Amor Cego escrita por Cas Hunt


Capítulo 15
Samir




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Sonho com Noah. Abro os olhos e encaro a janela. Por que estou chorando? Ergo o tronco sentando-me na cama quietamente e levo as mãos até os olhos. Meu rosto está ensopado. Apoio os cotovelos nos joelhos, tentando lembrar de alguma coisa. Qualquer coisa. Um sinal da razão do meu peito doer tanto. Do que tenho tanto medo?

Massageio o centro da testa, tentando não fechar muito a expressão logo cedo. O céu já desponta as primeiras cores do nascer do sol e provavelmente Charlie vai acordar em alguns minutos. Deve estar perto das cinco. Jogo as pernas para fora da cama fazendo o mínimo de movimentos no móvel para não acordar ela.

Direciono-me ao banheiro e fecho a porta atrás de mim. Apoio os braços nos dois lados da pia sentindo arrepios devido o material frio contra minha palma transmitir um choque térmico e deixar os pelos do meu braço eriçados. Olho meu reflexo no espelho.

Pareço muito séria. Trilhas de lágrimas percorrem minha face e ligo a torneira justamente para limpá-las. Lavo bem o rosto, refletindo sobre o primeiro fato a vir na minha mente: Preciso esquecer Noah. Pensar tanto sobre ele, sonhar com ele parece um insulto a pessoa real. Eu o respeito. Por isso parece tão errado fixar-me nele como meu salvador. Então a pergunta se repete: O que tem de errado comigo?

Respiro fundo, desligo a água. Encaro o reflexo. Estou fazendo o certo? Deveria mesmo estar nessa universidade? Nesse dormitório longe de tudo e todos que conheço? E se não for o que eu quero? Desvio o olhar. Tive certeza ao ouvir Noah: A única pessoa capaz de tocar bem o suficiente para combinar com uma voz como a dele seria eu. Não é confiança demais?

Pergunto-me... Por que tudo envolve ele? Tem que envolver? Apoio uma mão no rosto, sabendo ser uma resposta negativa. Não preciso de Noah. Preciso crescer. Superar essa ideia idiota de suficiência. E mesmo assim, mesmo tendo essa consciência, por que perto dele tudo isso me é fútil? Me escapa como areia entre os dedos.

Sei a resposta. Me irrita por não entender completamente. Por não ser simples igual a um acorde.  Inspiro profundamente e encaro a pessoa no espelho. Aceitando-a. E aceito o fato de estar apaixonada por Noah.

Tendo isso em mente, posso tentar superá-lo. Ou ao menos esquecê-lo. Escuto o alarme de Charlie. Arrumo minha expressão, faço a higiene básica e saio do banheiro passando a pensar sobre outro fator do dia de hoje.

—Ah — a garota ergue as sobrancelhas ao me ver de pé — Achei que dormiria até o último minuto.

Lhe entrego um meio sorriso.

—Que tal me ajudar a escolher a roupa pro meu encontro hoje?

Meio acordada, Charlie assente.

***

Sentada frente ao professor o cansaço me dá um tapa quase me fazendo dormir no meio da aula. Apesar de não estar dolorida ainda, o esforço que fiz para tentar acompanhar Charlie e as outras deve ter sido o suficiente de exercício pelo resto da vida. Convidaram-me de novo. Suspiro imaginando onde diabos me meti ao tentar fazer amizade com pessoas que gostam de exercício físico.

Cruzo os braços sobre o peito. Meu único gosto é a música. Louis gosta do oceano e por algum milagre nós duas sempre acabamos falando sobre tudo menos os nossos gostos. Até em silêncio ela consegue me fazer confortável. Massageio os ombros tensos sentindo o filete de saudade em meu peito.

—Brown!

Salto na cadeira. O professor parece vir me chamar a algum tempo e estive ocupada demais distraída. Escuto as risadas baixas vindas dos outros colegas de sala e encolho os ombros querendo fugir. Sequer me lembro do nome do homem na minha frente e fico ainda mais confusa ao notar o outro ao seu lado, significantemente mais jovem.

—Escutou alguma coisa do que eu disse? — o professor questiona.

Arregalo os olhos segurando as extremidades da cadeira, nervosismo me devorando.

—Não, desculpe.

Outra onda de risadinhas. Minha garganta dá um nó. O sinal toca e os outros na sala começam a se mover, erguendo-se das cadeiras e encaminhando-se até a porta fazendo comentários altos sobre aula ou futilidades. Passo a mão no rosto, cansada. Coloco a mochila no ombro e suspiro vendo o fuzilar do professor na minha direção.

—Venha até aqui, Brown.

Merda. Tento arrumar minimamente as roupas antes de me aproximar. Percorro o labirinto de cadeiras e mesas até chegar no espaço do homem mais velho ainda acompanhado do outro. Agora de perto noto algumas coisas. O professor é inteiramente grisalho, gorducho e baixinho. Talvez nem chegue aos 1,60. Tyson adoraria conhece-lo. Outra coisa é que sinto conhecer o mais jovem.

—Esse é Samir Ali. Imagino que saiba que ele foi quem venceu o nacional de piano. É meu antigo aluno e esteve presente na sua entrevista de admissão, não sei se notou.

A expressão de espanto causa um sorriso no rosto de Samir. Estendo a mão na sua direção atrapalhando a fala do professor pela minha própria empolgação.

—Você criou Ondas, não foi? Seu trabalho é incrível!

Samir pega minha mão, um sorriso sem graça. É um homem bonito nos seus vinte e cinco ou seis anos, traços arábicos exibidos pelo formato do queixo e dos olhos, a barba bem cuidada e o cabelo curto muito bem arrumado sem sequer precisar de gel. Vestindo o terno cinza ele mais parece um homem de negócios que um instrumentista.

—Agradeço — Samir demora ainda outro longo segundo até soltar minha mão — Pedi ao professor Dixon pra acompanhar sua aula hoje achando que seria prática. Não tinha ideia de que a disciplina dele deixou de ser Prática Instrumental pra ser Linguagem da Música Popular.

Sorrio, levemente estranhando o prolongamento do toque. Ignoro, ainda admirando o homem tão talentoso na minha frente. Sua produção ganhou tantos prêmios que não me admiro estar tão bem vestido. “Ondas” é uma música feita no piano e inteiramente no instrumento dividindo-se em tantos sons diferentes que dá a sensação de se estar em uma praia escutando as ondas batendo contra as roxas.

—A culpa não é minha se me substituíram por alguém mais jovem — Dixon dá de ombros — Cuidado, talvez te aconteça o mesmo.

—Impossível — refuto — O que ele fez criou um novo caminho para os estilos musicais Ninguém nos dias de hoje pode repetir isso.

Samir me olha curioso.

—Sério? Vim hoje querendo escutar você novamente por pensar que seria quem me ultrapassaria no piano.

Quase solto uma risada.

—Não precisa se preocupar com isso —pressiono os lábios, um sorriso amarelo — Nem chego perto do seu talento.

Fico frustrada. Deveria ultrapassar ele. Queria. Não consigo justamente por ser incapaz de repensar a música em si ou de criar algo por conta própria. Tudo parece só mais uma repetição de tantas outras que já fiz. Samir continua me olhando. Avaliando.

—Não é? — repete, pensativo — E que tal se inscrever no concurso municipal?

Arqueio uma sobrancelha.

—Por que?

Samir sorri ainda mais, fitando algo muito além da minha superfície. Ele sabe o que eu sinto?

—Pode se surpreender sobre o que acontece quando se é pressionado.

—Samir sempre criava as melhores músicas antes de competir. —Dixon lhe dá uma palmada nas costas —Ao menos tente. Se não conseguir nada é só repetir alguma, certo?

Concordo, mas sem vontade alguma de participar de um concurso. Não sei como minha vida profissional vai seguir, mas no momento não acho que iria ser como Summer ou Samir. Seque consigo imaginar meu rosto em alguma capa de revista famosa sobre a música ou sites falando sobre mim.

—Se me der 10 na prova final eu participo — encaro Dixon.

Ele me devolve o mesmo olhar pretencioso.

—Gosto da sua coragem. Feito. Mas só se ganhar com uma música sua. Se não sequer vai ter graça.

Estendo minha mão ao professor.

—Feito.

Samir tira um papel do bolso e me entrega. É seu cartão.

—Se precisar de ajuda... Ou só quiser companhia... Adoraria escutar notícias de outro talento no piano.

O design moderno, letras miúdas e números impressos não combinam com os garranchos na parte de trás onde imagino se tratar do seu telefone pessoal.

—Galanteador como sempre. — Dixon engasga com o beliscão de Samir.

—Não se importe com ele — Samir se prepara para sair tomando seu celular da mesa do professor e pondo no bolso.

Passa por mim parando a poucos centímetros do meu ouvido, aproveita-se da diferença de altura para curvar-se bem próximo.

—Fica muito bonita concentrada.

Samir parte, o professor em seu encalço. Faço uma careta achando a cantada tão brega quanto as calças psicodélicas no fundo do armário da minha mãe. Guardo o cartão na mochila revirando os olhos para o acontecido.


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