Audeline escrita por Jardim Selvagem


Capítulo 20
Capítulo 18


Notas iniciais do capítulo

Música: Only For You - Heartless Bastards



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Cinquenta e três minutos e vinte e quatro segundos para o início. Bella não contou nada a Angela, é claro. Deixou apenas um bilhete em cima da bancada da cozinha avisando que voltaria tarde para casa. Não precisava envolver ninguém em seus projetos. As consequências deveriam ser enfrentadas apenas por ela mesma, como H. dissera.

Olhou o relógio mais uma vez. Se quisesse chegar a tempo e pegar a cadeira na posição mais visível da frisa que dividiria com desconhecidos, precisava sair naquele instante. Era hora de dar início à próxima etapa de seu projeto.

Acabou chegando em cima da hora. Menos de vinte minutos para a abertura do show. Bella entrou e subiu os degraus até a frisa lateral, pediu licença para uma adolescente acompanhada da mãe, e conseguiu por pouco o lugar que pretendia desde o começo. O assento era confortável, e sobre ele vinha diretamente uma das luzes do palco, exatamente como ela havia estudado antes. 

Seria impossível ele não avistá-la dali.

Depois de mais alguns minutos de espera, a escuridão invadiu o local, e os murmúrios comedidos da plateia transformaram-se em gritos e aplausos. De súbito, luzes vermelhas passaram a iluminar o palco em um ritmo pulsante, ganhando vida frente aos olhos do público como um coração bombeando sangue. Bella tinha estudado as apresentações anteriores, ela sabia o que aquilo significava. As luzes anunciavam que em menos de um minuto eles subiriam pelo canto direito do palco.

Em meio a uma gritaria ensurdecedora, eles finalmente surgiram. Emmett — ela agora reconhecia cada um dos membros da banda — tomou seu lugar na bateria nos fundos do palco; Seth foi para o outro lado, pegando seu baixo; Jasper com sua guitarra no lado oposto; e no centro, segurando o microfone e sua guitarra vermelha, encontrava-se Edward.

Ao contrário da formalidade do primeiro show que ela vira, eles hoje estavam mais casuais, todos com camisetas de banda e calças jeans, à exceção de Edward, que vestia uma camisa azul simples, mas bem cortada e passada — novamente com os três primeiros botões abertos, deixando à mostra um vislumbre de pele. Pele. A noite no apartamento dele em Phoenix surgiu em sua mente como um golpe abrupto, mas certeiro. Ela ainda não conseguia lembrar tudo que acontecera naquele dia, por mais que tentasse. Aquilo era uma desvantagem perigosa, um trunfo que Edward tinha sobre Bella e ela nem sequer sabia qual. Se ela tivesse dormido com ele, droga, se ela tivesse simplesmente o beijado, isso já colocaria todo o seu plano em risco. 

Enquanto Jasper, Seth e Emmett acenavam para a plateia, Edward agradecia a presença de todos e desejava uma boa noite. Eles então começaram o show com uma das músicas favoritas de Bella (em seus estudos, ela ouviu todo o álbum da Maze), e ela deixou de lado os problemas que rodeavam sua cabeça para se perder no momento. O tempo de repente parecia suspenso, como se estar ali fosse a única coisa que importasse, a única coisa que existisse. Como se a vida real, cheia de obstáculos e frustrações e batalhas diárias, fosse apenas um sonho ruim e o universo se resumisse naquele show. Felicidade instantânea compartilhada com a alma de milhares de pessoas. Estranhos conectados pela música. 

Num dos intervalos entre uma música e outra, Edward saiu do centro do palco para conversar sobre sabe-se-lá-o-quê com Emmett e trocar mais algumas palavras com Seth e Jasper. A plateia continuava a gritar de qualquer forma.

Depois Edward foi para a lateral do palco, onde havia um piano. Ele se sentou no banquinho de veludo e ajustou a altura do microfone. Olhou para a plateia e sorriu. 

— Esta vocês com certeza conhecem… 

E ele começou a entoar lentamente, um tom abaixo, os famosos “La La La” de “Can’t Get You Out Of My Head”, de Kylie Minogue. O público o acompanhou empolgado poucos segundos depois.

Edward então levantou a cabeça e prendeu os olhos nela, uma ação instantânea, automática, como se soubesse o tempo todo onde ela estava. Ele virou o corpo sutilmente em sua direção enquanto cantava os versos da música em um arranjo mais lento e sedutor do que o original. 

Bella viu-se incapaz de desviar os olhos e quebrar o que quer que ele estava fazendo com ela. 

Edward não parecia ter pressa em terminar a música, os lábios movendo-se quase como se ele estivesse beijando o microfone, os olhos ainda cravados nela, afastando os fios de cabelo angelicais que tentavam cobrir seu rosto. A expressão dele era séria, compenetrada, determinada, como se ele não estivesse no palco e ela não estivesse na frisa, mas sim os dois na casa dele. 

Sozinhos.

Em uma conversa particular.

Por alguns minutos, Bella esqueceu que deveria estar atuando.

 

 

Bella esperou com os outros fãs pacientemente no lado de trás da casa de shows. A produção já havia colocado barreiras de isolamento para impedir o contato direto com os músicos. Alguns fãs tentavam, sem sucesso, burlar as grades. Outros compartilhavam seus planos de segui-los para descobrirem onde estavam hospedados. Se está desse jeito agora, imagine como será quando eles aparecerem

E Bella estava certa: assim que os quatro surgiram, o caos instalou-se. Gritos, lágrimas, flashes, pôsteres, tudo ao mesmo tempo, sobrecarregando seus sentidos. Por um segundo ela considerou desistir e sair dali o mais rápido possível, mas, em vez disso, respirou fundo e lembrou a si mesma do plano.

Passaram primeiro Seth e Jasper, que não pareceram reconhecê-la, dando sorrisos tímidos a todos os fãs enquanto se dirigiam à minivan que os aguardava. Emmett chegou em seguida e mandou um “e aí?” para ela, sorrindo como se os dois fossem velhos amigos — o que rendeu a Bella alguns olhares curiosos.

Por último, veio até ela Edward. Ele conversou com os fãs, abraçou-os, recebeu presentes e tirou selfies. Os fãs o encaravam como se ele fosse a oitava maravilha do mundo enquanto ele dava autógrafos. Edward estava assinando o pôster de uma fã ao lado de Bella quando perguntou: 

— O que achou do nosso cover? 

Bella leu a ansiedade que ele tentava acobertar no rosto, forçando uma postura relaxada, mas seus olhos a analisavam com atenção. 

— Diferente. — Ela não iria elogiá-lo e inflar seu ego assim tão rápido. — Foi dedicado a alguém em especial? 

Edward sorriu torto. 

— Talvez. 

Os fãs agora olhavam para ela com um misto de desconfiança, incredulidade e inveja. Edward logo se dirigiu ao próximo fã, e a interação entre os dois terminou tão abruptamente quanto começou. 

Ele, ao contrário de Emmett, Jasper e Seth, entrou num outro carro. A minivan partiu, e a massa de fãs dissipou-se. Um homem então aproximou-se dela — um dos seguranças da Maze, reconheceu — e depositou em suas mãos um papelzinho branco com o endereço de um bar na zona sul da cidade. 

 

 

O lugar estava exatamente como Bella esperava encontrá-lo numa noite de sábado. Lotado. Aquela rua era um dos centros da vida noturna de Forks. Um local não só para encontrar amigos e beber, mas para ver e ser visto. Ela saiu do táxi e olhou em volta, respirando a noite e suas promessas voláteis como se fossem oxigênio, enchendo seus pulmões de expectativas e possibilidades. Carros de janelas escuras deixavam passageiros nas calçadas ou no meio da rua, grupos de mulheres e de homens discutiam sobre onde iriam jantar, multidões infinitas preenchiam todo o espaço disponível ao redor dos estabelecimentos. 

Bella começou a caminhar por entre todas aquelas pessoas, procurando o local com o número dado no endereço. Parou num bar de fachada escura, o nome pequeno e discreto no canto: Mircea Bar & Lounge. Ao contrário dos outros bares, aquele tinha suas calçadas praticamente vazias. 

Assim que entrou, sentiu o impulso de ir embora. Não que houvesse algo de errado com aquele bar, ao menos não à primeira vista, mas seu interior era… arrumado demais. Impecável demais. Não havia uma única coisa fora do lugar. As luzes estavam perfeitamente ajustadas para criar um ambiente acolhedor e ainda assim misterioso, os móveis tinham o perfeito equilíbrio entre moderno e clássico, a decoração era ao mesmo tempo elegante e rústica. As paredes a cercavam como se quisessem tocá-la, acariciar sua pele, mas para Bella essas intenções eram traiçoeiras. Por trás do ronronar poderiam existir garras.

Procurou Edward por entre as bancadas, os sofás, as mesas, mas só encontrou os olhares cuidadosamente apáticos dos funcionários e dos poucos clientes. Ninguém pareceu se importar com sua presença, mas Bella teve a sensação perturbadora de que alguém a observava. Alguém perigoso. 

— Desta vez a atrasada é você. — As palavras vieram como um sussurro contra seu pescoço. 

Ela tensionou os ombros, estremecendo com o contato súbito. Virou-se na direção da voz. Encontrou Edward com um drink entre os dedos. Dedos longos e pálidos. Por que isso me parece fami— 

— Há quanto tempo você está aqui? — ela perguntou. 

— Uns vinte minutos, eu acho. — Ele sorriu. — Por um instante pensei que você não viesse. O que talvez fosse mais sensato, mas você… 

— Eu já fui parar no apartamento de um completo estranho na madrugada, Edward. Me encontrar com ele num local público é uma decisão até sensata, considerando meu histórico pessoal.

— Seu histórico é mesmo inacreditável… — As palavras dele tinham um tom zombeteiro de quem desfrutava a própria piada particular.

Edward a guiou até uma mesa pequena nos fundos, uma das mãos gentilmente apoiando-se em sua cintura. Ele puxou a cadeira para ela — como Bella sabia que faria — e sentou-se à sua frente. 

— Os outros meninos foram para casa ou…

— Ah, não, hoje são os anos 90, e o Jasper passou semanas montando a playlist. Eles não cancelariam isso por nada. 

— Que pena eu não poder ir dessa vez. Aposto que a festa vai ser bem divertida. 

— Acredite, você se livrou de uma bela armadilha. Emmett tinha pedido para Jasper colocar no set “When a Man Loves a Woman” do Michael Bolton e pretendia…

— Nos deixar convenientemente sozinhos enquanto a música tocava? 

— Exato.

Os dois riram.

— Tudo bem, acho que estou melhor aqui com você.

— Você acha?

— Bom, aqui não tem como dançar Vogue, senhor Cullen — Bella disse com um ar sério, ganhando um sorriso de Edward.

— Justo, mademoiselle Blanc. Mas este bar apresenta outras vantagens… 

— Como…?

— Como o fato de estar quase vazio.

Pausa. A sensação estranha de que aquele lugar era traiçoeiro a inundou novamente. 

— Você considera isso vantajoso?

— Gosto de privacidade. Você não?

Bella lembrou-se automaticamente das pesquisas incansáveis e frustradas sobre ele. A ausência de detalhes sobre sua vida pessoal. A recusa em utilizar as redes sociais. Falar com Edward era cortejar a escuridão. Ela não conseguia enxergar as direções corretas. Como agradar algo desconhecido? Ela precisava do relatório de H. o mais rápido possível. Não podia se dar ao luxo de pisar em falso. 

— Em determinados momentos.

— Como…? — Edward jogou as palavras dela contra ela mesma. 

Bella enrubesceu. 

— Não vou dar exemplos, se é isso que você está esperando.

Ele sorriu. 

— Não será necessário. Consigo imaginá-los perfeitamente. 

Os dois se encararam em silêncio. Edward parecia analisar suas feições da mesma forma que ela analisara o rosto dele na primeira noite. Mas Bella não estava de olhos fechados como ele estivera, e isso de algum modo parecia deixá-la mais vulnerável. Exposta. Estar ali, em frente a ele, vendo-o observá-la e não poder fazer nada quanto a isso. Os olhos dele examinavam seus cabelos, suas orelhas, suas bochechas, demoravam-se nos seus lábios e… 

— Boa noite, bem-vindos ao Mircea! Sou Matthew e irei servi-los esta noite. O que desejam?

Bella agradeceu mentalmente a interrupção. Ela olhou o menu e considerou suas opções. Álcool, com toda a certeza, não era uma delas. 

— Uma água sem gás, por favor. 

    — Um Cioran e uma sângerete, por favor — Edward disse com a rapidez automática de quem frequentava a casa há anos. — Diga ao Luca que é para o Cullen. 

    O garçom assentiu e se afastou da mesa em direção à cozinha. Bella leu na folha os pedidos de Edward. Cioran. Em homenagem ao filósofo romeno Emil Cioran, um drink preparado com Kaspers Elderflower, folha de limão, zimbro e tônica. Ela desceu os olhos até a seção de aperitivos. Sângerete. Delicados gomos preenchidos com gordura, carne e sangue de… 

    — Você vai comer sangue de porco?! — Bella fez uma careta. Edward riu diante de sua expressão. 

    — Qual o problema? 

    — É sangue

    — De porco. Você fala como se fosse sangue humano — Edward disse, a pronúncia clara e audível, esperando que ela absorvesse as palavras para ele avaliar sua reação. Um teste. Mas para o quê?

    Bella sentiu-se nauseada. Detestava aquele assunto. Ele suspirou e franziu a testa segundos depois. Pelo jeito um teste no qual fui reprovada.

    — É uma morcela tradicional da Romênia. Como sempre que venho aqui. É a única cujo sabor se aproxima da sângerete que meus parentes faziam. — Ele sorriu. — Para ser honesto, não se trata da comida… Trata-se da minha história, da minha família, das minhas lembranças. Quando eu provo, é como se fosse transportado para outro lugar. Um lugar onde me sinto… 

    — … Em casa. 

    — Você entende. 

    — Ainda não. Mas sei que um dia vou entender. — Em breve. Quando eu tiver invadido seu coração e sua conta bancária, Edward. 

Eles ficaram em silêncio. Matthew voltou com as bebidas e o prato de Edward. Afastou-se com uma discrição educada enquanto Bella bebericava a água e Edward partia a sângerete. Ela observou os dentes pontudos do garfo afundando na superfície negra, a faca cortando uma fatia. À meia-luz, a carne exibia um brilho vermelho escuro. Sangue coagulado. 

— Onde? — ele perguntou de súbito. 

— Onde o quê? 

— Onde você se sentiria em casa?

Bella parou. Edward notou a hesitação em seu rosto.

— Desculpe. 

— Pelo quê?

— É uma questão particular e estou me intrometendo. 

Bella ainda hesitava, mas não pelos motivos que Edward achava. Ela precisava dar alguma resposta, sabia disso. Precisava confessar algo a ele, compartilhar um segredo, iniciar a construção da intimidade e confiança entre os dois. Nos projetos anteriores, era fácil: ela já chegava no primeiro encontro com uma história de vida pronta e eficaz, fabricada de acordo com as preferências e a própria história de suas vítimas. Mas ali, com um mistério de olhos escuros a fitando, Bella não tinha certeza se mentir seria a melhor opção. O que dizer? 

— Onde você acha que eu me sentiria em casa? 

Ele soltou uma risada rouca.

— Audeline, não importa o que eu acho. Isto não é sobre mim. É sobre você

Bella suspirou. Talvez se arrependesse disso no dia seguinte. 

— Uma cidadezinha obscura em algum lugar bem longe… algum lugar como a Itália. Uma cidade onde sou uma completa desconhecida, onde posso começar do zero, esquecer o meu passado e simplesmente…

— … Ser você mesma — ele completou.

Bella abriu um sorriso genuíno.

— Você entende. 

 


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Notas finais do capítulo

Gente, desculpem novamente pela demora, a fic não está abandonada, ela já tem o capítulo final e tudo, só preciso revisar os caps que faltam! A minha vida está meio maluca, e eu ainda por cima inventei de escrever outra história, então não prometo atualizações semanais, mas continuo escrevendo a fic! Obrigada por acompanharem a história. Um feliz Natal para todo mundo! :)



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