Cactos & Girassóis escrita por Sali


Capítulo 4
Três




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Segunda-feira | 18 de Abril

Não fosse o colégio, Lena seria, definitivamente, uma pessoa mais bem-humorada. Ela não era sempre tímida, tinha senso de humor e, em outros círculos sociais, conseguia ser divertida sem esforço ─ por exemplo, nos treinos de muay thai e nas raras vezes que saía com Gabriela. Mas o colégio ainda estava lá. E o desânimo de aparecer lá todas as manhãs, de segunda a sexta, era o suficiente para escurecer um pouco sua positividade em relação à vida.

 No entanto, havia alguns dias em que o colégio parecia menos intragável. Nesses raros dias, em que a garota acordava com um ótimo humor, ela conseguia até acreditar que passaria uma manhã em paz, focando apenas as aulas, ignorando todo o resto e chegando em casa sem se afetar demais pelo que a cercava. E, felizmente, aquela segunda-feira parecia um desses dias.

Uma série de pequenos acontecimentos felizes pela manhã foi o suficiente, pelo menos, para que ela chegasse com um sorriso pequeno na sala, onde o professor de Química já se preparava para começar a aula.

Devido às conversas paralelas, ela conseguiu passar despercebida pelas fileiras até seu lugar habitual, no fundo da sala. E, antes mesmo de abrir a mochila ─ antes mesmo de se sentar ─ Helena não conseguiu deixar de reparar que Marina, a novata, não estava em uma cadeira ao lado de Isabella, Caio ou Letícia nem em nenhum lugar ao redor daquele grupo; na verdade, se sentara perto da parte de trás, meio deslocada ao lado do grupo de nerds arrogantes e atrás dos caras que só sabiam falar de futebol.

─ ─ ─

Helena teria mentido se dissesse que, ao longo da segunda-feira, não reparou mais em Marina. Por maiores que fossem suas desconfianças em relação a tudo e todos, e por mais que ela quisesse, realmente quisesse, se manter afastada de tantas pessoas quanto pudesse naquele colégio. Mesmo assim, entre as próprias anotações e brincando com a caneta entre os dedos, Lena viu que Marina parecia deslocada e meio entediada durante as aulas; viu também que, no intervalo, a mesa onde Isabella costumava ficar tinha apenas as pessoas habituais.

Porém, no fim da aula, quando Marina saiu rapidamente, como todas as outras pessoas, Helena preferiu deixar isso de lado. Jogou a mochila no ombro e se dirigiu para a biblioteca, onde teria paz o suficiente para estudar durante uma parte da tarde.

─ Ah, não… Não, que merda!

As primeiras coisas que Lena ouviu, assim que pisou no andar da biblioteca, foram uma série de xingamentos e o som metálico da porta de um dos escaninhos sendo repetidamente atingida. Ela até mesmo deu uma risadinha, divertindo-se com a irritação de algum aluno, até virar a esquina do corredor e ver Marina digladiando-se com um dos pequenos armários, bufando de frustração.

Se fosse qualquer outro dia, Helena passaria direto e a deixaria se virar com o escaninho. Mas, naquele dia, ninguém havia testado sua paciência até então, e, afinal, seria meio cruel deixá-la sem auxílio ali.

─ Você… precisa de ajuda?

Primeiro Marina se sobressaltou. Em seguida, abriu um sorriso com traços de alívio.

─ Ah, oi, Helena ─ ela manteve o sorriso pequeno e gentil nos lábios; algo surpreendente, levando em conta que ela passara quase uma semana convivendo de perto com Isabella e seus amigos e suas conversas. ─ Se não for te incomodar, seria bom… Eu fechei minhas coisas aqui e não consigo abrir esse armário.

Lena não sorriu, apenas relaxou a expressão muito fechada. Pediu licença para se aproximar e fez uma série de movimentos rápidos, o que a permitiu destravar a tranca sem muitas dificuldades.

Marina abriu um sorriso largo.

─ Eu sabia que tinha algum truque… Obrigada, Helena ─ ela riu baixo, aliviada, e puxou a mochila, para tirar alguns cadernos. ─ Ah… Isso me lembra que… Eu esqueci de entregar seu caderno. Desculpa, minha memória é péssima.

Lena encolheu os ombros. Tirou uma das mãos dos bolsos do moletom e pegou com ela o caderno que lhe foi entregue.

─ Sem problemas… E obrigada ─ ela meneou a cabeça e se afastou dos armários e de Marina.

As fileiras de escaninhos ocupavam o espaço anterior à entrada da biblioteca e tinham, ao lado, uma mesa de apoio. Lá, Helena tratou de separar alguns cadernos, das disciplinas que precisava estudar, e acabou por distrair-se em sua concentração, a ponto de esquecer presença de Marina e de se assustar quando ela surgiu ao seu lado.

─ Ei! Desculpa incomodar… de novo ─ a novata batucou os dedos na mesa. ─ Eu não quero abusar… e se for incômodo, pode me falar, que eu esqueço isso, mas… enfim, eu queria te perguntar se você pode me ajudar com algumas matérias. É que o jeito que você me explicou as coisas de Biologia na semana passada me ajudou muito, mas eu tô meio apertada com as outras também… Essa mudança toda no meio do bimestre acabou comigo.

Helena coçou a nuca. Havia uma voz, no fundo da sua cabeça, que lhe lembrava de manter seus instintos alerta, mas era quase um contraponto com o tom tímido e a expressão sincera no rosto de Marina. Talvez em qualquer outra situação, sua reação seria apenas desconversar e se afastar dali. Mas aquele dia já estava diferente desde o início, afinal de contas. Ela suspirou.

─ Olha… Eu também não sou essas coisas nessas matérias, mas se você quiser, posso te entregar os cadernos, te dar uma ideia do que os professores estão passando agora… ─ ela encolheu os ombros.

Marina abriu um sorriso tão largo que quase fez Lena sorrir também.

─ Tá ótimo. Perfeito, sério. Muito obrigada. Vai ajudar muito.

─ Então… ─ Helena hesitou e voltou a coçar a nuca. ─ Se quiser eu posso ir te emprestando os cadernos, ou… Eu vou ficar aqui até mais tarde hoje, então se você puder…

Marina sorriu outra vez, mas mais contida.

─ Não vai te atrapalhar? Porque se não for, vai me ajudar muito.

─ Não, é tranquilo ─ Lena encolheu os ombros e terminou de separar os cadernos. ─ Mas… ─ ela hesitou, com a bolsa numa mão, a meio caminho de ir para os escaninhos. ─ eu te aconselharia a não andar muito perto e tal. Imagino que você queira paz… e o povo da nossa sala não gosta muito de mim ─ completou e se virou para o pequeno armário, completamente de costas para Marina.

A jovem não respondeu. Encolheu os ombros sem que Helena visse e, com um de seus sorrisos pequenos, gentis, abraçou os cadernos, esperando por ela na entrada da biblioteca.

─ ─ ─

─ … e aí meus pais não gostaram muito de descobrir que a diretora estava desviando dinheiro do colégio. Principalmente porque a mensalidade era muito cara. Foi por isso que eu mudei de escola em abril ─ Marina concluiu sua história enquanto saía da biblioteca, ao lado de Helena, depois de passarem a tarde toda lá. ─ E, sim, eu sei que é meio estranho.

─ Eu não disse isso.

─ Mas eu sei que pensou ─ Marina sorriu levemente. ─ Eu também acharia, se não tivesse sido comigo. Ainda mais com tanta complicação, esses atrasos nas matérias…

─ Deve ser meio ruim.

A novata riu pelo nariz e confirmou com a cabeça.

─ E as pessoas na escola antiga eram mais legais.

Lena se retesou um pouco, tão discretamente que Marina não percebeu. Na hora, sentiu como se aquilo tivesse sido uma indireta.

─ Imagino…

Marina suspirou.

─ Sim. Aqui, pelo que eu percebi… ─ ela se interrompeu, olhando em volta e abaixando a voz. ─ As pessoas são meio… babacas? Não achei legal, pelo menos não algumas da nossa sala...

Ao ouvir isso, Helena se viu mais surpresa do que gostaria de admitir. Quase teve o impulso de concordar, mas parou no meio, lembrando-se das desagradáveis aventuras do primeiro ano. Riu baixo, pelo nariz.

─ É, eles não têm umas opiniões muito… legais.

Marina riu um pouco mais. Havia se soltado ao perceber que sua opinião era semelhante à de Lena.

Nada legais. ─ ela suspirou. ─ Enfim… Preciso ir agora. Obrigada, Helena… Você me ajudou muito hoje. E obrigada pelo caderno! ─ exclamou então, sorrindo. Haviam chegado à saída do colégio.

Lena meneou a cabeça, com um esboço de sorriso no canto dos lábios. Foi sua forma de despedir antes que as duas se separassem, deixando o colégio por caminhos diferentes.

─ ─ ─

Depois de uma série de abdominais, a testa de Helena estava pontilhada de gotas de suor, mas ela mal ofegava. Em segundos, levantou-se do colchonete, alongou o corpo e se dirigiu para outra parte da área de treinos.

─ Boa noite, gata.

Ela saltou ao sentir mãos desconhecidas em sua cintura, mas logo revirou os olhos e riu ao se virar e ver Gabriela atrás de si.

─ Boa noite, florzinha.

Gabi fez uma careta, prendendo os cabelos em um rabo de cavalo comprido. Depois, começou a alongar-se, esticando todo o corpo esguio.

─ Como foi seu dia? Novidades?

Helena encolheu os ombros e calçou as luvas, para começar uma sessão de sparring contra a amiga. Quando ergueu a cabeça, tinha um sorrisinho irônico nos lábios.

─ Duvido que você adivinhe quem eu ajudei a estudar hoje.

Gabi arregalou os olhos e deixou escapar uma risada alta.

─ Ah, não… Sério?

Lena fez que sim com a cabeça e contou, com palavras breves, o que acontecera para a amiga, que se mantinha com um sorriso animado no rosto.

─ Cada dia eu tenho mais certeza da minha teoria… 

Helena apenas revirou os olhos, o que fez Gabriela rir mais ainda. Ela se divertia irritando a amiga.

─ Ah, fala sério... Tenho cada dia mais certeza de que essa Marina tem um crush por você.

Lena fez uma careta.

─ Você tá doida.

Gabi riu mais uma vez.

─ Miga, ela tenta demais. Uma pessoa não tenta tanto assim se não estiver interessada.

Helena suspirou, virou os olhos outra vez e se posicionou frente a frente com Gabi no tatame.

─ Cara, eu não vou nem te responder.

A amiga deu uma risada divertida e também se posicionou.

─ Foca no sparring, então… Se não eu vou quebrar sua cara.

Elas riram, mas se encaravam desafiadoramente.

─ ─ ─

 Ao final da luta, Lena só conseguia encarar o teto, ofegante, deitada em um canto do tatame. Outras pessoas ainda treinavam, mas Gabi logo se sentou ao lado da amiga, com uma garrafinha na mão.

Depois de dois anos de amizade, as duas já haviam atingido um nível onde conversar nem sempre era necessário; apenas estarem próximas uma da outra já era suficiente, às vezes, para que se entendessem. Por isso, o silêncio se estabeleceu enquanto as duas mexiam em seus respectivos celulares, dando uma pequena pausa do treino.

─ Ah, não…

O murmúrio veio de Helena e foi tão súbito que fez Gabriela se preocupar.

─ Algum problema?

A garota, no entanto, ria baixo, meio incrédula.

─ Você não vai acreditar em quem me adicionou no Facebook… 

Gabi franziu a testa. E, em questão de segundos, arregalou os olhos e começou a rir.

─ Não! Jura?!

Lena ainda sorria e virou a tela do celular para a amiga, o perfil de Marina visível para as duas.

─ Você vai aceitar? ─ Gabi indagou e tomou o celular da mão da outra, para abrir a foto de perfil. ─ Nossa, ela é muito bonita…

Helena coçou a nuca.

─ Não sei… Não sei se quero dar esse tipo de acesso pras pessoas da sala.

Gabi torceu os lábios e suspirou. Passou um braço pelos ombros de Lena e manteve-se em silêncio por alguns instantes, apenas acariciando o braço da amiga.

Helena aceitou o carinho, mas fez uma careta.

─ Eu sou muito paranoica, não sou?

─ Não acho, Lena… ─ Gabi franziu a testa. ─ Se eu tivesse uma sala dessa… 

Helena riu baixo e tombou a cabeça no ombro de Gabriela, que apenas se dedicou a fazer carinho nos cabelos da amiga.


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