meus pulmões asmáticos não aguentariam nem uma fuga de dois quarteirões.

Justamente nisso que eu pensava quando preparei o terreno para a conversa, no meio de jantar, dizendo que gostaria de conversar com meus pais. Eles simplesmente concordaram e continuaram a comer normalmente, coisa que eu não fiz, para não correr o risco de vomitar de nervosismo.

 

[Sirius iPod – 19:42]

Vai dar tudo certo.

Estamos num pub a duas ruas da sua casa

 

[Eu – 19:42]

Vamos conversar agora

Deixei a porta destrancada por precaução

Se eu não mandar mensagem em 20min, me liga

 

[Sirius iPod – 19:43]

Estamos com você, Aluado

 

— Remo?– chamou meu pai, meio impaciente.

Eu respirei fundo e assenti, me sentando em uma poltrona.

— Ahm.. é sobre uma coisa que eu tenho deixado, uhm... omitida.

Oh, merda! Como começar um assunto como esse?

— Certo... bem... vocês sabem, eu nunca apresentei uma namorada, nem falei sobre minha vida... uhm... afetiva.

PARE DE GAGUEJAR, LUPIN.

— Agora você tem Emmeline, querido! – disse minha mãe, sem nem me olhar.

— É... uhm, não, eu não tenho. Eu... eu não concordo com o que decidiram. E não vou mais me encontrar com Emmeline. Não vai dar certo.

— Pare de bobagens, Remo! Emmeline é uma ótima garota, e você vai ver que é o melhor par-

— Não, pai. Eu não vou mais... não vou mais fazer seja o que for com Emmeline. – falei firme, mas sentindo minhas mãos tremerem. – Eu não... posso. Não vai dar certo.

Dali não haveria volta. Eu sentia a tensão se avolumando, e meu coração galopava.

— Não posso fazer isso, porque não sou as-. Nunca vou gostar de Emmeline. Porque sou gay.

Eu estava de olhos fechados quando falei, e levei uns segundo para tomar coragem de ver as reações à minha confissão. Minha mãe estava com uma das mãos apoiando o rosto, os olhos arregalados e uma expressão perdida, e meu pai parecia muito perturbado. Eu achava que explodiria de apreensão sem eles dizerem algo.

— Vocês podem dizer alg-

— Para o seu quarto, Remo. – disse ele, em uma única sibilada.

— Como?

— Seu quarto. Vá rezar, e pedir muito perdão a Deus pela blasfêmia absurda que está dizendo. Você não é gay, e nunca mais vai falar desses absurdos nessa casa.

Um botão de raiva e indignação tinha sido ativado em mim, e eu estava subitamente irritado.

— O quê? Não. Pai, eu sou gay, rezar não vai mudar isso!

— Remo! Pare com isso, filho! Você não é gay! Você é um menino carinhoso e educado, e perfeitamente normal! – disse minha mãe, aturdida, numa tentativa de se convencer com a negação.

— O que isso tem a ver, mãe?! Eu sou carinhoso e educado, e normal. E gay! Uma coisa não muda a outra!

Quieto! Você não vai falar desses pecados na minha casa! Vá pro quarto, pedir perdão a Deus! Agora!– meu pai estava de pé, e apontando um dedo em riste em direção à escada, quase urrando.

— Eu não vou pedir perdão por ser eu! Eu já fiz isso todos esses anos e não deu certo! – meus olhos estavam ardendo, e eu sabia que ia chorar. – Eu sou gay, e se Deus for Ele mesmo, vai entender que sou assim! E vocês também, não é?

Minha mãe estava completamente aterrorizada, como se eu tivesse dito que morreria em cinco minutos. Ou que matara alguém. Mas meu pai só negava com a cabeça, deixando claro que ele não entenderia nada. Que bela merda eu tinha criado!

— O que aconteceu, Remo?! Por quê? – disse ela, beirando o choro.

— Nada. Mãe, sem drama, por favor! Não aconteceu nada. Sou eu, continuo eu.

Não queria ser insensível; era claro que seria um choque para os meus pais, já que eles nunca tinham se preocupado em me conhecer a fundo, mas eu realmente não estava com paciência para aquelas cenas exageradas de “aonde eu errei?”, como se ser gay fosse fruto de uma criação ruim.

Eu estava meio no fundo do poço, tentando não morrer sufocado. Esse, com certeza, não era o momento que eu conseguiria ser diplomático e amigável, explicando gênero e sexualidade para os meus pais.

— Isso é um surto dele. Cadê os comprimidos? Dá um calmante para esse menino, Hope! Piração!– meu pai estava quase roxo de irritação, os lábios crispados.

— Piração é o que você faz comigo. Obrigar a namorar Emmel-

— Isso curaria você dessa loucura! – gritou ele, e minha mãe guinchou alto, desolada. – Você é ingrato ao amor de Deus, Remo! E essa luxúria vergonhosa vai matar você. Aonde se viu? Pessoas assim vão ao inferno, você sabe disso!

Eu estava em pé também, encarando-o. Nós dois lívidos de raiva, e eu chorando em silêncio. De raiva e de mágoa. Minha mãe ficava me chamando, pedindo qualquer coisa que o choro tornava incompreensível. Eu sentia o pânico vindo e a respiração falhando. Meu celular zumbia sobre a poltrona, e eu o peguei. Sirius ligava.

Eu devia ter ido embora naquele momento. Devia ter deixado de insistir, meus pais nunca reagiriam bem. Aquilo fora uma péssima, péssima ideia. Mas estava magoado, cansado, frustrado, e muito irritado. A raiva sobreveio com todo seu potencial explosivo e eu berrei.

— Você está se ouvindo? Você está dizendo que eu mereço morrer? Eu sou seu filho! Cadê o seu amor por mim?

— Amar você nesse pecado? Nunca! Amar a Deus sobre todas as coisas, Remo. – berrou ele.

— E ao próximo como a si mesmo. – respondi, baixando o tom, ainda furioso.

Ali foi quando ele deu o primeiro tapa, e ardeu como brasa. Tanto no rosto quanto dentro do meu peito. Ele tinha alcançado um ponto irreversível, e eu me sentia humilhado em apanhar daquela forma, mas havia mais por vir.

— Não venha me retrucar! Você não é meu próximo. Não sendo um gayzinho ordinário e nojento! – ele continuou me batendo aonde alcançava, e eu me afastava para longe do raio dele, determinado a não reagir, porque não teria força física para lidar com agressividade genuína.

— Lyall. Pare com isso. Lyall, largue ele! Remo!

— Bater não vai resolver pai, eu continuarei a ser gay.

Eu não fazia ideia de duas coisas: de onde vinha minha audácia de enfrentá-lo daquele jeito, e do ódio que meu pai sentia naquele momento.

— Nessa casa não vai viver nenhum adorador de sodomia.

— Não se incomode, eu vou embora.

A insolência das minhas palavras tinha estourado o limite dele, porque antes que eu pudesse ter a chance de abrir a porta e ir embora de vez, ele me segurou pela camisa e acertou o primeiro golpe no meio do rosto. A dor foi tão absurda que eu gritei, sentindo um esguicho quente escorrer do nariz e encher minha boca com gosto de ferro.

— Não, para! – berrei, levando as mãos ao rosto e me encolhendo.

—Lyall! Não! Pare com isso!

Houve socos espalhados e uma joelhada no meio do abdome que deve ter acertado meu diafragma, porque fiquei instantaneamente sem ar, sufocando com o sangue no rosto, sendo inevitável cair de joelhos.

Vulnerável.

Doía de um jeito extracorpóreo, porque era como se ele socasse minha essência também. O buraco vazio que eu sentia, de repente, ficara tão grande que eu sumira dentro dele, e era como se eu fosse nada. A dor pungente em cada lugar que eu apanhava era a única coisa que me lembrava de que eu ainda tinha um corpo físico, porcamente sobrevivente e esvaído de qualquer força para reagir a surra que levava.

Por ser gay.

Meu celular vibrava muito no bolso da jeans. Queria atender e pedir ajuda, mas eu sequer conseguia me por de pé devido aos chutes na costela que tiravam todo o mínimo ar que eu estava tentando conseguir de volta.

Eu tinha passado tantos dias fantasiando como seria deixar de existir, de várias formas, com várias despedidas, que, de repente, era irônico eu estar desesperado diante da perspectiva de morrer. Mas estava. Seria tão mais fácil desistir ali, me abandonar, deixar de lutar. Mas eu tinha medo. Não se dizer se era da morte ou do inferno que eu não acreditava, mas eu desejava, da maneira mais intensa possível, continuar vivo.

Eu só não tinha de onde tirar as forças para isso.

— Lyall! Pare! Lyall! Vai machucá-lo!

— Por favor, pare. – pedi, entrando em pânico.

Seria muito inútil ter feito tantos planejamentos para ir embora e então morrer surrado na sala. Eu não queria, mas me renderia.

— Remo? Rem, abre a porta! – Lily gritou do lado de fora.

— Mas o qu-

— Remo!

Tudo virara uma barulheira e uma confusão muito maiores, de súbito, havia mais gente na sala. Eu só conseguia arfar, vendo o sangue pingar, do meu rosto, no chão, a dois míseros passos de desistir.


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Notas finais do capítulo

Sofrido demais, eu sei. Opiniões no que o Remus está passando? Alguma ideia do que vai acontecer?