O Caminho das Estações escrita por Sallen


Capítulo 21
∾ Ainda estou de pé no mesmo lugar em que você me deixou.


Notas iniciais do capítulo

Hello, it's me. I was wondering if after all these years you'd like to meet...

Bem, vamos lá. Olá, dessa vez atrasado, mas olá! Espero que não tenham pensado que desisti e abandonei a história.

Peço desculpas por não ter postado capítulo na semana passada, aconteceu um acidente. Por mais incrível que pareça, choveu no meu notebook mesmo dentro de casa. Pois é, isso mesmo. Estava tendo um temporal, as janelas estavam abertas e quando eu voltei para sala ele estava quase competindo nas olimpíadas. Foi um desespero só!

Bem, eu estou postando esse capítulo dele, o que significa que consegui salvá-lo sem muitos danos. Então, peço desculpas pelo atraso, eu fiquei bem mal de ter que atrasar e não conseguir avisar. Porém, eu tardo, mas não falho! Aqui estamos, outra vez, firmes e fortes!



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Havia um bom tempo que não via aquela casa. Não anos, mas longos meses. Na verdade, conforme a vida adulta foi estabelecendo ao longo da idade, se tornaram raras as visitas a seus amigos. A vida adulta cobrava caro em tal quesito, sugando os dias até se tornarem anos, sem que percebesse. Era bom finalmente conseguir mais tempo.  

Estava diferente do que se lembrava. Havia traços bem aparentes de uma obra recente. As paredes em cor mais sóbria escondiam o rubro antigo, tão desbotado pelo efeito do clima. As janelas e portas, antigamente de madeira, eram apenas alumínio e vidro agora. Percebeu que sentia falta desses detalhes antigos. Da madeira descascando e da tinta desbotada. Embora, talvez, concordasse ser melhor renovar o que era antigo, fugir um pouco do passado.  

Algumas coisas, no entanto, permaneciam iguais. O jardim, embora envelhecido, continuava bem cuidado, mesmo com o clima frio inóspito. As grandes varandas ainda rodeavam a casa no centro, com suas costumeiras grades de ferro. E a grande árvore no jardim, mais velha do que nunca, continuava resistindo ao tempo, e também às estações, inclusive ao inverno, que consumiu todas as folhas de sua grande copa, deixando apenas um esqueleto marrom imponente. E, além de tudo o que contrastava com as mudanças inevitáveis, havia um detalhe que permanecia imutável, talvez para sempre conservado. As lembranças de Nirav.  

Embora fizesse parte dos anos que prometeu esquecer, parecia impossível evitar. Apesar de todo o tempo que havia passado, suas lembranças eram tão vívidas que se camuflavam como se fossem quase recentes. Não importava se as cores das paredes mudariam, se as janelas e portas se trocassem, se as varandas deixassem de existir, se o jardim secasse ou se a bendita árvore velha morresse, o que permaneceria seriam sempre suas lembranças. E não parecia importar, também, o quanto tentasse apagá-las. Estariam sempre marcadas naquele solo, retornando à superfície no instante em que se aproximasse. O máximo que conseguia fazer era disfarçá-las, tentar enganar a si mesmo, ainda que em vão.  

Como se assistisse a um filme antigo, cujo qual gravou todas as cenas, os diálogos repetiam-se sozinhos em sua mente, reproduzindo uma história tão bem conhecida, com um final tão trágico. Então, cansado de repetir esse filme, começava a perseguir cenários diferentes. E se tivesse feito diferente? E se tivesse dito melhor? E se, e se, e se?  

Era sempre uma armadilha, afinal não havia resposta. Se havia alguma coisa imutável na vida, não eram casas com seus jardins e decorações, era o passado. Do que adiantava torturar-se com o que não podia controlar? E se pudesse, não sabia se a decisão de mudar era a melhor. Certas coisas acontecem porque tem de acontecer e assim precisa ser. Ainda que doa, ainda que pareça injusto.  

Na porta, a amiga esperava de braços abertos e sorriso acolhedor. Dizia algo sobre como estava feliz que tivesse vindo e que sentia saudades. Não conseguiu entender direito, permanecia preso dentro de uma película antiga, saturada pelo uso, reproduzindo memórias. De qualquer forma, a abraçou com carinho, sentindo a vida real chamar seu nome de volta.  

Quando entrou, a casa parecia mais ampla e mais vazia. Agora, sem a presença dos pais de Louise, tudo parecia grande demais para apenas ela. Entretanto, assim que encontrou os outros, a sensação de vazio permaneceu. Theo, que havia chegado minutos antes, veio em sua direção enquanto Helena, que ajudava a preparar a refeição, gritou da cozinha. Talvez, fosse a ausência temporária de Hester e Alice, que não tinham chegado. Porém, não adiantava tentar se persuadir. Faltava alguém mais. Sempre parecia faltar, mesmo quando o círculo estava completo.  

Era bom poder se reunir outra vez. Ainda que continuassem tão próximos quanto antes, as responsabilidades de uma vida madura acabavam por mantê-los afastados. Todo o trabalho, correria do cotidiano e os contratempos ocupavam mais de suas vidas do que gostariam. Não podia negar a saudade que sentia de sua tenra idade, quando tudo o que precisava se preocupar era a faculdade e tinha todos os fins de semanas livres. De qualquer forma, não era como se fosse um período muito longo sem estar ao lado de seus amigos. Sempre que tinham a oportunidade, não a desperdiçavam.  

O cheiro que vinha da cozinha era delicioso, o suficiente para fazer sua barriga roncar só de senti-lo. E Louise se orgulhava disso, embora tão ocupada com o restaurante em que trabalhava, sempre procurava reuni-los em volta de uma mesa farta com suas comidas, era difícil recusar os convites dos mais diversos almoços e jantares.   

— O cheiro está tão bom. — Theo comentou, se aproximando da cozinha, onde Helena o interrompeu.  

— Nada de comer antes de todo mundo estar na mesa! — repreendeu-o. — Inclusive, nos ajudem a colocar a mesa na varanda, por favor.  

Sem mais delongas, eles se adiantaram até a mesa de madeira, que ocupava a maior parte do espaço da sala, dispondo as cadeiras e dividindo o peso para conseguirem carregá-la ao lado de fora. Embora não fosse tão grande, era bem pesada e quase, por muito pouco, não passava pela abertura das portas. Colocaram na extensa varanda interior, menos espaçosa do que a parte da frente e talvez a parte mais singela do lugar, além de aconchegante.  

— Não encontrou com ninguém no meio do caminho? — Lou perguntou enquanto terminavam de ajeitar as cadeiras ao redor.  

— Não. Na verdade, achei que Hester e Alice já estariam aqui quando cheguei. — ele franziu o cenho, ajeitando os cabelos. — Tem mais alguém para chegar?  

Por um momento, Nirav percebeu que Lou parecia não saber o que responder. Olhou para Theo, que estava distraído demais em seus próprios pensamentos, depois para Helena, também alheia à conversa. Estranhou, até que ela meneou com a cabeça.  

— Estava falando delas mesmo. Saíram para comprar algumas coisas que faltavam, mas estão demorando demais.  

Helena interveio, se aproximando.  

— Devem estar presa em alguma fila por aí.  

— E eu estou ficando com fome. — Theo reclamou ao puxar uma das cadeiras para se sentar.  

— E quando é que você não está com fome? — Helena devolveu, encostada na parede.  

Nirav sorriu, observando os dois. Sentiu uma breve nostalgia, como se voltasse aos seus vinte e três anos, escutando seus amigos implicarem um com outro feito crianças. Bem, talvez não tivessem perdido esse traço. O que, no fim das contas, não era tão ruim assim.  

Lou retirou-se por um instante, retornando à cozinha, para o cheiro delicioso que implicava com a barriga. Como Theo, seu estômago também reclamava, porém não restava nada que pudesse fazer, senão esperar.  

— Sua mãe ainda está aí? — Helena perguntou, sentada próxima a Theo, mexendo nos próprios cachos que coroavam seu rosto maduro.  

— Sim, mas não quer ficar por muito mais tempo, já está planejando voltar. — encostado no portal da entrada da varanda, ele enfiou as mãos nos bolsos frontais da calça jeans escura.  

Theo deu uma risada provocativa, jogando a cabeça para trás ao fazê-lo.  

— Como é ser trocado pelo padrasto?  

— Ainda estou tentando me acostumar. Você sabe como é difícil quando se é o filhinho da mamãe. — respondeu com o tom semelhante de brincadeira, rindo junto com o amigo.  

— Vocês já se conheceram? — Helena voltou a indagar.  

— Sim. Foram poucas vezes, mas eu fiz questão de garantir que ele tinha boas intenções.  

— Assim como disse que tinha para os pais da Alice? — Theo voltou a provocá-lo, arrancando risadas do grupo.  

— De boas intenções o inferno está cheio. — Helena concluiu sarcástica, arqueando as sobrancelhas, com mais risos divertidos. Nirav foi obrigado a concordar.  

Ele se acomodou sobre o parapeito da grade que cercava a varanda, enquanto esperava, mantendo o olhar para o lado de fora. Um suspiro irrequieto fugiu de sua boca. Estava uma tarde agradável, de um jeito diferente que não sabia explicar. O dia estava mais ensolarado se comparado com os outros. Uma pontada de luz do sol pálido de inverno escapava por trás de uma nuvem ou outra, derramando um calor ameno sob o solo. A brisa fria insistia, obrigando o uso de roupas quentes, apesar do sol mais aparente. Deveria ser um dia como qualquer outro, entretanto, havia algo estranho.  

Não conseguia distinguir ser apenas um vago sentimento ou uma sensação sólida. No entanto, parecia muito com o que sentiu, dias atrás, ao deparar-se com uma sombra. Ou melhor, o vulto de um fantasma antigo, há muito enterrado. Causava um certo agito dentro de peito, que logo se transformava em uma confusão maciça. O sentimento, ou a sensação, era tão semelhante que o fazia pensar... Não! Ele piscou várias vezes, ignorando o pensamento. Havia decidido apagar o episódio de sua memória. Era apenas uma ilusão, um engano e, principalmente, um equívoco.  

— Bem, está tudo pronto. Só falta as demais moças chegarem. — a voz de Lou, que acabava de retornar à mesa roubou-lhe de seus pensamentos. — Ah, esqueci de dizer, tem cerveja, se vocês quiserem.  

Nirav se levantou, concordando com a cabeça, anunciando que iria buscar uma. Era o que precisava, tanto para enganar o estômago faminto quanto os pensamentos traiçoeiros. Então, Theo chamou sua atenção.  

— Traz uma para mim, por favor. — pediu com um sorriso amigável, voltando a conversar com Helena e quando Nirav se afastou, tornou a chamá-lo. — Pode pegar meu violão também? Está na sala. Parece que ainda vão demorar para chegar.  

— Só isso ou mais alguma coisa, senhor? — indagou sarcástico, fazendo Theo rir.  

O cheiro que o recebeu quando chegou na cozinha era torturante. Não se conteve quando decidiu olhar as panelas, logo depois de pegar duas garrafas de cerveja. O assado no forno era o destaque, mas o macarrão cremoso quase o fez suspirar. Tudo parecia tão apetitoso que quase esqueceu-se do violão. Estava voltando para a varanda quando se recordou do pedido de Theo, obrigando-se a retornar até a sala.  

Disposto sobre o braço do sofá, o antigo violão já estava bem gasto. Era o primeiro, pelo que se lembrava. Embora tendo dinheiro suficiente para trocar por outro mais novo e mais moderno, Theo nunca pareceu desejar aposentá-lo, já tão velho e gasto. Nirav não podia culpá-lo, também sentiria uma certa pena de trocar algo que mais parecia um companheiro. E com aquele violão havia tantas lembranças, que trocá-lo parecia ser o mesmo que as extinguir.  

— Ahn, com licença... — a voz veio por suas costas, chegando aos seus ouvidos com um arrepio. — O portão estava aberto, eu não vi ninguém e...  

O silêncio retornou tão repentinamente que o mundo pareceu ficar mudo, desprovido de qualquer som. A voz, ele conhecia aquela voz. Não, não podia ser, estava enganado. Precisou ir de encontro a quem chamava para matar a dúvida que o torturava. Então, seu coração pareceu parar por um instante, para retomar um ritmo tão acelerado e descompassado que parecia chacoalhar todo seu corpo.  

De repente, tudo estava desfocado, opaco, perdido em um cenário irrelevante. Parecia não haver mais som, sentia-se surdo e um tanto atordoado pelo silêncio artificial, quebrado apenas pelo som que surgia de seu peito. Olhando para a mulher que estava diante de olhos, sentiu como se todo o mundo tivesse parado para olhá-la também.  

Os grandes olhos cor de avelã o encaravam de volta, tão surpresos quanto os seus. Ainda eram o mesmo olhar intenso de antes, assim como o nariz fino e a boca delineada, embora não carregasse o sorriso exagerado, apenas a expressão de surpresa, entreaberta expirando a respiração pesada. Continuava esguia e não havia crescido um centímetro a mais. De diferente apenas os cabelos, estavam mais curtos, acima dos ombros, caindo repicados com seu costumeiro ondulado.  

— Juno. — o nome escapou de seus lábios como um suspiro, tão leve e espontâneo que sequer pareceu ter percebido.  

— Nirav. — seu próprio nome foi tudo o que saiu da boca dela.   

Era estranho escutar aquela voz dizendo seu nome depois de tanto tempo. E jurou ter esquecido como era, mas assim que a escutou dizer, descobriu nunca deixou de se lembrar.  

Parecia uma grande ironia. Uma brincadeira de mal gosto do destino ao ocasionar o reencontro bem ali, nessa casa, onde tudo começou a desmoronar. Era impossível não reviver as memórias de uma tragédia anunciada. Cada segundo daquela noite retornava à sua mente, reproduzindo em câmera lenta para torturá-lo. Tudo parecia tão vívido que foi como levar o soco de Nicholas mais uma vez. E como doía.  

Parecia quase surreal estar admirando o rosto dela uma outra vez, quando a última lembrança que tinha era apenas um borrão se transformando em escuridão enquanto ele apagava e ela fugia. O rosto que nunca mais pensou ter outra chance de encontrar. A face que desistiu de procurar. Por isso, teve o ímpeto de ir até ela, contido apenas pelo transe da emoção, para ter certeza de que não era mais uma ilusão de uma sua mente carente.   

Diante da mulher à sua frente, não conseguia reagir, sequer pensar. Tudo parecia paralisado, estagnado em um momento em que o tempo não passava. Estavam apenas os dois, se encarando como dois estranhos que acabavam de ser conhecer, deixados sozinhos, sem saber o que falar. Até que outra voz se aproximou, também chamando seu nome, entretanto, essa já não tinha o mesmo efeito.  

— Nirav? — tratava-se de Lou, que continuou chamando, considerando o silêncio da parte dele. Apenas quando chegou na sala, entendeu o motivo. — Oh. — o suspiro nervoso que saiu de seus lábios foi alto o suficiente, então ela sorriu, sem graça. — Surpresa.  

Com o momento de tensão arruinado, pela primeira vez, Juno retirou o olhar do seu, deixando a sensação de vazio. Como se estivesse recuperando o fôlego de algum mergulho intenso e demorado, ela voltou a atenção para Louise.  

— Desculpe entrar assim, eu tentei chamar, mas... — sua voz estava falha, gaguejada, oscilante.  

— Sem problemas! Fico feliz que tenha vindo! — ela estendeu a mão para que Juno pudesse acompanhá-la. — Vamos entrar, tem mais alguém querendo ver você.  

Nirav reagiu, pela primeira vez, olhando em direção a amiga após sua resposta. Ela o olhou de volta, esboçando apenas um sorriso ingênuo e pequeno, como se entregasse a culpa de um planejamento às escuras, por suas costas, e também como se o incentivasse de algum modo a aproveitar a tragédia. E logo, desapareceu pela porta junto com Juno, deixando-o sozinho, perdido em uma sensação de vazio mais pesada do que aparentava.  

Sentia-se preso entre o presente e o passado, sem saber distinguir, orbitando entre os dois. Por um lado, estava tentando se declarar ao observar tudo ruir a sua frente. Por outro, estava observando a silhueta de alguém há muito perdido aparecer como se nunca tivesse desaparecido. E não sabia como se sentir. No fundo, havia tantos sentimentos que parecia impossível experimentá-los. E, por isso, estava perdido.  

Nirav precisou de um tempo, que pareceu uma eternidade, para recuperar o fôlego e retornar à varanda. Já não se lembrava o que havia feito com as cervejas que segurava e o violão jazia esquecido sobre o sofá, como se nunca tivesse sido tocado.   

Ele se sentia distante de tudo, incapaz de participar. Como se estivesse perdido. Os abraços de Helena e Juno. O olhar de Theo sobre si. A conversa de Louise. Nada disso parecia algo real, parecia impossível que estivesse acontecendo. Era difícil se fazer presente, tentar interagir, como se faltasse forças o suficiente para tal coisa. E apesar de tudo, não conseguia retirar os olhos da mulher que, antes extrovertida e falante, agora matinha apenas um sorriso tímido.  

Logo em seguida, Hester e Alice chegaram. E tudo pareceu desmoronar mais uma vez. Então, tudo o que veio a seguir pareceu um grande borrão, abafado e opaco, como um sonho esquisito.  

— Juno? — Hester encarou, com seriedade, a mulher à sua frente. — Não esperava encontrar você aqui.  

A frase pareceu um tanto estranha. Como se o retorno de Juno fosse surpresa apenas para ele. Mais uma vez, sentiu-se diante do vulto que encontrou na rua, questionando-se sobre o fantasma que havia, de fato, visto.  

Quando apresentadas, Alice reagiu com um sorriso amigável e poucas palavras. Em seu olhar, Nirav conseguiu encontrar a confusão da situação tão desconfortável.   

— Prazer, sou Alice. — ela estendeu a mão, sustentando um sorriso simpático.  

E quando olhou para Juno, percebeu que seus dedos tremiam ao apertar a mão de Alice. Ela tinha palavras incertas, sorrisos inseguros e olhares furtivos.  

— Juno. Muito prazer.  

E, de repente, era como estar de volta há sete anos atrás, em um bar qualquer, escutando a infinitas baboseiras de um homem mais velho, observando a garota ao seu lado desaparecer, pouco a pouco, perdendo a sua própria essência. A sensação de deslocamento começava a crescer mais e mais. No entanto, dessa vez, nada tinha a ver com ele. Não era mais ele que encarava Nicholas, sentindo a pressão de estar deslocado, perdido pela distância e injustiçado por uma traição. Era apenas sobre Juno.  

Os olhares em sua direção. Os semblantes desconfortáveis e irritadiços. O silêncio proposital. Era como se ela não estivesse ali, ou pior, como se estivessem evitando a presença dela ali. Quase parecia um fantasma, abandonado no canto da mesa, assombrando a todos com um mero vislumbre da sua existência, totalmente deslocado.  

E ela parecia se sentir assim. Reservada à sua própria existência, mantendo o olhar baixo, sobre os dedos que tremiam, ela parecia se esforçar para não ser notada. Como se estivesse no lugar errado, ocupando um espaço que não a pertencia mais. Quando seu olhar cruzou com o de Nirav, percebeu a verdade. Todo o brilho do seu olhar se transformou em um opaco sentimento de desespero. E até olhá-lo parecia difícil para ela, que fugiu do contato o mais rápido possível.  

Parecia encenar o passado mais uma vez. Sentado, diante de uma mesa com inúmeras comidas que pareciam ter perdido o gosto. Nirav já não sentia fome, a grande sensação de vazio começava a preenchê-lo por outra que não sabia explicar. Depois de sete anos, estava diante de alguém que jurava ter esquecido e superado. Estava diante de Juno.  

Do outro lado da mesa, ele a observava furtivo, com o canto dos olhos, tentando esconder a tentação que viciava sua visão. Precisava se certificar constantemente de que era ela, como se não fosse mais capaz de confiar em seus próprios sentidos. E, de fato, era Juno. Depois de tanto tempo, ela estava ali, bem à sua frente, com poucos metros de distância. E, ainda assim, parecia tão distante e tão intocável.  

Enquanto as pessoas ao redor conversavam ao mesmo tempo que se serviam, ele permanecia paralisado, sem reação, incapaz até de ouvir o que diziam. Alice estava sentada ao seu lado, conversando com Helena na cadeira ao lado. Em uma ponta, Louise. Em seu lado esquerdo, Hester, Theo e, então, Juno. Ele observava tudo como um espectador sem a possibilidade de interagir.  

— Nirav? — Alice chamou sua atenção, passando a mão por seus cabelos. — Está tudo bem? Está quieto demais.  

Ele respirou fundo, atuando um sorriso em direção a ela.  

— Estou com fome. — mentiu, alargando o sorriso, havia perdido a fome por completo. — Vocês demoraram demais.  

Por um instante, observando a mulher ao seu lado, sorrindo ao ajeitar os cabelos, recuperou-se do baque da surpresa e do transe do reencontro. Então, a mesa pareceu ganhar vida. O barulho dos talheres nos pratos, os copos batendo na mesa, o som dos comentários, tudo pareceu acolhê-lo de modo reconfortante.  

— Não sabe como estava sentindo falta da sua comida, Lou. — Theo comentou, fechando os olhos após saborear uma boa garfada do assado.  

— Quem vê pode até pensar que eu não sei cozinhar. — Hester retrucou, causando risadas ao redor da mesa.  

Foi inevitável não olhar para Juno, que apenas sorriu. E parecia não adiantar tentar ignorar a presença dela, de quando em quando, os olhares sempre se reencontravam. Ambos pareciam perdidos diante um do outro, recorrendo a fuga uma outra vez, e outra e outra.  

— Então, você não é daqui, não é? — Alice o surpreendeu ao puxar assunto com Juno, que também pareceu um tanto chocada ao ser notada.  

— Não, eu costumava vir quando mais nova, para visitar minha tia. — seu tom era baixo, talvez para esconder quão trêmula estava sua voz. — E você?  

— Na verdade, eu nasci aqui, me mudei depois para algumas outras cidades, mas não resisti e acabei voltando. — Alice explicou, após um gole do suco disposto a sua frente. — No fundo, sempre fui apaixonada pela cidade. Só demorei um pouco para perceber isso.  

Juno sorriu, anuindo com a cabeça ao concordar. Não saberia dizer se era um sorriso genuíno depois de tanto tempo sem vê-lo, apesar disso, era tão bonito quanto antes. Era tão bonito quanto quando sorria para ele.  

— Eu também me apaixonei pela cidade quando comecei a visitá-la. — ela balançou os ombros, ainda mantendo o sorriso nos lábios. — E também demorei a perceber.  

— E quanto tempo faz desde a última vez que esteve aqui? Parece que já faz um tempo, do jeito que fala.  

Juno reservou alguns instantes antes de responder, fazendo-o sentir o peso de todo o tempo que havia se passado quando a viu pela última vez. Quanto tempo se passou desde que o abandonou sem sequer dizer adeus. Sete anos, anos demais.  

— Alguns anos. — Juno respondeu, olhando para Nirav, que não desviou dessa vez. — Sete anos, especificamente.  

Nirav reparou que os outros assuntos da mesa se interromperam para prestar atenção na conversa que se desenrolava entre as duas. Embora Alice fosse alheia a tudo o que aconteceu entre eles, era visível a expectativa no olhar ansioso de cada um, inclusive no seu próprio.  

— Você veio a trabalho, dessa vez? — Helena interveio, entrando no assunto. — Acho que Louise comentou algo do tipo.  

— Bem, por enquanto é só um estágio, não tenho do que reclamar, apesar de não ser bem na minha área. São vídeos mais comerciais.  

— E vai ficar quanto tempo? — dessa vez, quem perguntou foi Hester, com um tom mais sério que o restante.  

Juno ponderou a perguntar, arqueando as sobrancelhas. Nirav percebeu que estava curioso com a resposta.  

— Depende. Podem ser três meses e prorrogar até seis. — explicou, tomando um gole do suco. — Se gostarem do serviço, então ganho a contratação.  

— Quer dizer que pode morar aqui? — Helena esboçou um sorriso esperançoso.  

Nirav abaixou o olhar, refletindo sobre o que acabou de escutar. Era mais uma surpresa que não sabia como reagir. Estava preparado para tê-la sempre tão perto, podendo tropeçar em qualquer esquina de qualquer rua a qualquer hora? E não era o que sempre quis, quando mais novo? Era o que queria agora também? Não sabia responder e, talvez, não quisesse descobrir.  

— Não era o que todos queríamos quando éramos mais novos? — Hester continuou, dessa vez, com um tom mais sarcástico. — Então, você desapareceu, de repente. E voltou, do mesmo jeito que sumiu! Quando Theo me contou, eu mal pude acreditar. Achei que ele estava fazendo uma brincadeira de mal gosto. Você de volta? Não, não podia ser.  

De imediato, ignorando todo o tom hostil do comentário, Nirav prendeu seu olhar incrédulo sobre Theo, que pareceu evitá-lo a todo custo. Ele sabia que Juno estava na cidade. Todos sabiam. Apenas ele permaneceu no escuro, privado da informação que, um dia, tanto quis receber.  

Durante todo o resto do almoço, Theo fugiu dos olhares inquisidores de Nirav, estampando em seu rosto a culpa da omissão. E não importava o quanto tentasse fugir, Nirav não o deixaria escapar. Sentiu-se como se tivesse sido traído. Não só por Theo, por todas as pessoas ao seu redor. Não era justo que todos soubessem do retorno dela quando ele precisava se contentar com vultos entre a multidão.  

A tarde já estava no ápice quando a mesa começou a ser desfeita. Um vento frio soprava na varanda, trazendo o tom escuro do céu. Theo veio em sua direção, já sentindo o peso da expressão nada agradável em seu rosto. Enquanto terminavam de arrumar a cozinha, eles permaneceram na varanda, sozinhos.  

— Olha, eu não tinha a intenção...  

Nirav o interrompeu, fazendo questão de manter a voz irritada baixa, para que não descobrissem da discussão:  

— Você sabia e não me falou nada!  

— Que uso isso teria? — ele contestou na defensiva, gesticulando com as mãos. — Perturbar você e Alice?  

Franzindo o cenho, Nirav meneou com a cabeça sem entender o que ele tentava dizer. Sentia o tom severo de uma insinuação descabida em suas palavras, só não queria acreditar que estava vindo dele, seu melhor amigo.  

— E achou que eu nunca ficaria sabendo que ela voltou? Mais cedo ou mais iria acontecer de qualquer jeito...  

— E é isso o que me preocupa! — a resposta o incomodou. Seu olhar, também, fixo sobre seu rosto, como se procurasse qualquer sinal para insinuar alguma coisa. — Se acontecer tudo outra vez...  

Um riso nasal de escárnio escapou, demonstrando o quão pasmo estava. Com os olhos arregalados, Nirav se recusava a ouvir tamanha besteira. Então era por isso que mantiveram a omissão, por uma injusta falta de confiança. Não conseguia explicar o quão traído estava se sentindo.  

— Não acredito que está falando essas besteiras para mim, Theo. — exprimiu a mágoa em sua entonação. Não queria acreditar que Theo estivesse desconfiando dele, seu melhor amigo. — Está realmente desconfiando de mim?  

— E o que me garante que não vai acontecer de novo?  

Nirav se irritou. A desconfiança foi o estopim. Já não bastava ter sigo pego de surpresa, ainda tinha o seu caráter questionado com base em algo que havia acontecido anos atrás pelo seu melhor amigo. Era incapaz de aturar algo do tipo. Não admitia ter sua moral duvidada com base em um equívoco juvenil.  

Não precisava provar nada a ninguém, mesmo se tratasse de seus amigos. O que havia acontecido tinha sido, sim, um erro, porém fazia anos. A mulher que encontrou era, sim, a mesma mulher de antes, porém também uma total estranha. O fato de necessitar reencontrá-la nada tinha a ver com a ainda provável existência de um sentimento entre eles. Só queria entender o que a tirou dele de uma forma tão abrupta. Só precisava descobrir a verdade que os manteve tanto tempo afastado. Apenas queria tapar os furos em um conto de fadas interrompido.  

— Eu não tenho que garantir nada a você! — esbravejou em tom mais alto e rude. No geral, odiava fazê-lo, só não conseguia não reagir diante da situação. — Eu devo isso a Alice, não a você!  

— E você pode fazer isso?  

Teria respondido à altura o tom desafiador dele, apesar que nada de bom pudesse sair de um confronto assim. No entanto, a discussão foi interrompida pelo o assunto em pessoa. Juno acabava de se aproximar, escorando-se na porta.  

— Elas estão servindo a sobremesa. — anunciou, dando a deixa para Theo escapar, sem deixar de dar um último olhar para Nirav.  

Respirando fundo, tentando se estabilizar, Nirav se aproximou da grade, apoiando-se no peitoril. Por um instante, fechou os olhos. Estava sendo um dia tão confuso e complicado, que já estava se sentindo exausto. Tantas coisas aconteceram ao mesmo tempo. Seu corpo parecia reclamar, assim como sua própria mente. Estava cansado de tudo aquilo, não queria mais ter que lidar com nada. Por um instante, sentiu o ímpeto de fumar. Estava evitando cair em tal tentação, apesar de ser difícil suportar na situação em que se encontrava. Por isso, ficou aliviado por ter se obrigado a deixar o maço e o isqueiro em casa. Teria de enfrentar o conflito por si só.  

Percebeu a aproximação de Juno, aparecendo ao seu lado. Como anos atrás, naquela mesma varanda. Ele a observava, estudando seu rosto, desenhando as feições que nunca esqueceu. Ficaram em silêncio, por um instante, contemplando a companhia um do outro.  

Ela estava ali, do seu lado. Estava mais velha, com o rosto mais sóbrio e presença mais contida, mas era ela. Seus cabelos ondulados, o corpo esguio, os olhos radiantes. Todos os detalhes que nunca se esqueceu permaneciam presentes nela, como se o tempo tivesse parado, sem um dia ter se passado desde o último. Percebeu que sentia vontade de chorar.  

— Sete anos. — criou coragem para começar a falar, pela primeira vez, desviando o olhar dela, fugindo da visão que tanto o tentava. — E foi bem aqui onde tudo começou a dar errado.  

— E aqui estamos nós outra vez, na pior situação possível, por minha culpa. — ela murmurou com um suspiro, a voz frágil e insegura.  

Os olhares se encontraram mais uma vez. E ele notou-se procurando o mesmo brilho de antes, que ela exibia ao olhá-lo, porém, encontrou apenas um traço de tristeza e até vergonha.  

— Eu pensei que nunca mais fosse ver você de novo. — disse, então. Juno desviou o rosto para baixo, como se fugisse do assunto. Mesmo assim, Nirav esperou por uma resposta que nunca veio. — Parece que estou vendo um fantasma.  

— Eu sou bem real. — alertou, ferida pelas suas palavras.  

 — Eu não sei nem o que dizer a você.  

Na verdade, queria perguntar tanta coisa, entender tudo o que aconteceu, descobrir o que lhe foi roubado e o porquê de ter sido roubado. Porém, sua mente sequer conseguia processar a imagem da mulher que ela havia se tornado. Só conseguia olhar para ela e sentir a respiração falhar tanto quanto o seu coração.  

— Você não precisa me dizer nada.  

— Eu sei.  

Não adiantava permanecer ali. Não chegariam à conclusão alguma sobre qualquer coisa. Estavam ambos perdidos, sem saber como reagir, parecendo dois adolescentes nervosos ao falar um com o outro. Era o peso dos anos e dos acontecimentos, Nirav conseguia sentir sobre seus próprios ombros e os dela também. Um peso tão grande que, talvez, tenha esmagado o que eram.  

Quando começou a se afastar, ela relutou. Como se alguma parte dela ainda lutasse contra o peso que os esmagava. Ele já havia visto esse tipo de resistência. Na mesma varanda, sete anos atrás. Quando ela o chamou mais uma vez, enchendo seu peito de esperanças tolas e vãs. E nada de bom veio depois daquilo.  

— Nirav. — ela o chamou baixo, da mesma forma de outrora, fazendo-o se sentir preso em um déjà vu.  

E assim, como antes, ele parou e deu mais uma chance. Olhou para ela novamente, na expectativa do que tinha a dizer. Ela abriu e fechou a boca seguidas vezes, sem ter nada para falar. Seus olhos, piscando nervosos, revelavam uma vermelhidão de um pranto engasgado.  

— Eu sei que arruinei tudo de um jeito que, talvez, não tenha conserto, mas... — ela respirou fundo, criando coragem. — Estou feliz por ver você outra vez.  

Não estava decepcionado. Na verdade, não guardava expectativas sobre o que ela tinha para dizer. Ainda assim, esperava algo a mais. Uma palavra a mais que fosse. Depois de tanto tempo longe, com tudo o que aconteceu, era difícil não esperar algo a mais.   

Portanto, só agradeceu com um aceno de cabeça antes de deixá-la sozinha. Sem olhar para trás, deixou a mulher parada na varanda, sentindo o olhar dela acompanhando-o até a porta. Encontrou com Alice logo em seguida, então curvou-se para falar com ela.  

— Podemos ir embora? — pediu, com os lábios próximo a orelha dela.  

— Já? — ela franziu o cenho, virando para prestar atenção nele. — Tem certeza? Não quer ficar mais um pouco?  

Ajeitando os próprios cabelos com a mão esquerda, ele recusou com um meneio. Um suspiro abatido fugia de seus lábios.  

— Estou cansado. E amanhã tenho muito trabalho para fazer.  

— Tudo bem, então. — Alice sorriu, compreensível, passando as mãos por seus braços.  

Ela estava se afastando para começar a se despedir, pois sabia que ele não gostava muito de inventar desculpas, quando ele tocou seus dedos. Ela voltou até o namorado, trazendo um semblante doce em seu rosto tímido. Ele sentiu-se confortado.  

— Posso passar a noite na sua casa hoje?  

— Claro que pode. — a confirmação veio acompanhada de um sorriso grande, deixando-o satisfeito.  

Embora seus amigos não tivessem ficado satisfeitos com a despedida repentina, pareceram entender uma desculpa ou outra que Alice inventou. Não era preciso dizer muito para entender, na verdade. Até para eles, tudo parecia um grande fracasso misturado em uma enorme bagunça.  

Enquanto Alice terminava de se despedir, recolhendo alguns potes com sobremesa, ele permaneceu de pé, esperando-a perto da porta. Ao lado de fora, a tarde terminava de se esticar, começando a se despedir. Algumas nuvens mais escuras se formavam, indicando uma possível chuva pela noite. Ele desejou que chovesse, olhando para o céu. Do outro lado da sala, quando retornou seu olhar, encontrou a silhueta de Juno, escorada na parede, parada, sozinha.  

Uma outra vez, seus olhares se encontraram. Não houve despedidas, um aceno qualquer que fosse, nem mesmo um sorriso. Apenas um vislumbre. O suficiente para reparar no brilho em seu olhar. Talvez a luz da lâmpada acesa ou a claridade do céu ainda diurno. Podia tentar se convencer o quanto quisesse, porém, no fundo, sabia. Era o característico brilho em seu olhar, como se estivesse brilhando só por olhá-lo.  

Quando Alice veio ao seu encontro, percebeu um certo nervosismo em si. O coração acelerado, a respiração alterada e os dedos inquietos. Depois de todos os anos e tudo o que aconteceu, um detalhe havia resistido. E continuava a ter efeito sobre ele.   

Uma última vez, antes de partir, olhou para Juno, parada do outro da sala, como se esperasse aquele olhar. E lá estava ela, a própria, sete anos mais velha, olhando para ele. Um sorriso de canto, tímido, exaltando as sardas sobre a ponte de seu nariz afinado. O brilho em seus olhos, cintilando em sua direção, destacando-se na cor de avelã. Era tudo o que precisava, talvez, para sentir como se nenhum dia tivesse passado desde o último. 


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Notas finais do capítulo

E aconteceu!

E como foi difícil, principalmente para o Nirav. Foi tão impensado, tão inesperado, que ele sequer conseguia confiar em seus próprios sentidos, a ponto de achar que era uma ilusão. E, pra variar, claro que isso abalou todas as suas estruturas. Ele não sabe o que sentir, está em um poço de conflito e confusão. E, bem, ele não é o único.



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