Vício escrita por Anny Martins


Capítulo 2
Surpresa!




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TÉO

Eu posso contar os meses nas mãos, os cinco dedos de uma, três de outra, e é como se nesse gesto segurasse todo o meu futuro prometido (por mim). Mais oito meses e eu estarei longe.

Finalmente, me formaria sendo o melhor aluno do colégio e, com isso, ganharia a bolsa do programa de artes e entraria na faculdade com a qual eu sonho há mais de dez anos.

Não que seja ruim estar ali, mas eu sempre soube que não era onde eu terminaria. Eu e a cidade temos uma relação fria, distante, desconexa. Entre prédios baixos, ruas arborizadas, pontes velhas e águas profundas, simplesmente não há espaço para mim.

Eu me divirto, é claro. Enquanto Ester está na enfermaria do colégio por ter aspirado uma batata frita com o nariz, eu e Luc esperamos no corredor, segurando o riso com todas as nossas forças. É apenas mais um dia normal na escola, e eu terei mais 261 deles para rir das situações desastrosas em que Ester se mete.

Ela é um ano mais nova que nós. Como era vizinha e amiga confidente de Luc desde a infância e ele é o meu melhor amigo desde que tínhamos treze, a aproximação foi inevitável quando ela se matriculou no colégio. Resisti no começo, achei que era pirralha demais para andar com a gente. E ela não se ajudava: era dramática e teimosa. Mas só não tive outra escolha ao perceber que ela e Luc eram inseparáveis. Desde então, somos nós três. Hoje ela diz que o dramático sempre fui eu (e eu discordo).

Luc e eu nos conhecemos nos meus piores dias. Eu havia deixado de ser o garotinho inteligente e extremamente amigável para ser o estranho que só andava de cabeça baixa, silenciosamente. Ninguém me culpava por essa mudança radical, mas também não se arriscavam em chegar perto. Mas Luc não se importou. Um dia, quando uma aula experimental de passarela levou todas as suas amigas durante o recreio, ele se sentou ao meu lado.

— O que você tá desenhando? — perguntou, curioso.

Olhei desconfiado.

— É uma personagem de anime.

— Lucy? Fairy Tail? Não parece um desenho de mangá. — ele encarou o desenho.

Recebi a resposta como um desafio, e por alguns segundos, senti falta dela e de suas respostas petulantes. Mas logo percebi que Luc estava genuinamente interessado.

— Não é meu estilo de desenho. Mas eu gosto da personagem.

— Eu também!

A partir desse dia, ele passou a se sentar ao meu lado, e logo se tornou meu melhor amigo, permanecendo mesmo depois que voltei a ser o que Luc define como “insuportavelmente simpático”. 

— A pior parte de andar com você é ter que cumprimentar todo mundo. — resmunga ele pelo menos uma vez por semana.

Ao contrário dele, Ester gosta da atenção que recebe quando está comigo e minha insuportável simpatia. Foi graças a mim que ela conheceu a Rafa. O que talvez não seja algo tão positivo, considerando o fim que elas tiveram — mesmo depois de um ano e meio, esse ainda é um nome proibido nas nossas conversas. 

Finalmente, a porta da enfermaria se abre. Ester revira os olhos quando nos vê sentados. 

— Vocês não precisavam ficar aqui.

— A gente sentiu um pouco de culpa por ter assustado você. — falei com um meio sorriso.

— Como eu não ia me assustar com aquela porra de história?

Estávamos contando para ela a Grande Lenda Urbana da Cidade, que não era exatamente uma lenda, mas uma interpretação supersticiosa dos fatos. Como veio para cá aos oito anos, nunca tinha ouvido. Acho que a dramatização que fizemos também ajudou com que ela ficasse impressionada.  

A história é sobre o Rio Vermelho, um rio grande, profundo e traiçoeiro que corre por toda a cidade. Uns 100 anos atrás, existiu um serial killer que deixava os corpos das vítimas perto da nascente do rio. Dizem as más línguas que é por isso que o rio fica literalmente vermelho em algumas épocas do ano. Não é verdade, o rio só fica assim por causa de uma espécie rara de alga que vive ali e solta o pigmento. Mas quem se importa com a verdade?

Eu posso ouvir a voz dela dentro dessas palavras.

Quem se importa com a verdade, Teodoro?

— Aliás... — murmura Ester, sentando-se ao lado de Luc e roubando seu refrigerante — Não consigo entender como essa história macabra não te causa gatilho.

Ela está falando comigo.

Luc a repreende com o olhar, como se ela estivesse tocando em um território perigoso.     

— Eu não acredito nisso de qualquer maneira. — digo, desviando do assunto. — Não é melhor irmos para a porta? O sinal vai tocar a qualquer momento.

—  Ai, espera um pouco, não quero ficar duas horas de pé lá fora esperando meu pai. — reclama Luc.

Não demora nem um minuto para que o barulho ecoe pelo colégio e os corredores estreitos e vazios se transformem em uma grande aglomeração de adolescentes desesperados para ir embora. Fico nervoso só de olhar todos se apertando em seus moletons enormes (embora estejamos no auge do verão) e tropeçando em mochilas, cadarços e fichários. É um cenário cansativo. 

Quando nos levantamos, sinto os olhares me acompanhando. Se eu dissesse isso agora em voz alta, Luc diria que é apenas minha “Síndrome de Monalisa”, com a qual ele me diagnosticou durante meu Período Sombrio. 

— Você tem essa mania de achar que as pessoas se importam o bastante pra falar de você o tempo todo. — disse ele enquanto me obrigava a descer as escadas e encarar o pátio durante o recreio pela primeira vez em meses.

Mas dessa vez é real. Consigo ouvir cochichos e vejo todos encolhidos nos cantos, abrindo espaço para que passemos. Estão olhando para mim, e sei disso. Alguns rostos parecem assustados, outros, curiosos. Parece que estou em um dos meus pesadelos mais uma vez. Me belisco sem que ninguém perceba, como se isso funcionasse na vida real, quando nem mesmo em pesadelos surte efeito. Não custa tentar. 

Ester me puxa pelo braço.

— Você sente que tem algo... estranho?

Sabia. Não estou maluco. Olho para ela e assinto.

Quando passamos pelas catracas e chegamos à porta do colégio, eu finalmente entendo. 

Imaginei esse momento muitas vezes, de todas as maneiras possíveis. Na porta da minha casa, no caminho da ponte, na beira do rio. Enquanto andava pelo shopping, em ruas aleatórias e até mesmo ali, na porta do colégio. Esse momento esteve nos meus sonhos e nos meus pesadelos. Mas jamais pensei que isso realmente aconteceria. Fora da fantasia, ali está ela, sentada no banco que nós conhecíamos muito bem.

Ela não mudou quase nada. Seus cabelos continuam escuros e sua marca de nascença preta ao redor de um dos olhos está ali, para garantir que é ela. Mas por algum motivo, parece uma pessoa diferente. Diferente daquela que um dia eu conheci, diferente da que volta e meia aparecia no meu subconsciente. Mas é ela.

Assim que me vê, ela se levanta rapidamente, até parar na minha frente.

Sinto cada parte de mim se desfazendo e se recompondo, sem parar. De repente não consigo ver mais nada ao redor. Meu coração dispara e sinto tanto frio que poderia usar o moletom do colégio (mesmo nesse calor infernal).

— Teodoro.

Sua voz sibila tranquilamente um nome que não é meu, e então vejo uma expressão maldosa se formar em seu rosto, como se estivesse se lembrando dos velhos tempos. 

Não sei o que fazer. Em todas as minhas fantasias desse momento, era ela que falava e falava e falava, enquanto eu assistia ao monólogo, como um mero espectador. Às vezes eu reagia, entrava em ação, fazia algo. Mas nunca falava. 

Ela se desculpava, explicava suas razões, implorava por perdão, se arrependia profundamente. Uma vez, me disse que tinha arranjado um jeito de voltar no tempo.

Encontrei um portal. Podemos voltar no tempo, Teodoro, realmente podemos. 

Eu a afastava, empurrava, me enfurecia, não aceitava suas desculpas. E sempre, sempre, sempre terminava a fantasia com um gosto amargo na boca, arrependido do meu último ato. Aquele que não ouso colocar em minha mente nesse momento.

E agora, cá estamos, na vida real, isso realmente está acontecendo e eu não consigo mexer um músculo. Então espero pelo seu monólogo.

Mas ele não vem. Ela respira fundo e vira as costas. No último degrau da escada, olha para trás e sorri maliciosamente.

— Nos vemos em breve, caracolzinho.

Caracolzinho. Eu não ouvia essa palavra há muito tempo. Costumava ser uma maneira de me irritar.

Antes que sua imagem desapareça dentro de um carro cinza, eu sussurro:

— Cecília...

Balanço a cabeça e olho ao redor. Todos parecem pálidos, como se tivessem acabado de ver um fantasma. O que, de fato, aconteceu. Todos vimos um fantasma. E o fantasma disse meu nome.

Ester e Luc me puxam para o banco e eu me sento involuntariamente. Ainda sinto frio e meu coração desacelera pouco a pouco. Quando me recupero do choque, volto a raciocinar. Me apego aos oito meses restantes nesse lugar. Me conforto na iminência de um fim, de um recomeço. Eu nunca mais terei que reviver nada disso. Nem as ruas, nem as construções, nem o rio, nem as lendas. Nem mesmo Cecília. Nada disso vai ser importante.

E então eu me pergunto o que pode acontecer em oito meses.

Nada que estrague os meus planos. Disso eu sei.


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