A Criada Francesa escrita por Claen


Capítulo 14
Uma coincidência providencial




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/792843/chapter/14

Nós mal havíamos colocado os pés dentro de casa quando Holmes resolveu sair novamente. Ele disse que era imperativo colocar Gilbert Renard a par da situação e contar-lhe o que havíamos descoberto durante a visita à mansão Hyde, contudo, achei melhor não o acompanhar naquele momento.

Eu ainda estava me acostumando com a ideia de que não havia nada que pudéssemos fazer para trazer Juliette de volta para o irmão, e não estava em condições de dar uma notícia tão ruim ao rapaz naquele momento, embora para Holmes, isso parecesse não ser nada demais.

Ao invés de ser o portador de más notícias, preferi ir atrás de possíveis boas notícias. Então, assim que Holmes saiu, eu fiz o mesmo, e parti rumo ao Hospital St. Thomas em busca de informações a respeito do quadro de saúde de Lestrade. Era quase certo que haveria atualizações, afinal, já fazia mais de 24 horas que ele estava recebendo a nova medicação para cortar o efeito do veneno, que aqueles dois salafrários provavelmente haviam colocado numa inocente xícara de chá, da qual o inspetor devia ter se servido de bom grado.

O hospital não ficava longe e por isso resolvi ir caminhando. Naquele momento, aquela me pareceu ser a melhor opção, pois minha cabeça fervilhava de tristeza e indignação, e a caminhada me ajudaria a espairecer um pouco. No entanto, minha mente atribulada acabou me pregando uma peça e fez com que eu me distraísse de meu objetivo. Sem me dar conta do que acontecia, meus pés, que pareciam ter vida própria, seguiram sem direção pelas ruas de Londres e me levaram por um caminho diferente do desejado. Minha jornada rumo ao St. Thomas foi inconscientemente desviada e acabei indo parar em outro lugar, porém, um lugar estranhamente interessante.

Quando voltei a realidade tentei me localizar e não tinha certeza de onde estava. Apesar morar em Londres por boa parte da minha vida, ainda havia recantos que me eram desconhecidos. Olhei ao redor, ainda deslocado, mas bastante intrigado, porque aquele desvio não planejado tinha acabado de se mostrar verdadeiramente providencial e me levado a vislumbrar algo realmente incomum: uma fila enorme de pessoas elegantemente vestidas.

Curioso, olhei para onde dava aquela fila e qual não foi meu espanto ao ver que eu estava em frente a um hospital. Não o St. Thomas, mas sim o Bethlem Royal, também conhecido como Bedlam. Aquele era o hospital psiquiátrico que Holmes pretendia visitar à procura do velhinho da cadeira de rodas.

Como ele insistia que aquilo tinha a ver com o caso da criada francesa (embora eu duvidasse cada vez mais, principalmente depois do relato dos Hydes), resolvi me informar a respeito do que estava causando aquela fila tão grande de pessoas, aparentemente da alta sociedade, naquele lugar tão incomum.

Também achei estranho o fato de que grande parte dos pedestres não prestava atenção àquilo, o que indicava que aquela estranha aglomeração já devia ser algo corriqueiro para eles, mas olhando mais atentamente, reparei que dois homens olhavam para a fila enquanto conversavam. Eles pareciam estar falando sobre o que viam e não estavam nada contentes. Bastante interessado no que diziam, me aproximei discretamente.

— Esses ricaços nãos sabem mesmo mais onde enfiar o dinheiro deles, não é? Agora estão achando que hospital é circo! – disse um deles bastante indignado com a cena, e me deixando ainda mais curioso.

— Com tanta gente precisando de ajuda, eles preferem gastar para se divertir vendo a desgraça dos outros. – concordou o outro homem, também bastante indignado.

Sem entender nada do que eles falavam, decidi me intrometer de uma vez e puxar conversa.

— Boa tarde, cavalheiros. – disse eu aos dois homens que se vestiam de maneira bem humilde, provavelmente trabalhadores de algum lugar próximo. – Os senhores por acaso saberiam me dizer o motivo de toda essa fila?

Eles me olharam de cima abaixo e somente depois de se certificarem de que eu não era uma daquelas pessoas ricas da fila é que me responderam.

— Então quer dizer que nem toda Londres sabe das barbaridades cometidas nesse lugar? – constatou um deles, surpreso com minha ignorância.

— Bem, eu sei que a fama deles não é das melhores, mas não entendo o porquê dessa fila de visitantes. Agora só estão internando parentes de ricos, por acaso? – perguntei, fazendo com que eles dessem risada.

— E por acaso algum rico se daria ao trabalho de visitar seus parentes num lugar desses? Garanto que quando eles têm um doido na família preferem esquecer que ele existe e fazer questão de interná-lo o mais longe possível, só para não ter que ver a cara dele nunca mais. – disse o outro homem, e eu fui obrigado a reconhecer que ele tinha certa razão.

— Não é isso não, moço. – disse o primeiro homem. – É que os mercenários que mandam no hospital agora estão vendendo ingresso para quem quiser ver os malucos fazendo maluquices.

— Para mim, os verdadeiros doentes são esses ricos que pagam para entrar e se divertir às custas dos internos. – indignou-se o outro homem. – Eles pagam para rir daqueles que nem entendem o que está acontecendo.

Eu achei que estivesse entendendo errado o que os dois homens diziam e precisei confirmar, tamanho era o absurdo que eu havia acabado de escutar.

— Os senhores estão me dizendo que o hospital está vendendo ingressos para quem quiser ver os pacientes? Como num zoológico? – perguntei incrédulo.

— Exatamente isso, senhor. Um zoológico humano aberto para quem puder pagar.

Aquilo era algo muito chocante e eu mais uma vez me deparava com a ganância e a estupidez sem limites do ser humano, capaz de qualquer coisa para lucrar. No entanto, apesar do choque e da repulsa que eu estava sentindo naquele momento, havia algo de positivo naquilo tudo, pois se Holmes quisesse mesmo reencontrar o velhinho, não precisaria de nenhum plano mirabolante, nem se aproveitar de minhas credenciais médicas, bastava pagar o ingresso e entrar, por mais bizarro que pudesse parecer.

Após a breve conversa com os dois homens e a descoberta casual desse fato curioso, dei meia volta, um pouco mais animado, e retomei a rota para o St. Thomas, para finalmente fazer o que eu já deveria ter feito. Quando cheguei lá, já não havia uma multidão de policiais como da primeira vez. Havia apenas um deles montando guarda em frente ao quarto, porque a Scotland Yard tinha começado a acreditar na versão de Holmes de tentativa de assassinato. Embora a possibilidade de que o assassino pudesse aparecer fosse quase nula, não custava nada prevenir.

Não entrei no quarto, apenas observei pela pequena janela de vidro na porta. Pude ver que Lestrade não havia sido intubado, o que era uma boa notícia, sinal de que já estava respirando melhor. Enquanto conversava com o policial que fazia guarda, o Dr. Clarke apareceu para ver seu paciente e aproveitei para me inteirar das novidades.

— Boa tarde, Dr. Clarke. Como está o inspetor? – perguntei, ávido por boas notícias.

— Boa tarde, Dr. Watson. Infelizmente o paciente segue em coma, mas houve uma melhora bastante significativa em sua respiração, e a pulsação também se estabilizou. Os resultados dos exames que eu pedi depois da visita do Sr. Holmes provaram que ele tinha razão, e que o inspetor foi mesmo envenenado com uma dose concentrada de beladona. Podemos dizer que ele está vivo graças à intervenção do Sr. Holmes. Se tivéssemos continuado seguindo nossa linha de raciocínio inicial, só descobriríamos que tinha sido um caso de envenenamento quando já fosse tarde demais para administrarmos o antídoto.

De acordo com o Dr. Clarke, o quadro de Lestrade ainda era preocupante, pois não havia como saber quando, ou se, ele sairia do coma, mas ver que seu corpo se recuperava de alguma forma já era uma boa notícia. Com o coração um pouco mais leve retornei à Baker Street, mas Holmes ainda não havia voltado para casa, então, enquanto esperava por seu retorno, aproveitei para dar notícias de Lestrade à Sra. Hudson, o que a deixou um pouco mais animada. Já havia passado das nove da noite quando meu colega finalmente voltou, mais quieto do que quando havia saído.

— Como o Sr. Renard reagiu? – perguntei, preocupado em saber como estava o pobre homem.

— Apesar de jovem, o monsieur Renard já passou por muita coisa na vida e creio que isso fez com que ele amadurecesse cedo. Essa era uma notícia que ele, de certa forma, já esperava, mas nem por isso o choque da confirmação foi menos duro ou menos doloroso. Ele sabia que sua irmã só desapareceria dessa forma se estivesse morta, pois jamais abandonaria a família por qualquer que fosse o motivo. O mais difícil foi convencê-lo a não ir até a Mansão Hyde e acabar com a vida deles, mas depois de uma boa conversa, acho que consegui acalmá-lo e disse que em breve faríamos justiça a mademoiselle Renard em grande estilo.

— Imaginei que a conversa não tinha sido fácil, já que você demorou tanto para voltar. Mas eu estava ansioso para contar o que descobri hoje à tarde.

— Você foi atrás de notícias de Lestrade, não foi? Descobriu alguma coisa? – perguntou ele, enquanto ajeitava o fumo em seu cachimbo, já sentado na poltrona.

— Sim, mas não foi só isso o que descobri hoje à tarde. – respondi, animado.

— Então fale de uma vez, homem. – ordenou ele, já impaciente.

— Bem, o estado do inspetor, embora ainda difícil, é estável. A sua suposição a respeito do envenenamento estava correta e graças a isso, Lestrade está vivo. Ele continua em coma, mas seu corpo apresenta uma evolução satisfatória. Infelizmente não há como sabermos quando ou se Lestrade acordará. Também não sabemos a extensão exata do estrago causado pelo veneno e se isso poderá acarretar algum tipo de sequela, mas apesar de tudo, eu estou bastante otimista quanto a sua recuperação.

— Se o senhor pensa assim, doutor, acho que não devemos nos preocupar com ele por enquanto. Apesar de um início desastroso, Lestrade parece estar bem assistido. Mas diga-me, qual foi a outra descoberta do dia?

— Ah sim, essa foi a mais interessante! – disse eu, já sabendo que ele se animaria com a nova informação. – Enquanto eu andava por aí, acabei descobrindo, sem querer, que vai ser mais fácil entrar no Bethlem Royal Hospital do que imaginávamos.

— Como assim? – indagou ele sem entender, mas já bastante interessado.

— Bem, como nós já estávamos cientes, aquele hospital é conhecido por seus métodos questionáveis de tratamento de seus pacientes, mas hoje eu descobri que o lugar é ainda pior do que imaginávamos. – respondi. – Pode até parecer uma brincadeira de muito mal gosto, mas eles agora estão vendendo ingressos para qualquer um que queira “visitar” os internos. Sendo assim, só precisamos pagar pela entrada e aí poderemos andar pelo lugar livremente.

— Meu caro, Watson, confesso que estou surpreso com essa informação. Eu nunca espero grandes coisas do ser humano, mas não imaginei que tivéssemos chegado tão baixo. E o pior é que, sem nem mesmo ver, eu tenho certeza absoluta de que havia uma fila enorme de visitantes, não é mesmo? E todos eram ricos.

— Exatamente. Como você sabia disso?

— Isso é bastante elementar. – respondeu ele, após um breve suspiro de decepção por eu não ter chegado à mesma conclusão. – O que entreteria mais a elite vazia de Londres do que poder apreciar um bom espetáculo estrelado por completos lunáticos? Observar a miséria de seus semelhantes certamente os deixa em êxtase. Ver aqueles pobres infelizes sofrendo enfiados em celas imundas e fétidas, completamente absortos em suas loucuras, não somente serve para inflar ainda mais seus egos, mas também para provar como eles são seres superiores e afortunados.

Era triste admitir, mas Holmes tinha razão e isso era algo curioso. Embora todos nós o víssemos como um miserável sem coração, a cada dia que passava, minha concepção sobre ele se modificava. Eu começava a achar que estávamos enganados e que talvez fosse exatamente o contrário. Talvez fosse justamente essa sua capacidade de entender as pessoas com muito mais clareza do que a maioria de nós, e ver quase que instantaneamente suas facetas mais sombrias e cruéis, o que fazia com que ele preferisse se manter longe da interação com os demais. Era muito mais fácil se manter dentro de seu mundo frio de lógica, do que do mundo ilógico e irracional dos seres humanos.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Nota da autora: O Bethlem Royal Hospital of London, também conhecido como Bedlam, realmente existe e é considerado o hospital psiquiátrico mais antigo do mundo em funcionamento. O hospital ficou famoso pela forma brutal como tratava os doentes mentais. No século XVIII, as pessoas costumavam ir até lá e pagar para ver os "lunáticos". Os visitantes eram conduzidos por guias e podiam ver os internos que eram colocados em jaulas. A eles também era permitido cutucar os hospitalizados com varas longas, como se fossem animais, e olhar dentro das celas para rir dos "espetáculos", geralmente de natureza sexual ou lutas violentas. ☹



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "A Criada Francesa" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.