Paradoxo escrita por Crystal


Capítulo 1
Capítulo Único




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Já fazia tanto tempo, tanto tempo, que eu nem me lembrava mais como era a sensação. Pensei que, finalmente, estava livre. Foram os dias mais tranquilos e reais que poderia ter. Estava feliz e calma, o dia raiava e a chuva já não me assustava. O tempo fluiu mais lento, apreciei o meu silêncio e não me incomodei nem um pouco com o exterior. Mas aí, ela chegou.  

Eu não gostava dela. Era fria e inconstante, gostava de brincar comigo. Me deixava mal e cinza. E eu odiava cinza. Ela fazia questão de me pôr para baixo, sempre com suas risadinhas debochadas e humor que me satirizava. Eu a divertia e era por isso, apenas, que ela vivia indo ao meu encontro. 

Não foi de repente, como alguns dizem. Ela veio aos pouquinhos, de mansinho foi se esgueirando por minhas fendas, junto as olheiras e o “não  afim de ir hoje, gente”. E eu a percebi, reconheci o suave e adocicado cheiro dela, sempre reconhecia, os sinais eram claros, premeditados. Porém, tentei me convencer que conseguiria controlar dessa vez. Eu consigo! Eu consigo! Eu consigo! Não consegui.  

Ela avançava cada vez mais, do mesmo modo que aumentava o volume de meus demônios. Os meses se arrastaram, meu coração pressentia a explosão e se preparava para os estilhaços. As críticas sangraram, a paranoia intensificou. Pronto, o gatilho havia sido acionado. Em uma noite, após tantas e tantas no silêncio da insônia, minha mente gritava e esperneava, doída, cansada de todo o caos. Um peso enorme caiu sobre meus ombros, meus olhos arderam pelas lágrimas. Sufoquei-me pelas palavras não ditas, pelos arrependimentos enraizados, pela dor que persistia e nunca, nunca, nunca me deixava. Tudo estava errado, tudo. Não era para ser assim, por que eu não poderia ser normal? O meu eu era errado. Todo o eu. Não existia nada certo. 

O oxigênio parecia toxico ao meu ver, me fazia viva. E viver significava perecer no constante sofrimento na qual eu me dispunha. Eu mesma. Minha mente. Minha alma. Não por querer, não por não a expulsar, por somente aceitar meu destino tal qual ele era.  

—O que foi, filha? Quer me contar algo? Está tão quietinha esses dias. – Mamãe inquiriu desconfiada ao me ver calada no sofá, a televisão iluminava de forma fantasmagórica seu rosto, mas eu não me importei realmente.  -Está tarde, querida. Está tudo bem? 

Algo rasgou meu peito quando sorri para ela, tentando controlar a bagunça em mim entre tremedeiras e espasmos. Mamãe não percebeu, nunca percebia afinal. Ela, a dor, aquela que me infernizava todo minuto de todo dia, se tornava invisível aos outros em um piscar de olhos. Traiçoeira como era, manipuladora. 

—Está tudo bem, só quis assistir um pouco de TV. 

—Tem certeza? – Não, não tenho. Você é a minha mãe, como não vê? Eu me sinto oca por dentro! Sou tão fraca, mamãe! Me ajuda! Ela vai me levar! 

—Claro que tenho.  

Seu olhar se fixou em meu rosto por um longo segundo. Estendi a mão para segurar seu pulso e pedir que não me deixasse, mas meu membro não obedeceu minhas ordens. 

—Eu te amo, mamãe. Não esquece, tá?  

Confusão tomou sua expressão.  

—Eu também te amo, querida. Te amo mais que tudo. Tem certeza que está tudo bem?  

Não.  

—Sim. 

—Então, boa noite, meu bem. – Beijou-me a bochecha e entrou para o quarto.  

—Boa noite.  

O cômodo escureceu, assim como minha alma ali, aos cacos. Refleti por um segundo em como era bonito e macabro o paradoxo da existência. Vivemos para morrer. Morremos para viver. Não faria mal adiantar o processo para o universo naquela noite. 


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