Phantom escrita por Black


Capítulo 1
Capítulo I


Notas iniciais do capítulo

O nome desse capítulo deveria ser "CAPÍTULO I - A VERDADE É MAIS ESTRANHA QUE OS MEUS PIORES SONHOS", mas o Nyah não facilitou no título e bem... ai vamos nós.



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Tudo começou naquela fatídica quarta-feira chuvosa, quando ela estava atrasada para a faculdade, tinha esquecido o ticket do metrô na república e, aparentemente, todo táxi de Londres não podia parar porque ela estava com cheiro de frappuccino de caramelo. Ou talvez fossem as botas pretas, a calça em farrapos, fora os outros milhões de adereços que compunham seu visual, mantendo todo tipo de ser vivo e humano longe. Barbara se vestia como uma cantora de rock fracassada, pós-abstinência de entorpecentes e não como a estudante quase formada em história da arte que era. E o pior de tudo, ela gostava de parecer assim.

O celular vibrou e fazendo um esforço enorme - porque carregar um mapa conceitual da Inglaterra antiga, uma mochila e tentar salvar um pouco de sua bebida, era muito mais do que uma garota poderia aguentar - ela fez malabarismo e finalmente - não antes que aquela porcaria tivesse tocado mais de duas vezes - atender quem quer que estivesse do outro lado da linha.

— O que é? — Barbara bufou, esquecendo-se momentaneamente que poderia ser alguém lhe oferecendo um estágio ou quem sabe, um emprego definitivo.

— Você é definitivamente encantadora pelas manhãs, maninha. — Só havia um ser na terra que lhe chamava de maninha e para que Ashlin Black, seu irmão mais velho, estivesse ligando às oito horas da manhã e perdendo seu precioso tempo em Liverpool, era realmente uma coisa séria. — Nós temos um problema.

— E quando nós não temos? — Ela rebateu, agora preocupada em se enfiar num táxi, enquanto o motorista impacientemente lhe pedia para ir mais rápido. — Ei, eu estou tentando, okey?

— Barbara, pode, por favor, prestar atenção? — Ash chiou do outro lado.

— Anthony está bem, maninho. É tocante a sua preocupação com o seu filho. A mamãe vai bem, mesmo que ainda viva trancada no quarto, alisando o violino do papai e eu tenho sérias suspeitas de que Cedric é gay.  — Ela murmurou, enquanto rabiscava o endereço que desejava ir para o motorista.

— Eu desisto de você, garota. — Barbara podia jurar que seu irmão queria espremer seu pescoço até a morte e, caso fosse possível entrar no celular e sair do outro lado da linha, Ash já teria feito isso. — A vovó morreu.

Momentaneamente Barbara ficou sem foco, com as mãos geladas e essa sensação se alastrou por seu estômago e em menos de um minuto, toda ela estava assim, fria. Não que Barbara fosse uma insensível neta, daquelas que quando estava na casa dos avós, ficava mais tempo no celular, evidenciando que queria estar em qualquer outro lugar, menos ali - esse posto era de Cedric.

Mas, ela também não era a melhor neta do mundo, embora soubesse que era a favorita da avó - que fazia questão de deixar isso claro para todos, quando a mimava mais que os outros - e agora a vovó Cassandra estava morta.

— C-Como? — Ela questionou o irmão, com uma voz tão apagada e fina, que ela nem mesmo conseguia reconhecer como sua.

— Todo mundo vai pegar o trem para Fife hoje à noite. — Ash a informou. — Vê se coloca sua bunda na porra de um e faz o mesmo.

E enquanto comprava uma passagem de trem pelo celular e consequentemente raspava as últimas libras de sua conta já bem falida, Barbara nem imaginava que seu martírio pessoal estava prestes a começar.

* * *

A casa da vovó Cassie em Leuchars continuava a mesma que Barbara se lembrava, isso é claro, porque a casa em si não era uma casa, mas sim um castelo secular, situado na colina mais alta do condado de Fife, na Escócia. Ela sabia que uma marca de mão na parede da sala de estar era dela, bem como a falta de grama - proveniente de terra queimada e salgada posteriormente - em um lado do jardim era culpa de Cedric e a cama na torre oeste havia sido “batizada” por Ash, quando ele finalmente usou seu pau em uma garota. Claro que no mesmo momento, ele esqueceu que sexo desprotegido levava a bebês e Anthony já estava nesse mundo por quatro anos para lembrá-lo disso.

O castelo em si, apesar de conter todo o teor histórico de uma residência do século XIX, havia sido decorado à maneira de Cassandra Lamond, com fotos dos netos e alguns adereços já amarelados pelo tempo em pontos estratégicos dos cômodos e muitas margaridas. Barbara nunca entendeu o porque da vovó gostar tanto de flores, afinal elas sempre morriam no final e lá estava você novamente, comprando outro ramo na floricultura mais próxima. Na cabeça da garota Black, comprar flores era só uma maneira bonitinha de jogar dinheiro fora.

Com seus quase vinte e um dois completos, haviam muitas coisas que Barbara não entendia, e a mais recente delas era por que sua avó havia deixado o Castelo de Earlshall para sua mãe, Andrômeda. Não que Cassandra tivesse sido uma mãe ruim, ou uma avó ruim, longe disso. Mas, todos sabiam que o relacionamento das duas foi abalado quando a filha resolveu se casar com um violinista londrino, Damon Black.

Foi um escândalo na época, ao menos é isso que Andrômeda costumava contar, porque os ricos e nobres Lamond - o clã escocês ao qual sua mãe fazia parte - simplesmente não se casavam com pessoas de fora da família. Mas, o que é o sangue e o prestígio social quando se está amando? Nada aparentemente.

Dando de ombros e buscando um meio de tirar tais questionamentos de sua mente, Barbara afundou em uma das poltronas da imponente sala, puxando um fio solto na renda de seu vestido preto, enquanto seu sobrinho brincava com soldadinhos de plástico aos seus pés. Anthony era um menino quieto, até demais às vezes e tinha a estranha mania de recolher insetos - colocando-os em exposição dentro de vidros em seu próprio quarto.

A morena passou os dedos de leve pelo cabelo escuro do menino, antes de rodar seus olhos pelo cômodo, vendo o mar de pessoas em vestes negras finalmente dando adeus e se comprometendo a ajudar no que Andrômeda e os filhos precisassem. Barbara revirou os olhos, sabendo que metade daquelas pessoas nunca mais os procuraria e, em realidade, ela até preferia assim.

Em menos de três meses, os Black já tinham passado por duas situações como aquela - primeiro com Damon e agora com Cassandra - e se tinha uma coisa que Barbara aprendeu é que, no final, a família é que estaria ali para a família, não uma dessas pessoas de olhos marejados e palavras bonitas.

Finalmente, quando o sol já não estava tão alto e a casa já estava silenciosa o suficiente para que ela escutasse o ranger da madeira, Barbara se levantou, seguindo para a cozinha e encontrando a mãe sentada no chão, às costas de encontro à geladeira, o rosto enfiado nas mãos, enquanto o corpo convulsionava em pequenos soluços.

Aquilo foi como um soco no estômago da garota e, por um momento, Barbara ficou sem ar. Era como se tudo à volta dos Black estivesse pouco a pouco ruindo e nenhum deles estava preparado para isso. Limpando a garganta, ela se aproximou da mãe e por mais que elas não fossem tão próximas assim - Barbara sempre fora a menininha dos olhos de Damon - ela entrelaçou seus dedos com os de Andrômeda e apertou, numa tentativa de demonstrar “ei, estou aqui com você. Vai ficar tudo bem”, mesmo que ela soubesse que as coisas ainda nem tinham, de fato, começado a ficar ruins.

— V-você acha que consegue transferir a faculdade? — a voz da mais velha não passava de um sussurro baixo na quietude da casa e antes que a mais nova pudesse perguntar o por quê, Andrômeda continuou. — Eu sei que é pedir muito a você e ao Ashlin, mas eu não posso me desfazer disso aqui, Barbara. Essa casa... essa... era tudo pra sua avó e e-eu...

O choro começou e logo, a cabeça de Andrômeda estava no ombro da filha, enquanto essa aguardava em silêncio, alisando carinhosamente os fios soltos do cabelo da mãe e olhando ao redor do que viria a se tornar sua nova casa - isso se ela tivesse entendido as entrelinhas do que a senhora Black acabara de falar.

* * *

O quarto inteiro tinha cheiro de guardado, como se o mofo tivesse se infiltrado nas paredes e nunca mais fosse sair. E, depois de uma semana ali, era de se esperar que o nariz dela não estivesse mais tão sensível assim e já tivesse se acostumado com a poeira, o cheiro, enfim, todas as coisas que compunham o local. Mas, isso se provava completamente contrário ao que estava acontecendo, porque se Barbara realmente estivesse acostumada às coisas de Earlshall, não estaria virando na cama, completamente sem sono.

Talvez fosse a excitação da casa nova, ou até mesmo quem sabe a mente inconstante, trabalhando a todo o momento num meio de fazer com que a mãe levantasse da cama, ao menos para comer. Eram nessas horas que ela mais sentia a falta de seu pai, com a sua música suave, o sorriso gentil, os abraços calorosos... perder Damon foi um divisor de águas em sua vida. Existia uma Barbara Black antes da morte do pai e existia a outra ela… diferente, desigual, fria de certa forma, como se algo importante estivesse faltando e permaneceria assim, por um longo tempo.

Frustrada, ela jogou as cobertas para o lado e se levantou num salto. A luz da lua se infiltrava pela janela, passando pela cortina e lançando feixes de luz pelo quarto, impedindo que o recinto estivesse na mais completa escuridão. O chão estava frio contra seus pés descalços, fazendo não só com que os pelos do seu corpo se arrepiassem, mas com que uma leve fumaça branca escapasse por sua boca e ela podia jurar que tinha ligado o aquecedor antes de ir dormir, mas tudo ao seu redor estava da mesma forma, gelado.

Barbara já tinha decorado as ranhuras na cabeceira da cama, bem como sabia as manchas de umidade na parede de pedra e onde a pintura estava ou não descascando. Com um ar rococó em declínio, ela se questionou quantas outras pessoas já tinham dividido aquele quarto, quem era o homem usando saia no porta retratos dentro da gaveta e o porquê, de uma maneira inquietante, ela não conseguia fechar os olhos e simplesmente se desligar da realidade ali dentro.

Se aproximando da janela, ela puxou a pesada cortina roxa para o lado - mais uma prova do estilo que sua falecida avó acreditava que qualquer pessoa gostaria - olhando o jardim. Seu quarto era mais distante que os outros, tendo como vista o lado oeste, as esculturas estranhas feitas com arbustos e o início da floresta que rodeava o castelo.

Esse não deveria ser o meu quarto.

Foi a primeira coisa que Barbara pensou, assim que seus pés colidiram com o chão daquele local, sete dias atrás. Mas, por alguma bondade que ela nem sabia ainda ter dentro de si e, se não fosse por muita insistência de Cedric em ficar o mais longe possível do antigo quarto de Cassandra, - porque o irmão Black mais novo tinha medo de que o espírito da vovó ficasse espreitando pelos corredores de noite - Barbara estaria agora no térreo, a poucos metros da porta de saída.

Dando meia volta e andando um pouco pelo seu novo cômodo privado - ainda sem a ‘sua cara’ porque a mudança estava nesse momento sendo transportada de Londres até Fife - os olhos escuros pousaram no cordão de prata sobre a cômoda de mogno. Aquele relicário antigo - escuro, pesado, frio contra a palma de sua mão, gritando ‘desvende-me’ a cada minuto - era a herança que Cassandra havia deixado para sua única neta. Tocado o metal gasto com a ponta dos dedos, Barbara sentia leves ranhuras sobre a superfície, quase como se algo tivesse sido gravado ali anos atrás.

O pingente tinha um fecho e por mais que ela tenha tentado abri-lo assim que o advogado terminou a leitura do testamento, - onde o castelo havia ficado para Andrômeda, um velho baú com fotos para Cedric, o colar para Barbara, o antigo carro de Cassandra para Ashlin e, por fim, as últimas quinze libras na conta do banco para Anthony - a coisa simplesmente não abria. E para ajudar, Cassandra tinha deixado um bilhete para a neta. A caligrafia elegante e cursiva da avó não poderia ser confundida com nenhuma outra, mas eram as palavras que deram um nó na mente da mais nova.

“A sua vida está ligada a dele desde o começo, Barbara. Tenho certeza de que posso contar com você. Com amor, vovó.”

Suspirando, Barbara deslizou o colar sobre a cabeça, sentindo uma sensação reconfortante quando o relicário pousou sobre a sua pele, como se ele estivesse no lugar certo. Dando meia volta, a garota Black se preparou para deitar novamente e rolar por mais algumas horas e, quando estava a poucos passos do colchão, seus olhos se desviaram uma última vez para o jardim.

Não passou de uma fração de segundo, mas ela podia jurar que viu alguma coisa... espreitando lá fora, olhando diretamente para a janela de seu quarto. E, enquanto se enfiava debaixo dos cobertores - tentando se convencer de que aquilo não passava da sua cabeça cansada lhe pregando uma peça - foi inevitável não se encolher, sentindo o coração galopando com medo dentro do peito.

* * *

— Quando é que você vai trocar a sua foto de perfil? — Cedric perguntou, assim que Barbara sentou-se na mesa do café, não sem antes notar que não havia sombra de Andrômeda e Ash estava pilotando o fogão — Sabe? Eu preciso atualizar o meu avatar no LOL.

Tendo acordado a pouco, seu cérebro ainda estava coberto por uma nuvem de sono, fazendo com que ela precisasse se concentrar duas vezes mais, só para conseguir entender as asneiras que seu irmão estava falando. Quando, finalmente, as palavras de Cedric se infiltraram em sua mente, ela franziu o rosto, torcendo os lábios no processo.

— Que tal você usar uma foto sua ao invés de um foto minha, uh? — A morena respondeu, enquanto se servia de uma xícara de café. O líquido preto estava tão amargo, que foi com custo que ela conseguiu engolir, enquanto pousava o restante sobre a mesa — Meu Deus, Ash. O que que é isso?

Ashlin Black apenas lhe deu o dedo do meio, ocupado demais para se voltar para a irmã, enquanto mexia nos ovos na frigideira e torcia - mesmo que internamente - para que eles não saíssem tão queimados assim.

— Você sabe que a sua foto faz muito mais sucesso que a minha, Barbara. Todo mundo quer uma menina bonita na equipe, mil skins a mais se ela joga bem. — Levando mais uma colher de sorvete com calda para panquecas até a boca, o irmão mais novo argumentou. — Além de que, como eu poderia deixar de ser uma menina e, repentinamente virar um menino no jogo? Já bastar ter que afinar a voz na call para fingir ser você.

Meu irmão é um diabinho ordinário que usa minha identidade como bem quer por ai.

Balançando a cabeça, Barbara escolheu deixar aquilo de lado. Não era a primeira, nem seria a última vez que Cedric vinha explicando o porquê dele fingir ser ela e não ele mesmo em um jogo. E, verdade seja dita, Black já estava cansada de esperar que seu irmão se assumisse ou qualquer outra coisa que ele quisesse fazer.

Passos soaram na escada e por um segundo, a morena pensou que poderia ser Andrômeda descendo os degraus para se juntar aos filhos - a primeira vez desde que Cassandra havia sido enterrada - mas, não. Era apenas Anthony, com o rostinho inchado de dormir, os cabelos espetados em diversas direções, usando o pijama azul e segurando um papel entre as mãos gordinhas.

Foi inevitável segurar o sorriso que se alastrou por seu rosto, vendo o pequenino correr em sua direção, fazendo com que ela se abaixasse um pouco, pegando-o no colo e depositando um beijo em sua bochecha. Tinha sido assim desde que o menino havia nascido, quando sua mãe abriu mão dos direitos - sem sequer contar para Ash que estava esperando um filho dele - e Anthony estava às portas de ser deixado para adoção.

— Ei, bebê. — Passando os dedos entre os fios grossos, tentando dar um jeito no cabelo do menino, os olhos dela se voltaram para o papel amassado nos dedos dele. — O que é isso, Anthony?

— É seu, tia Barbara. — A coisinha grandinha demais para quatro anos disse, quase que fazendo malabarismo para escapar dos braços da tia e correr até o pai. — Ele disse que a senhora tem que abrir.

— Espere, Anthony…quem é ele? — A sua voz ficou perdida entre os risinhos infantis do sobrinho e a voz boba que o irmão usava com o filho, enquanto o papel nas suas mãos parecia cada vez mais e mais pesado.

Enquanto observava Anthony se jogar nas pernas de Ashlin, os dedos dela se fecharam sobre a carta, apertando-a com força. Arrastando a cadeira para trás, Barbara murmurou um “volto logo” para os irmãos, - sendo totalmente ignorada por esses - antes de subir correndo as escadas, rumando para o seu quarto.

Ela empurrou a porta com força, batendo a madeira contra a parede de pedra e os quadros na parede - todos feitos por ela, feitos com diferentes estilos de desenho, colagens ou apenas tinta - balançaram.  Black tropeçou no tapete, xingando o material felpudo, antes de cair na cadeira à frente de sua escrivaninha. Suspirando, ela jogou a carta sobre a mesa e ficou encarando-a por longos segundos, como se aquele pedaço de papel fosse uma bomba prestes a explodir.

Isso não pode ser real, não pode.

Abrindo a gaveta com um puxão, seus dedos alcançaram o bolo de outras cartas, todas endereçadas a ela - com seu nome escrito em letras mais do que cursivas, a tinta nankin excessivamente preta, o cheiro de pinho emanando do papel amarelado - e, como as demais, Barbara jogou-a no fundo da gaveta, fechando-a ao final. Com essa que Anthony acabará de lhe entregar, totalizavam vinte e uma cartas. A quantidade exata de dias em que ela havia se mudado definitivamente para o castelo de Earshall.

Foi um susto quando a primeira carta apareceu. Pousada exatamente sobre seu travesseiro, sendo que não estava ali minutos antes dela sair para o banho. A princípio, Barbara pensou que aquilo fosse algum tipo de brincadeira de Cedric - porque o palhaço estava sempre tentando tirá-la do sério - mas, com o passar dos dias, na medida em que ela mal tocava nas cartas, foi à vez de Anthony entregá-las a tia.

Eu vou queimar essas porcarias.

Black decidiu por fim, abrindo novamente a gaveta e segurando todas cartas com mais força que o necessário - quase como se ela quisesse que o papel sentisse toda a sua raiva - enquanto saia de seu quarto, com apenas um destino em mente.

* * *

— Você pode me dizer agora, por que decidiu fazer churrasco hoje, do nada assim? — Aquela era a terceira vez que Cedric lhe fazia a mesma pergunta, enquanto ela mexia as brasas de carvão dentro da churrasqueira elétrica de Ash. — E você sabe que era só ligar na tomada, né? Tipo... é elétrica, Barbara.

— Será que você pode ficar quieto e aproveitar, igualzinho ao Anthony? — Barbara grunhiu, apontando para o sobrinho, sentado na grama enquanto mastigava audivelmente um pedaço de carne, que provavelmente já tinha rolado pelo chão antes de ir parar em sua boca. — Você me estressa muito, Cedric. Deixa que com o Ash, eu resolvo depois.

Ela sabia que estava gritando por nada, provavelmente suando por nada, mas os níveis de adrenalina em seu corpo estavam altos depois daquela última carta e tudo que Barbara queria era se livrar daquele maldito bolo de papel amarelado - que agora queimava calmamente em conjunto com o carvão, pouco a pouco virando brasa.

Sua fala pareceu o suficiente para Cedric, porque o mais novo dos irmãos fez exatamente aquilo que a mais velha pediu, fechando a boca e apenas aproveitando o churrasco de improviso que Barbara havia arrumado para eles. Algum tempo depois, quando as brasas já estavam frias e as cartas não passavam de um monte de papel queimado, a morena suspirou aliviada, se sentando sobre a grama e elevando o rosto para o sol fraco do meio dia.

— Sabe, titia? — A voz de Anthony se fez presente, quando ela estava curtindo um dos poucos momentos de paz desde que havia chegado à Escócia. Ele disse que, cedo ou tarde, vai ter que falar com ele.

E foi assim, com simples palavras simples ditas do jeitinho fofo que só uma criancinha saberia fazer, o mundo parecia novamente frio para Barbara Black, por motivos que ela ainda não sabia muito bem explicar o por que.

— Como assim, Anthony? — A morena voltou seus olhos para o garotinho, que olhava para frente, exatamente para a borda da floresta, enquanto continuava a murmurar. Ele quem?

Ele, tia Barbara. Goldhart. O moço das cartas que a senhora não quis ler. — E então, como se um passe de mágicas, Anthony se voltou para ela, com aqueles olhos tão azuis e sinceros, que só fez com que o gelo se alastrasse ainda mais por sua espinha dorsal. — Ele diz que esperou muito tempo por isso, tempo demais.

* * *

“Encontre-me na floresta, Barbara Black. - G.G.”

Um, você não está ficando doida… Dois, é só uma brincadeira boba… Três, se passar um paninho some, sério.

Se ela não estava ficando doida então, por que diabos essas palavras - essas malditas palavras! - cobriam toda a superfície do espelho do banheiro e Barbara podia jurar que antes de entrar no banho, elas não estavam assim?

Eram as mesmas malditas palavras que estavam num papel dentro de seu livro na noite passada, bem como magicamente apareceram em um post-it colado em seu celular nesta manhã. E agora estavam aqui, surgindo novamente do nada durante seu banho.

É pedir muito um pouco de paz?

Apertando ainda mais a toalha contra o corpo e olhando uma última vez para o espelho a sua frente, a garota levou a mão úmida contra a superfície e passou os dedos por ali. As palavras sumiram tão rápido quanto tinham aparecido e as gotas de água de sua pele deslizaram pela superfície refletora, mas antes que o alívio pudesse tomar conta de seu corpo, por milésimos de segundos enquanto se encarava no espelho, Black podia jurar que alguém estava atrás dela.

O grito que irrompeu por sua garganta foi alto o suficiente para fazer com que Ashlin - aquele mesmo irmão imprestável que roncava na sala e fazia o pior café da manhã de todos - viesse correndo ao seu socorro com um espanador de pó nas mãos.

— O que tá acontecendo aqui? — ele grunhiu, após abrir com força a porta do banheiro e encontrar a irmã encolhida num canto, os olhos arregalados, olhando fixamente para si mesma refletida no espelho. — Barbara?

E ela permanecia lá, estática, enquanto as palavras do moreno ecoavam pelo pequeno e úmido cômodo. Seu corpo tremia levemente, enquanto a água do cabelo escuro pingava pelas costas e em direção ao chão manchado. 

Eu vi, eu vi, eu vi…

— Barbara, você tá me assustando, porra. — Ash murmurou, assim que soltou sua “arma” e foi de encontro a mais nova. 

Ela estava gelada, fria em realidade quando a mão do moreno encostou em seu braço e Ash se questionou como isso era possível, porque a fumaça no banheiro indicava que ela devia ter tomado um banho quente. E como sempre, quando a mente humana não tinha uma explicação para coisas inexplicáveis, inventava coisas e a de Ashlin seguiu como a maioria. 

— Olha, deve ter sido uma barata, foi só um susto. Essa merda de castelo tá infestado dessas coisas… então, por que você não sobe e muda uma roupa, hm? Sei lá, dorme um pouco. Cedric e o Anthony ainda estão na escola e eu só volto pra Liverpool amanhã. — O moreno parou e limpou a garganta antes de continuar. — Tira um tempo pra você, antes que o recesso da faculdade termine.

E quando a irmã fez exatamente o que ele pediu, saindo do banheiro sem questionar uma única vez, Ash ponderou se estava fazendo a coisa certa ao deixar Barbara e Andrômeda naquele lugar sozinhas, com duas crianças - porque Cedric era tão infantil, as vezes pior que o próprio Anthony - depois de apenas um mês e alguns dias da morte de Cassandra.

Ashlin sabia que não era justo com a irmã - deixar todo o fardo da família imperfeita deles nos ombros de Barbara - mas ele sabia que se tivesse que passar mais uma semana dentro do castelo de Earshall, enlouqueceria. 

Não só o clima ali parecia errado, a mobília rangia muito mais do que o normal, a merda do carro de Cassandra nunca pegava corretamente e milhares de outras coisas que o primogênito de Damon e Andrômeda detestava naquele local, mas o pior de tudo era a sensação que Ashlin tinha todas as vezes que cruzava o hall de entrada.

Não era uma sensação puramente ruim, mas ela também não era boa, não de todo modo e fazia com que Ashlin quisesse estar em qualquer lugar, menos ali. E era por isso que ele estava voltando para Liverpool, para o seu trabalho não tão pacato como bombeiro florestal, mas que ainda assim, era mais seguro do que ficar naquela casa - ao menos, era nisso que o Black queria acreditar.

* * *

Eu to ficando doida, só pode.

Esse foi o primeiro pensamento que veio a mente de Barbara Black, assim que ela deslizou por entre a lona preta e roxa - com remendos demais, alguns deles tão irregulares, que ela teve de se esforçar para enxergar uma estrela ali - que servia como porta para o local da cartomante. O vagão de Madame Maxime ficava o mais distante do restante do circo, quase como se a velha charlatona quisesse se manter longe dos olhares curiosos.

Tudo ali fedia a incenso de capim limão extra forte, mofo de duas décadas e a própria poeira parecia ser feita de glitter, brilhante excessivamente a frente dos seus olhos. Passando as mãos pelo sobretudo, Black deu um último olhar a suas costas, como se esperasse que Ash fosse aparecer a qualquer momento, pronto para arrastá-la pelos cabelos e questionar por que ela não estava cuidando de Anthony no parque de diversões, como disse que estaria.

É agora ou nunca, Black. Dois segundos para correr ou um segundo para ficar. A escolha é sua.

Respirando fundo uma última vez - quase com se lhe custasse muito estar ali e não algumas libras, uma boa dose de desespero e sua própria sanidade - Barbara se embrenhou no mar de magia e loucura que a tenda afirmava ter e esperou, torcendo internamente, para que os poderes paranormais daquela senhora fossem reais. Bocejando, a morena se sentou na poltrona vermelho sangue, de frente para uma mesa baixa, olhando diretamente nos olhos cansados de uma senhora com maquiagem de menos e rugas demais.

— Hm... curioso, muito curioso. — Essas foram as primeiras palavras que Madame Maxime dirigiram para Black, sem nem mesmo ter olhado-a por mais de três segundos. — É seu último recurso estar aqui, não é, meu bem?

E a morena queria poder refutar essa fala, realmente queria. Mas era a verdade, não é? Barbara estava desesperada, tão perturbada ao ponto de enfiar o sobrinho dentro da banheira velha que era o carro de Cassandra e mentir para a mãe que iria só ali com Anthony - ali que se tornaram bons quilômetros até York, bem longe de Fife e da Escócia, porque ela ouviu falar que o Opera Mundi estaria por lá e olha só que maravilha, eles tinham uma cartomante! - enquanto buscava verdadeiramente resolver seus próprios problemas.

— Venha, venha. Não precisa ficar acanhada. — A velha murmurou, embaralhando algumas cartas entre os dedos lotados de anéis coloridos. — Eu reconheço o desespero de alguém quando o vejo.

Acho que não tem como, nem por que, refutar isso.

— É exatamente isso. — Barbara murmurou. — Eu estou desesperada, tão desesperada ao ponto de recorrer a coisas que não acredito, porque não sei mais o que fazer.

Maxime parou e a encarou, olhando fundo, de tal maneira que a morena ficou desconcertada e até se moveu um pouco no lugar onde estava, mas mesmo assim, os olhos esverdeados da cartomante não a deixaram por um segundo sequer. 

— Eu gosto do seu cordão, menina. — Instintivamente, uma de suas mãos se enrolou no relicário que estava em seu pescoço, quase como se isso fosse protegê-lo dos olhos da idosa. — Posso?

Por um segundo, Barbara ficou imóvel, apenas repassando a situação em sua mente. Mas depois, quando tudo parecia ter se assentado dentro dela, foi com custo que ela puxou a corrente antiga sobre a cabeça e a colocou na mão de Maxime. Assim que os dedos da madame se fecharam sobre o colar, sua outra mão livre apertou os dedos de Barbara - sem que ela sequer tivesse a chance de se livrar deles - e então, era como se ela estivesse analisando o cordão e sua dona.

Os segundos se tornaram minutos e era como se o tempo se arrastasse de modo diferente ali. A cartomante ainda estava de olhos fechados, alguns murmúrios baixos saiam de sua boca, os dedos alisando o relicário e ao mesmo tempo, beliscando a mão da Black. Barbara estava ficando nervosa, olhando furtivamente sobre o ombro, torcendo para que Anthony irrompesse por ali a qualquer momento e então, ela tivesse uma desculpa para esquecer que tinha vindo até aqui.

Mas, na mesma intensidade que queria ir embora, deixar tudo para trás, ela também queria saber. Estava cansada de acordar a noite com a sensação de estar sendo observada, estava cansada das cartas, dos bilhetes espalhados pela casa - estava cansada também de fingir que estava tudo indo bem e que ela conseguiria fazer isso sozinha. Alguma coisa estava sim acontecendo desde que os Black tinham se mudado para Fife e se Ashlin tinha voltado para Liverpool como um cachorro medroso, ela não iria correr.

— Sabe? — A voz de Madame Maxime a arrancou de seus próprios pensamentos. — Você tem uma coisinha… interessante aqui, querida.

— Defina interessante. — Barbara pediu e foi como se o sorriso ladino da cartomante se ampliasse em seu rosto velho.

— Interessante do tipo de coisa que tira seu sono a noite, que grita para que seja atendido e faz seu corpo gelar quando está sozinha, não é? — Como? Como essa velha charlatã podia saber isso? — É uma dádiva e um fardo ao mesmo tempo, menina. E, eu diria que, quanto mais você ignorar, pior vai ficar.

— Eu não entendo… — E Black não entendia mesmo. — O que é tudo isso?

— Ora, meu bem, é simples. — E enquanto devolvia o relicário para sua real dona, Maxime proferiu as palavras que, sem sombra de dúvidas, desgraçaram qualquer esperança que Barbara tinha de ser, em realidade, uma coisa simples. — Tem um fantasma seguindo você, garota.

* * *

Barbara não sabia se estava sonhando ou se aquilo era o espaço de tempo entre adormecer e acordar, mas ela sabia que aquilo não poderia ser real, de modo algum. A última coisa que ela se lembrava era de subir calada para o seu quarto, cansada como se tudo que estava sentindo a dias tivesse se acumulado em seu corpo - fora a visita até a fodida cartomante, que tinha se provado muito mais doida do que ela tinha imaginado - antes de cair na cama e se enrolar nas cobertas.

O sono veio mais forte do que ela esperava e nem mesmo a sensação de estar sendo observada - aquela que fazia os cabelos da sua nuca se arrepiarem e o desconforto tomar conta de seu corpo - pode impedir isso. A conversa com Madame Maxime do Opera Mundi não era importante agora, fantasmas eram uma completa besteira hollywoodiana, então como um deles estava ali, rondando-a dentro de seu próprio quarto? 

Ela não sabia que estava tão cansada assim, até que sua cabeça se chocou contra o travesseiro e ela apagou. Só que, no meio da névoa de sonho e realidade, ela ainda podia se lembrar do que viu no banheiro dias atrás, antes que Ashlin irrompesse pela porta. Um par de olhos, olhos tão azuis quanto o céu na primavera e eles pareciam raivosos enquanto olhavam diretamente para ela. 

E bem, agora tinha isso.

O sonho em si não era como nada que ela já tivesse experimentado antes. Black estava do lado de fora do Castelo de Earshall, mas sua casa sequer parecia com o castelo que era. A estrutura principal ainda estava em construção, com vigas de madeira e pedras irregulares por todos os lados, a floresta era muito mais densa e fechada do que ela se lembrava e a única estrutura de pé era a pequena casa de pedra - a qual estava, em realidade, servindo de depósito para tudo que os Black tinham e simplesmente não conseguiam enfiar junto com a decoração de Cassandra.

Barbara não soube o por que, mas ela sentia que precisava ir até essa pequena construção e, antes mesmo que tivesse a chance de ponderar os riscos disso - que não deveriam ser muitos, afinal, ela estava sonhando, certo? - seus pés já estavam se movendo para frente. Dando uma olhada melhor em si, a morena percebeu que aquela poderia até ser ela, mas não se vestia como ela.

O vestido de mangas longo e de um profundo roxo não era uma peça que ela teria em seu guarda roupas, nem mesmo as botas de um material extra macio que usava - e que, por favor, não fosse o couro de algum animalzinho da floresta - eram algo que Barbara Black teria. E o mais engraçado disso tudo era o colar em volta do seu pescoço, o mesmo relicário prateado e antigo que a vovó Cassie havia lhe deixado de herança, repousando suavemente contra sua pele.

Mas, eu estou sonhando, então é plausível que meu inconsciente esteja projetando tudo isso.

Ao abrir a porta de madeira com um empurrão firme, Barbara não pode deixar de notar o quão quente, aconchegante em realidade, estava ali dentro e só então se deu conta que estava com frio. Algumas toras crepitavam na lareira, estalando na medida em que eram consumidas pelas chamas e foi instintivo andar até aquele local. Estendendo as mãos para o fogo, movendo os dedos lentamente e sentindo o calor tomar conta de seu corpo, Black deixou um suspiro baixo escapar por seus lábios.

— Você é mesmo uma pessoa muito difícil de contactar, senhorita Black. — O coração dela podia muito bem ter ido na boca, enquanto ela pulava de susto no local, se virando na direção da voz. — Nunca conheci ser mais irritantemente ignorante na minha eternidade. 

No lado oposto da casa de pedra, parado com os braços cruzados no peito, estava um homem que ela nunca tinha visto. Ainda meio escondido pelas sombras, foi preciso que ele desse alguns pequenos passos para frente e só então, Barbara pode notar alguns aspectos sobre ele. 

O cabelo era num tom de loiro escuro, com algumas mechas mais claras esparsas, o maxilar quadrado com uma fina barba, sobrancelhas grossas - sendo que uma delas era dividida por uma cicatriz no final - ele deveria ser uns bons quinze centímetros mais alto do que ela e, por debaixo das roupas esmeraldinas puídas, ela podia notar que ele tinha alguns músculos. 

Mas, o que mais chamava a atenção era a adaga escura presa em seu cinto e a espada, cuja bainha quase tocava o chão.

Que merda era essa? Quem é você? 

Era o que ela queria questionar, ainda olhando o desconhecido e quando seus olhos colidiram com os dele, parecia que ela tinha sido golpeada no estômago.

Olhos azuis como o céu... Exatamente como os que estavam no reflexo do espelho.

— É você. — As palavras deixaram sua boca num sussurro baixo, enquanto ela o encarava fixamente. — Você é quem estava no banheiro outro dia.

— Então você consegue ser esperta quando quer? — O loiro resmungou, um sorriso de canto surgindo em seus lábios, enquanto ele se aproximava. — Eu sou Godric Brendan Goldhart, senhorita e é, finalmente, um prazer conseguir falar com sua graça.

Godric Goldhart, exatamente como G.G. ou como o maldito que escrevia as cartas, os fodidos bilhetes. O homem loiro a sua frente era a praga que vinha tirando seu sono a mais de um mês. Todo o medo que a morena estava sentindo foi substituído por irritação, raiva e vontade de socá-lo.

— Um prazer finalmente falar comigo? — Barbara repetiu, as mãos se fechando na lateral do corpo, sua irritação ficando clara a cada palavra. — Você não me deixa em paz por dias! Cartas, bilhetes, aparições que quase me matam de susto… até o meu sobrinho só fala nisso. E agora diz que eu sou “esperta quando quero”

   — Como eu disse, é complicado contactar alguém que, aparentemente, ignorou todas as minhas tentativas de ter uma conversa civilizada. — Godric murmurou.

E contra esse fato, realmente não restavam dúvidas. Barbara poderia ter aberto uma das cartas logo no primeiro dia? Poderia, mas não o fez. Ela queria, antes de tudo, entender quem estava brincando com ela, mandando aqueles malditos pedaços de papel e infernizando-a pouco a pouco.

— E o que é que você quer de mim, senhor Godric Goldhart? — Black questionou ao fim, após ver que seria inútil esperar por uma conversa decente vinda de ambos.

— Não é o que eu quero de você, é o que preciso que você faça por mim. — Godric murmurou, a mão sobre o cabo de metal frio da espada, enquanto dava alguns passos na direção da garota e parava a sua frente. — Por favor, encontre-me na floresta no seu tempo, não no meu. — O loiro pediu, as palavras saiam de sua boca num tom quase desesperado. — Estou cansado, Barbara, muito cansado e você é a única esperança que me resta. Eu só quero descansar em paz, já fazem mais de 200 anos que estou esperando por isso.

200 anos? Quem esperaria tanto tempo por qualquer coisa?

— Você é estranho, como sabe que eu vou te ajudar? Ou que só eu posso ajudar você? — Ela rebateu, cruzando os braços à frente do corpo.

— A sua avó era muito mais educada e disposta a ajudar, sabia? — Ele soltou áspero, amaldiçoando os céus por não terem permitido que Cassandra o livrasse da eternidade. A velha, que Deus tenha perdoado suas transgressões, era uma alma caridosa, diferente da neta irreverente. — Porque você tem o meu colar e eu sei que sabe disso, sei que sente isso. — E mais rápido do que ela pudesse prever, sequer impedir, lá estava ele, segurando o relicário entre os dedos, acariciando-o como se pudesse sentir o que estava gravado no metal. 

A Black ficou sem fala, assim, completamente muda enquanto encarava os olhos azuis demais para sequer serem reais. Barbara podia sentir a respiração quente batendo contra sua pele, seu coração elevando a frequência dentro do peito - será que ela estava infartando ou coisa pior? - e a aquela maldita vontade de acreditar nas palavras dele - porque elas soavam tão certas aos seus ouvidos.

“A sua vida está ligada a dele desde o início”.

— Cassandra sempre me disse que você viria. Por favor, estou implorando… — E assim, da mesma maneira que tinha começado, o sonho se findou e ela acordou em seu quarto, no castelo de Earshall, ainda enrolada nas cobertas como tinha se deitado. 

Barbara se sentou, esfregando os olhos e observando ao redor. Olhou para suas mãos, sentindo-as completamente geladas e o pijama velho que usava, que não era um terço do vestido roxo de antes. Mordendo o lábio inferior, Black jogou as cobertas para o lado e quando seus pés encontraram o chão, o choque foi quase instantâneo. Por que sempre estava frio demais na porcaria do castelo?

Andando em passos lentos até a janela - um hábito que ela tinha adquirido desde o que tinha acontecido dias atrás - a morena mirou a floresta iluminada pela lua e enquanto observava a copa das árvores esqueléticas, sentiu como se uma vozinha sussurrasse em seu ouvido.

“Encontre-me na floresta.”

Oh sim, ela iria, mas só depois que descobrisse quem diabos era Godric Brendan Goldhart - ou quem ele havia sido um dia.

* * *

Fife não era o que os Black poderiam chamar de um grande centro metropolitano, em realidade era totalmente ao contrário. Não existiam shoppings abarrotados de lojas como Londres, sequer um cinema decente como em Edimburgo e por mais que Barbara gostasse da falta de trânsito das terras escocesas, ela sentia falta - e muita - das terras da rainha. 

E agora, estando dentro da banheira que Ashlin Black chamava de carro, com Anthony preso no banco de trás na cadeirinha e tendo Cedric como co-piloto - porque ele mais brigava com o GPS do que tudo - ela se questionava se valia a pena todo o esforço para descobrir sobre o passado de um maldito fantasma.

Enlouqueci, é isso. A única explicação plausível e…

— Direita, Barbara, puta que pariu! — Seu irmão mais novo grunhiu, fazendo com que ela virasse o volante de forma abrupta e quase atropelasse uma senhora que atravessava a rua. — Desculpe, ela ainda está pegando o jeito! — O moreno gritou pelo vidro aberto.

— Você disse a palavra ruim, tio Cedric. — Anthony apontou, com seus dedinhos inquietos demais e prontos para soltar o cinto de segurança. — Que feio…

Ai merda, mais essa agora. 

O que seria se, quando chegasse em casa, a vovó Andy fosse recebida com um “puta que pariu” vindo direto dos lábios do netinho querido? Vexame, vergonha e humilhação, sem sombra de dúvidas.

— Quietinho, Anthony. — Barbara pediu, ainda apertando firmemente o volante e sentindo seu coração pulando dentro do peito. As palmas das mãos estavam suadas e ela se questionava como não havia visto a velhinha atravessando a rua?

— Você quer matar a gente? — Cedric questionou, se virando para a irmã e esquecendo que era dever dele guiar o caminho. — Onde tá a sua cabeça? Eu só vim pra cá com você e o pestinha, porque você disse que iria pagar a conta de internet… — E assim o monólogo do moreno reiniciou. E enquanto Cedric listava porque ficar no castelo já era ruim, pior sem internet, Barbara se esforçava para achar a biblioteca pública. 

Ela só precisava de um livro, alguma orientação, registros históricos, certidão de cartório - qualquer coisa em realidade bastaria - e a única coisa disponível na internet sobre Leuchars era “Somos famosos por nosso golfe e pelo peixe” ou então “Queimamos a última bruxa escocesa aqui, em 1704”. Seria um tiro no escuro buscar por algo relacionado a Godric Brendan Goldhart, mas Black estava disposta a tentar - nem que isso lhe custasse mais algumas boas noites de sono.

* * *

Derrotada, total e completamente.

Foi assim que Barbara Black se sentiu ao retornar ao Castelo de Earlshall, mais tarde naquele mesmo dia - porque não existia absolutamente nada sobre um "Godric Goldhart" em ugar nenhum da cidade. Anthony ao menos parecia feliz com seu algodão doce na mão, dando gritinhos aos quatro ventos e murmurando o quão feliz seus novos amigos ficariam em ouvir suas aventuras de hoje - e a morena torcia muito para que os “amigos” de seu sobrinho fossem mais insetos em potes de vidro, do que outra coisa mais sombria.

— Voltamos! — Cedric disse assim que os três Blacks pisaram no hall de entrada da nova morada, mas como de costume, ninguém respondeu de volta. — Bom, depois dessa aventura nada pragmática e deveras desastrosa, humildemente retorno ao meu quarto, querida irmã mais velha. — E quando o moreno estava prestes a subir o primeiro degrau da escada, rumando ao segundo piso, ele parou e se voltou para Barbara. — Por favor, só me chama pra sair da caverna quando tiver tirado a carteira e não comprado, ok? Amo você!

Esse pirralho irritante!

Black bufou, cruzando os braços, já irritada por tudo que tinha acontecido mais cedo e agora ainda tinha essa, Cedric duvidando das suas capacidades automobilísticas. Era um ultraje! Barbara ainda conseguia se lembrar perfeitamente de seus dias na Auto Escola, principalmente das aulas tediosas dentro da sala, ouvindo o professor fazer sobre as noções básicas de um carro e…

— Você vai sair, tia Barbara? — Anthony a interrompeu, alguns resquícios de açúcar pontilhando sua boca, os dedos sujos de corante alimentício azul e aquele olhar no rosto, quase como se ele fosse o adulto aqui e não ela. — Sabe? Eu prometo ser bonzinho se você quiser ir conversar com Goldhart. — Ah claro, tinha que ser isso. — Ele é legal, eu juro, titia. Até me apresentou aos outros moradores da casa: o moço do banheiro, a senhorita que morreu sem casar e a outra que está enterrada perto do poço…

A raiva correr por cada veia da garota, enquanto ela ignorava o que o sobrinho estava falando e dava meia volta, saindo pela porta que mal acabara de entrar. O tipo de coisa que o desgraçado estava contando para o Anthony, além de não ser real - porque alguma parte dela ainda queria acreditar que tudo não passava de um surto psicótico em larga escala, depois da morte de Damon e Cassandra - acabariam com o psicológico do garoto um dia.

“Encontre-me na floresta”. Foi isso que o maldito fantasma disse, não é? Pois bem, era exatamente lá onde Barbara iria, de uma vez por todas.

* * *

Estava frio, deveras escuro, silencioso demais e Barbara queria se bater por ter vindo para o lado de fora, no meio das árvores de noite, sem sequer o celular para iluminar o caminho. O vento urrava de um lado para o outro, balançando as folhas das árvores e bem, a cada passo dado para frente, alguma coisa dentro dela se apertava mais e mais. Seu corpo inteiro estava arrepiado e isso não se devia apenas as baixas temperaturas.

É porque eu estou prestes a dar voz a minha loucura interna e fazendo exatamente o que não deveria, só porque um ser irritadiço com a própria morte me disse para fazer.

— Você disse que eu deveria encontrá-lo entre as árvore e bem, aqui estou. — Black soltou contra a escuridão que rodeava as árvores, apertando firmemente as mãos dentro do moletom que usava. 

       O tom dela era irritadiço porque Barbara estava irritada. Não era só o fantasma - embora esse fosse o causador de grande parte dos seus problemas - que a tirava do sério, era a morte de Cassandra, a mudança para as terras altas escocesas, a partida repentina de Damon, a falta de ação de Andrômeda, a irritável adolescência de Cedric e as notícias de Ashlin que nunca chegavam. Até mesmo sua tão adorada faculdade e sobrinho estavam deixando seus cabelos em pé.

A vida estava brincando com ela no pior momento e, por mais forte que Black fosse, estava cansada.

— Ou você aparece para resolvermos isso de uma vez por todas, ou eu vou voltar para o castelo e ignorá-lo pelo resto da minha vida, Godric. — Barbara murmurou, olhando de um lado para o outro e quando já estava quase desistindo de tudo, assumindo que estava sim ficando louca, sentiu uma respiração vindo de encontro a sua nuca, junto com uma risadinha baixa e enfim, obteve sua resposta.

— Já não era sem tempo, senhorita Black.


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Notas finais do capítulo

Eu juro que o segundo capítulo já está sendo escrito e bem, acho que em três semanas entrego alguma coisa por aqui. Me digam o que acharam, okey?
Até breve, pessoal.



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