Abaffiato escrita por LC_Pena


Capítulo 1
Capítulo 1




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A resposta estava sempre na ponta da língua, mas quase nunca a pergunta era feita...

O que aconteceu com você?

Neville sempre dava o mesmo sorriso cansado para todos os seus amigos, conhecidos e até mesmo para seus colegas de classe no curso de Herbologia avançada do Ministério, que embora não o conhecessem de antes, achavam que sabiam tudo o que havia acontecido depois.

A guerra mudou a todos nós, não?

Neville Longbotton nem de longe parecia-se com o garoto inseguro e tímido que andara pelos corredores de Hogwarts, havia assumido uma aura escura, de quem havia visto muito e vivido ainda mais.

Sim, coisa terrível a guerra.

O fato de que nunca falara sobre a noite da batalha final, mesmo quando os jornalistas e seus camaradas insistiram em saber detalhes da sua vitória sobre a temida serpente do lorde das Trevas, só fez o mistério ao redor do homem crescer ainda mais.

O grifinório não falava muito, mas agora possuía certa confiança quando tinha algo a dizer. Ganhara fama de herói, mas levava uma vida discreta na pequena vila de Hogsmeade, diziam até que ele tinha planos de ensinar na escola de magia e bruxaria escocesa um dia...

Mas aquilo podia ser só mais um dos muitos boatos espalhados no pós-guerra, a verdade é que ninguém sabia ao certo o que Longbotton fazia de sua vida, o que queria e, acima de tudo, quem ele era agora.

O bruxo de quase 20 anos de idade aparatou em uma viela deserta da pequena vila de Hogsmeade, completamente decorada para o Natal. Espanou as vestes escuras, caminhando rápido em direção a casa mais afastada das cercanias.

Havia negociado com McGonagall que aceitaria o cargo de professor de Herbologia assim que se formasse, se, e somente se, pudesse viver fora da escola, em Hogsmeade, em específico naquela propriedade que, quase ninguém sabia, pertencia à Hogwarts.

Minerva não entendeu o porquê dele querer viver na infame Casa dos gritos, mas havia pouco o que ela entendesse sobre ele esses tempos. Ele havia mudado tanto... Talvez mais do que nenhum outro.

Neville desativou o feitiço de proteção ao redor da casa e nem sequer olhou ao redor para ver se alguém o havia seguido. Ninguém o seguia nesses dias sombrios, principalmente com o princípio do que provavelmente se tornaria uma tempestade de neve terrível noite adentro.

A Casa dos gritos ainda mantinha sua fachada escura e mal cuidada propositalmente, mas o interior contava uma história diferente: havia calor, embora ainda continuasse com pouca luz e as aranhas e poeira, que haviam feito do lugar sua morada por tantos anos, há muito já haviam desaparecido.

Retirou o sobretudo, espanou novamente os flocos de neve de cima, antes que passassem até mesmo pelo seu bem aplicado feitiço de impermeabilização, então o guardou no armário de casacos perto da porta.

O aroma de algo doce, mas exótico ao olfato britânico, o envolveu assim que entrou na pequena cozinha da casa: uma mulher pequena o recepcionou com um abraço esmagador. Neville sorriu, porque o cabelo de Gini hoje cheirava a canela e gengibre, como se todas as especiarias tivessem escolhido o corpo dela como abrigo, mas se revezassem na hora de assaltar seus sentidos.

— Como foi o seu dia, flor? — O homem perguntou enquanto retribuia o abraço com menos força. Gini sorriu, seus olhos dourados, com as pupilas em forma de risco, brilhando com o uso do apelido carinhoso.

— Passei a tarde toda tentando fazer ao menos um dos pratos do livro que você me trouxe ontem, mas nenhum deles cheira certo. — Ela respondeu em dúvida, franzindo o cenho e deixando os cantos dos olhos ainda mais puxados. — Tem certeza de que essas são receitas da Indonésia?

— A única certeza que tenho é o que diz na capa do livro. Por que? Você não reconhece os  nomes? As especiarias não são as certas? — Neville questionou, enquanto pegava o livro em questão de cima da mesa. Virou um par de páginas, conferiu o título e subtítulo, vendo as pequenas manchas dos dedos dela em algumas partes.

Gini não era a criatura mais organizada do mundo...

— Bem, faz muito tempo desde a última vez que eu cheirei ou comi a comida de meu país na forma humana, talvez seja isso. — A mulher mencionou sua situação peculiar na conversa como se não fosse nada demais, deixando Neville subitamente nervoso.

Ele olhou para os lados inconscientemente, como se ainda estivessem naquelas primeiras semanas do pós-batalha: cientes do erro que era tudo aquilo e com a constante sensação de que seriam pegos a qualquer momento.

— Gini, você sabe que não deve mencionar o seu... A sua... — Ele parou sua tentativa falha de explicar o problema, então respirou fundo antes de falar de outra forma, trazendo uma informação que escutara nos corredores do Ministério esta manhã. — Ouvi boatos de que os dementadores voltaram à Azkaban e eles estão mais do que ansiosos para mostrar serviço por conta da rebelião de alguns anos. Você faz alguma ideia do que eles fariam com você, se descobrissem quem você é?

O que eu sou, você quer dizer, não? — A mulher sorriu sem mostrar os dentes, se sentando em uma das cadeiras descombinadas da cozinha. Suspirou cansada. — Estou muito mais preocupada com o que eles fariam com você, se descobrissem que esteve abrigando por anos a fiel serpente do Lorde das Trevas.

Ok, então haviam voltado a isso. Certo... Neville também puxou uma cadeira para si e se sentou, tentando formular uma linha de argumentação onde Gini não mergulhasse em todas as suas dores e pecados do passado, ao mesmo tempo em que mantinha o realismo da precariedade da situação de ambos.

— Você não é uma serpente, estava amaldiçoada, presa a ele, ninguém pode usar isso contra você em um tribunal. — O rapaz começou a falar, fazendo Nagini ampliar seu sorriso, agora com um toque de afeto por conta da ingenuidade dele. — Há precedentes para o seu caso, pessoas sob efeito de uma maldição tem seus crimes atenuados e até mesmo perdoados, então se nós...

— Eu sabia o que estava fazendo, Neville, cheguei até mesmo a gostar de seguir os passos do lorde. — Nagini deixou de sorrir, seus olhos inumanos o encararam com um brilho sombrio. — Você sempre soube que eu era das Trevas. Desde aquele primeiro dia em Hogwarts, quando deveria ter tirado a minha vida, mas resolveu poupá-la. Você sempre soube que eu era amaldiçoada, mesmo quando não sabia da minha condição.

— Eu quebrei a maldição...

— Mas não apagou a minha existência maldita. Todos os crimes, todo o sofrimento que eu causei a minha vida inteira... — Nagini agora havia se levantado, apenas para se sentar no colo de seu parceiro, para olhá-lo de frente, olhos nos olhos. Neville tinha olhos tão lindos...

— Matei um homem nesta casa. — A mulher continuou a falar, sentindo o coração dele se acelerar sob sua palma, os olhos azuis muito escuros sob aquela luz fraca. — Abri a garganta dele no andar de cima, inoculei meu veneno em suas veias e me regogizei com a tarefa bem feita. O mestre ficou tão orgulhoso...

— Você não tinha outra opção, Gini, era a única vida que conhecia! Você achou que estava presa naquele corpo para sempre, que tinha que ser daquele jeito para sempre! — Neville argumentou de olhos fechados, pois Nagini agora traçava com os dedos frios a linha de seu maxilar, sua garganta, então retornava todo o caminho, como se estivesse apreciando uma presa particurlamente suculenta. — Você não tinha escolha.

— Não tinha escolha, porque trevas podem apenas escolher as Trevas. Eu não me arrependo do que fiz e prometi a mim mesma que jamais me ressentirei com o meu destino novamente, porque perdi muito tempo chorando por coisas que não podem ser mudadas. — Nagini repetiu, agora em voz alta, o discurso que virou seu mantra pessoal, a única coisa que às vezes atravessava a névoa de sua mente animalesca, fruto de sua maldição. — Mas então você apareceu e...

O final havia sido dito num sussurro, quase que para si mesma. Era uma nova percepção que sua mente, cada vez mais humana, estava criando, minando verdades tão bem construídas, verdades que a mantiveram viva por décadas.

— Eu te salvei. — Neville falou abrindo os olhos, agarrando um dos pulsos da mulher pensativa sentada em seu colo. Virou a palma da mão dela para si, depositando um beijo no local sob o olhar dourado dela. — Não me importa o que foi feito de você ou o que você fez antes de mim, porque eu te libertei da sua maldição. Pronto, está feito, você é livre!

— É uma questão de ponto de vista. — Nagini deslizou sua mão pelo rosto do homem, antes de beijá-lo rapidamente, sua língua levemente bifurcada apenas ensaiando uma carícia mais profunda. — Os carrascos diriam que eu te condenei a uma vida amaldiçoada ao meu lado, os dementadores se divertiriam tentando achar uma alma em meu corpo para tomarem, porque... Como ousei? Como ousei macular algo tão...

— Os dementadores teriam que me matar antes. — Neville encerrou a discussão, a que sempre voltavam, com um beijo, dessa vez com tudo que tinham direito: lábios, línguas, dentes... Sua Gini mordia forte e adorava deixava marcas.

A verdade é que nunca conseguiam sair desse ciclo vicioso, não importava quem começasse a discussão. O medo de serem pegos, de não conseguirem explicar como haviam chegado àquele ponto, o pavor de serem separados para sempre... Não importava como discutiam o problema, a morte sempre surgia como a opção mais viável e definitiva.

Então acabavam no sofá da pequena sala de estar, aquele com o estofamento arranhando, que sempre testemunhava os arranhões nas costas, nos braços, na garganta... Era o único móvel que não conseguiram trocar na renovação de seu lar, pois ali fora o começo, era o meio e sempre seria a única testemunha do fim.

Nagini havia se aninhado naquele lugar no pós-batalha, deixara Neville cuidar de seus ferimentos, então, quando se sentiu pronta, deixou ele ouvir as piores partes de sua história e mais tarde, deixou ele ver através de sua alma.

Não, nenhum dos dois poderia se desfazer do sofá velho, talvez apenas mudá-lo de lugar, caso um dia alguém quisesse visitá-los, quem sabe? Afinal, McGonagall havia concordado em deixar Neville morar naquela casa sombria, mas que pelo amor de Merlin, ele acabasse com a fama de mal assombrado do lugar com algumas risadas!

Às vezes o bruxo lembrava da promessa e conseguia aplicar um abaffiato nas paredes, enquanto as risadas não chegavam, embora não se sentisse responsável pelo que mais os vizinhos podiam ouvir ao passear por um lugar tão isolado.

Mas em uma noite de tempestade como aquela, nem mesmo a criatura com a audição mais aguçada poderia recriminar os dois amantes. Neville e Nagini viviam uma vida escondida, abafada por feitiços, silenciada pelo medo.

Que ao menos por uma noite pudessem alinhar a tempestade do lado de fora, com a tempestade que sempre reinava do lado de dentro.


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