Blades of Chaos escrita por Madame Andrômeda


Capítulo 1
Ecos do Passado




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Existia algo inquietante em mudanças, de qualquer magnitude. Todos possuímos uma parcela de mutabilidade, isso consigo reconhecer com clareza. Contudo, posso me considerar uma pessoa rígida em graus excessivos para ser capaz de me adaptar facilmente com novos arredores.

Era fim das férias de verão e o retorno às aulas, na maioria dos colégios.

O sol raiou com timidez hoje, a translucidez de seus raios acalorados mesclou-se com as cortinas bege do quarto onde resido. Assim que minha coluna elevou meu corpo para adotar a postura ereta o bastante para me sentar na cama, uma estranheza incômoda assolou meu peito logo de imediato e me recordei de quando ouvi que a primeira emoção que sentimos ao despertarmos costuma ser aquela que iremos carregar o restante do nosso dia inteiro.

Portanto, não me resta opção, se não dar plena liberdade ao desconforto pertinente alojado em meu interior enquanto prossigo com minhas atividades rotineiras sob a máscara de que meu bem-estar não pode abalado por sentimentos de inadequação.

No decorrer da minha higiene pessoal e da elaboração do meu café da manhã pouco nutritivo, dispus minha mente a focar-se na luz do sol irradiando sua claridade através das cortinas – a iluminação resplendedora sob o tecido formavam uma combinação harmoniosa a percepções alheias, tal como se os elementos se encaixassem. E me vi almejando desesperadamente alcançar esse nível de uniformidade. Pois neste dado momento, não sinto como se pertencesse a lugar algum.

Ao concluir o consumo do meu cereal bastante açucarado, acabei lendo a mensagem enviada pela minha irmã em meu celular: “Thea, por tudo que é mais sagrado, tente a tudo custo evitar conflitos no seu primeiro dia na academia Bullworth. Acredite em mim – não será tão fácil enfrentá-los. Eu não estarei lá para protegê-la e ainda por cima tem o seu braço entorpecido. Oh céus, me mande updates de como você está em todos os momentos oportunos, por favor. Amo você demais, irmãzinha, por isso me preocupo. Logo, não dê razão às minhas preocupações paranoicas.”

Não consegui conter o sorriso que tomou conta dos meus lábios ao finalizar a leitura do texto digitado por Lilian, minha irmã mais velha que veio a se mudar de volta para nosso país de nascimento, Irlanda. Nos mudamos da Irlanda para Northways aos meus quatro anos de idade devido o trabalho do nosso pai demandar isto. Northways era a cidade vizinha a Bullworth, e como ambas ficavam em uma proximidade significativa, era inevitável que eu transitasse por Bullworth vez ou outra. Eu e Lilian crescemos juntas nesse cenário e sempre fomos inseparáveis, mesmo dentre as nossas usuais brigas de irmãs. Quando ela se casou e, junto de seu marido, conseguiu um trabalho associado com sua profissão na nossa terra natal, fiquei genuinamente contente pela felicidade que ela estava a construir dia pós dia. Entretanto, é inevitável sentir falta dela aqui ao meu lado.

Minha relação com meu pai era praticamente inexistente. Ele sempre me pareceu distante, seu único foco transparecia ser as orquestras de grande escalão que sua profissão de maestro o impulsionava a participar, tanto que sinto que ele consideraria maçante sequer interagir comigo por períodos prolongados, essa era a impressão que mais se destacava em mim de sua presença abstinente. E como nunca conheci minha mãe, minha irmã acabou recebendo o cargo como a familiar cujo possuo mais afinidade.

Meus laços mais importantes foram interrompidos ou estavam repletos de barreiras. A ausência da minha irmã e a perda que tive da praticar esgrima profissional são marcas que levarei pelo restante da vida. Além de, claro, ser acusada de assassinato aos dezessete anos alguns dias após descobrir que meu braço direito havia quebrado de maneira definitiva – isto verdadeiramente é uma marca fixa demais para uma garota já rígida.

Compartilhei algumas dessas minhas reflexões com minha irmã ao respondê-la devidamente, garantindo-a que iria telefoná-la pelo telefone da diretoria da escola assim que possível para detalhar meus dias. Como o internato não permitia celulares, precisei deixar abandonar o meu.

Recolhi os meus últimos pertences para acomodá-los em minha bolsa, o restante já havia sido transportado para meus aposentos no dormitório. Deixei um bilhete para meu pai na geladeira, informando-o que faltava leite a ser reposto, e apontei que se ele desejasse saber quanto ao meu paradeiro, bastava entrar em contato com Lilian. Ela definitivamente o deixaria atualizado. Por fim, recordei-o também para que me enviasse remédios para as minhas dores no braço, da maneira como o médico tinha ordenado para minha condição.

Bolsa marrom repousada no ombro esquerdo para o peso ser distribuído somente nessa parte do meu corpo, e meus longos cabelos arruivados também estavam jogados sobre meu ombro esquerdo. Dei uma última olhada no apartamento alugado pelo meu pai, aliviada em saber que ao menos não estava me despedindo de um lar o qual estava inteiramente afeiçoada, isso porque tornaria as mudanças que estou a passar ainda mais árduas.

Independente dos obstáculos e das consequências que minha transferência para a academia Bullworth viessem a significar a longo prazo, minha maior certeza era a incerteza, e o que me guiava era a chance de desvendar como batalhar pela minha inocência perante às acusações feitas contra mim, assim como descobrir como me defender propriamente diante de adversidades e, sobretudo, encontrar o lugar ao qual pertenço. Por fim, com este foco calibrando minhas energias, vim a partir.

~

― Sai da frente, pirralha! ― Alertou um rapaz loiro com vestes escolares brancas, desbravando com hostilidade a menção a respeito da minha baixa estatura. Após me empurrar bruscamente, ele passou correndo em direção a outro rapaz – este trajando vestes verdes com o complemento de óculos gigantescos. Ambos começaram a travar uma briga suja, com direito a puxões de cabelos e socos nas áreas baixas.

Por uma questão de força bruta, o rapaz loiro ganhou e recolheu o dinheiro do garoto de óculos, que permaneceu no chão emburrecido por alguns instantes.

Mantive minha visão focada nesse evento enquanto permanecia a caminhar somente por ser minha primeira “interação” com o local no qual passarei meus dois últimos semestres do colegial.

A hierarquia existente de Bullworth – ou as “panelinhas” de lá, de forma mais rústica de se dizer – era algo conhecido por todos que ouvissem falar sobre o colégio em questão. Tendo a fama de a pior escola de todo o país, não era de se espantar que a desordem corria solta por todo o campus. Uma divisória de classes sociais demarcava cada aluno e diversos fatores poderiam tornar um indivíduo alvo de bullying – aparentar fraqueza era a principal condição de risco para sofrer apuros em face à petulância vinda de alunos delinquentes. Jocks, Greasers, Bullies e Preppies eram as principais gangues a espalharem discórdia pelos corredores escolares.

A decisão por trás da minha transferência para este lugar da minha antiga escola veio por conta da deplorável acusação errônea de homicídio a qual venho a ser vinculada, mesmo sem provas concretas. En Garde, a escola de mais grande prestígio do país, era a referência para as todas as demais escolas com foco em atletas em ascensão – e tive que me controlar pela ironia absurda. Eu estava a ter a experiência de dois mundos completamente diferentes ao ter sido aluna de um dos melhores colégios e do pior colégio logo em sequência.

Passado somente um minuto percorrendo nos arredores da academia, estive prestes a entrar no caminho do dormitório feminino, mas vim a ser abordada pelo mesmo rapaz loiro, dessa vez acompanhado de três outros garotos, tais quais aparentavam possuir a mesma índole do loiro cheio de espinhas esculpindo-lhe a testa cujo havia me empurrou anteriormente.

― Se não quiser acabar que nem o nerd que você quase me fez perder de vista, é bom ir passando o seu dinheiro também, baixinha. Vou te dar uma brecha por você ser novata, mas se estiver na minha frente de novo, te empurrarei mais forte. ― O tom de deboche com o qual ele pronunciou sua ameaça me enfureceu profundamente.

Tentei manter a calma, dar a face ao tapa, ser a pessoa madura que resolve conflitos sem exasperá-los. Juro que me esforcei para entregar a ele o tanto que tenho de trocados para estar logo longe da presença desagradável desse sujeitinho miserável. Fraqueza deve ser evitada a ser mostrada para evitar encrencas, no entanto, ser destemida ao extremo pode render consequências exaustivas também.

Infelizmente, ter crescido em um ambiente esportivo e competitivo me tornou propensa a reagir com agressividade contra ameaças alheias. Minha aparência de “donzela” desafortunada e indefesa não faz jus ao meu espírito essencialmente combativo.

― Isso não precisa se agravar desnecessariamente. ― Anunciei pausadamente, dando a impressão de estar amedrontada e tendo de segurar o riso em meio a este gesto fingido.

Foi a última vez que fiz antes de segurar a minha bolsa e contrabalancear o peso dela contra o rosto do rapaz loiro, e em seguida forçar o cotovelo do meu braço direito para intensificar o impacto – resultando na queda daquele. Em seguida, acelerei o passo e corri freneticamente até o dormitório, fugindo dos dois garotos de associação direta ao espinhento. Devido à minha vantagem inicial, consegui com sucesso escapar dos ataques dos encrenqueiros boçais.

Ofegante, adentrei os corredores do dormitório feminino de Bullworth. Meu cabelo, antes arrumado e devidamente apresentável, agora encontrava-se desalinhado e solto sobre os meus ombros.

Aterrando-me perante meu recente paradeiro, tomei alguns segundos para recuperar meu fôlego, e nesse curto espaço de tempo, acabei sendo notada por uma garota de olhar afiado e cabelos compridos de tom castanho escuro presos enlaçados em rabo de cavalo alto com o auxílio de uma fita azul marinha, esta coloração que era a mesma coloração do restante de suas vestes de líder de torcida. Ela veio ao meu encontro, me averiguando da cabeça aos pés com uma atenção aguçada e prolongada antes de manifestar-se com um ar debochado.

― Veja só o que temos aqui. Thea Walsh, toda apressadinha. O que te trouxe aqui? Está tentando escapar de outra cena de crime? ― A líder de torcida hostilizou como se sarcasmo fosse sua segunda língua fluente, emanando intimidação a cada passo dado em minha direção.

Não me surpreendi em receber essa forma de ataque, visto que minha situação não era um segredo. Quem acompanhava o noticiário com frequência muito provavelmente já deveria saber do assassinato e da suspeita do meu envolvimento nele.

Bullworth é uma cidade pequena, apesar de tudo. Não contive esperanças de que pudesse passar despercebida. Entretanto, ouvir comentários agressivos de estranhos sem dúvidas irá me atingir bem menos após ter ouvido hostilizações muito mais significativas de pessoas que antes pude ter considerado meus amigos na minha antiga escola.

― A única coisa que eu quero tentar escapar é da sua presença desagradável. ― Confrontei-a com desdém. Adotando uma postura ríspida ao finalizar minha declaração: ― Agora se me permite, quero chegar até meu quarto.

Antes que eu pudesse me locomover para seguir meu rumo, a líder de torcida prensou o seu corpo contra o meu com o intuito de me manter onde estava. Sua proximidade abrupta beirava o excessivo, a ponto de me permitir sentir sua respiração contra meu rosto e seus olhos amendoados firmados nas minhas feições, como se tentassem me invadir de formais mais violentas à surra dada pelo valentão espinhento no nerd desafortunado. 

― Escuta bem o que irei te falar se não quiser ter que aturar a minha presença desagradável, ruivinha de farmácia. ― A voz melódica dela ecoou de maneira semelhante a de uma pessoa do meu passado a qual tento esquecer todos os dias. Sua essência intimidadora, que de alguma forma parecia sugerir que ela estava tentando compensar inseguranças internas, me fez recordar do temperamento presunçoso da minha falecida rival de esgrima, Serena Wells.

Uma certa angústia incômoda dada a essa lembrança indesejada se alastrou em meu peito, me fazendo engolir seco. Trazendo-me de volta para a realidade, a voz da líder de torcida sem respeito algum pelo meu espaço pessoal veio a permanecer a proclamar sua ameaça.

― Francamente não sei se foi você quem matou Serena Wells, mas ela era a minha esgrimista predileta e foi extraordinária de uma maneira que você nunca será, entendeu? Você pode ter mudado a cor do cabelo e mudado de escola, e Serena pode estar morta, mas nada nesse mundo pode mudar o fato de que você perdeu para ela. E você terá que viver com isso, enquanto os restantes dos fãs da Serena permanecerão em luto por tudo o que ela poderia ter alcançado.

Fixada contra a parede sob a hipnose das duras palavras da garota que insistia em me manter presa em sua posse, pude sentir meu coração acelerar perante a continuidade da fala dela.

― Agora, quanto ao presente, você está na academia Bullworth e eu sou a abelha rainha daqui. Então se deseja ter um convívio levemente agradável nesse período que passará aqui, recomendo que me trate com respeito, mesmo que eu seja totalmente terrível com você. Estamos entendidas? ― A autoproclamada “abelha rainha” ordenou de modo mais ameno no desfecho de sua constatação.

Percebi que ela passou a envolver um fio de cabelo meu entre seu dedo indicador enquanto se mantinha com o olhar intenso repousado unicamente em mim. Aproveitando essa brecha do espaço para me manifestar, elevei meu queixo para encará-la com mais altivez.

― Sei que não estive a par de enfrentar Serena. Eu perdi, não angustio por conta disso. Sofro por não ter condições de duelar com Serena novamente. Sofro pelo mundo ter sido privado do talento dela devido ao feito de algum assassino desgraçado. Sofro mais por esses fatores do que pelas acusações falsas que venho a enfrentar.  ― Expressei a minha revolta mais íntima, sem me conseguir me conter a genuinidade do meu testemunho. O pesar que carrego comigo pela morte de Serena, por mais que eu não seja a responsável, é massacrante.

Minha voz deve ter transbordado uma tristeza notável no final das contas, pois a líder de torcida esboçou um semblante mais aprazível e quase acalentador diante da minha própria fragilidade.

― Eu irei respeitá-la, senhorita abelha rainha. ― Reverenciei a dominância de status irrevogável da garota. Aclamá-la para evitar conflitos era algo que poderia aceitar. ― Pode deixar que irei reservar minha agressividade aos bullies que vieram a me perseguir uns minutos atrás. Mas saiba que você não está sozinha em sofrer com a morte da Serena. Eu me importava demais com ela, mesmo após ela ter me tornado incapacitada de duelar. Tudo o que eu peço é seu entendimento de que não quero ter problemas com ninguém aqui.

Em seguida a minha resposta, a líder de torcida segurou meu queixo apoiando-o em seu dedo indicador que antes estava em meu cabelo e com seu polegar. Ela se manteve assim – parada, me segurando pelo queixo, com seu busto firmado contra o meu e tentando me desvendar com o olhar. Tudo isso somente para romper o contato entre nós de maneira brusca e súbita. O sorriso moldando seus lábios perfeitamente delineados com um batom de aspecto refinado lhe dava uma impressão até que adorável.

― Se tudo o que me pede é isso, estarei de olho em você para ter certeza de que não irá causar nenhum problema grave nos locais onde sou mais influente. ― Ela se abaixou para recolher a minha bolsa que havia caído no chão sem que eu me tivesse me dado conta de tê-la derrubado.

A garota parecia reflexiva por um instante interrupto, tal como se estivesse com pressa para se recolher e compreender mais a fundo o que acabara de vivenciar. Após me entregar a bolsa, ela já estava se direcionando à saída do dormitório, até que, de supetão, retomou sua atenção a minha pessoa mais uma vez.

― Ah, e Thea?

― Sim?

― Como mencionei antes, sei bem que você é loira de nascença, por ter acompanhado alguns dos seus duelos antigos. E posso dizer com propriedade que preferi você ruiva, foi uma boa mudança de visual. Combinou com você.


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