Raccoon: A Quarentena escrita por Goldfield


Capítulo 4
Nicholai




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Nicholai

Disparou a SIG uma terceira vez, e o corpo finalmente parou de se mexer.

Uma cena comum à Raccoon City infectada pelo T-Vírus, na qual os poucos membros remanescentes da polícia e do U.B.C.S. lutavam por suas vidas tentando parar as hordas de zumbis – qualquer um diria.

Isso se o homem derrubado por Nicholai não agarrasse suas calças até meio minuto atrás, gritando por socorro.

Tinha de se certificar quanto a abater os alvos sem danificar suas cabeças. Era sua estratégia própria para cumprir as ordens dadas pela Umbrella: não diferir a queima de arquivo de mortes que poderiam ser causadas pelos infectados. Os outros Supervisores tinham suas próprias táticas, talvez menos arriscadas; mas a si aquela era a que melhor funcionava... Ainda que trazendo o ônus de as vítimas demorarem a morrer.

Pedidos de misericórdia não eram algo que o comovesse, felizmente. E, ouvindo os grunhidos dos zumbis que atraíra até ali na passarela externa ao sobrado, além de suas batidas contra a porta, concluiu que mais uma cena de eliminação seria camuflada com sucesso.

A porta do depósito era mais resistente que o costume, o que significava ter alguns minutos a mais de exploração. Pretendia aproveitá-los.

O farmacêutico tinha um cofre no recinto, sem nenhum indício da combinação – apenas uma nota besta sobre sua "garota Aqua Cure" não deixá-lo na mão. Pelo modo como escrevera e o sujeito demonstrava ter ninguém em Raccoon, parecia o exato contrário...

Nicholai imaginou se poderia ser uma dica apontando a solução estar na farmácia – droga, as pessoas naquela cidade tinham um gosto peculiar por enigmas! – do outro lado da rua. A via já estava cheia demais de mortos-vivos para dar-se o trabalho, porém; e não imaginava o que o infeliz poderia guardar de tão valioso. Se fosse mesmo esperto, ele teria conseguido ocultar o segredo de descobrir as atividades escusas da Umbrella, ao invés de enviar uma carta e fotos ao R.P.D., justo a evidência que possuía...

O sujeito não fazia ideia, mas existia certo perigo em ser do ramo de medicamentos numa cidade controlada por uma gigante do ramo e envolvida, ao mesmo tempo, em todo tipo de experimento biológico proibido por leis internacionais. Carregamentos iam e vinham, até um simples engano sobre uma remessa de antigripal e uma visita não autorizada ao endereço que o enviara terminarem com o farmacêutico descobrindo sobre a natureza do "NEST 2", o laboratório secreto da Umbrella embaixo do Hospital Spencer Memorial. Depois de recorrer em vão à polícia – e ter suas valiosas provas confiscadas pelo chefe Irons, que gastava todas as propinas ganhas da Umbrella em arte dantesca ao prédio da delegacia – o coitado tentou os jornais, mas nisso a epidemia já começava e eles estavam ocupados demais cobrindo as mortes por toda Raccoon para lhe darem atenção.

Trancado no depósito de sua farmácia, ele tornou-se, sem saber, mais um nome na lista dos Supervisores. Talvez houvesse até suspeitado, mas preferiu a inércia, acreditando que a Umbrella não viria atrás de si com tudo que ocorria...

Bem, a empresa não planejava deixar pontas soltas. E isso incluía a própria cidade, em vias de ser dizimada assim que os executivos usassem sua conexão com o governo norte-americano para lançar um míssil nuclear. A "faxina" feita pelo U.B.C.S. – na ignorância da maioria de seus membros – acelerava o processo para que a destruição pudesse ocorrer sem a Umbrella correr riscos ou perder algo valioso que ainda permanecesse em Raccoon; Nicholai sendo um daqueles contribuindo a isso.

O russo olhou uma última vez para o cofre. Se o farmacêutico houvesse trancado uma cópia das provas nele, tudo seria desintegrado pelo fogo atômico. Não era o procedimento mais recomendado, mas havia muito mais que fazer pela cidade, e o tempo disponível diminuía. O miserável ao menos já tombara, incapaz de fugir e causar novos problemas.

Diferindo mais uma vez dos outros Supervisores, Nicholai tinha sua própria maneira de cumprir as ordens. Se alguém pudesse questionar seus métodos, com certeza não faria o mesmo com seu comprometimento.

Este era tanto, aliás, que somente o ambiente lotado de remédios estocados lembrou-o ser hora de mais uma dose – e já se atrasara alguns minutos. Levou os dedos a um bolso do colete, apanhou o pequeno frasco contendo o guarda-chuva vermelho e branco da Umbrella e, desrosqueando a tampa, despejou um comprimido à palma da mão revestida pela meia luva.

Gastando um minuto na reflexão sobre como sua sobrevivência estava atrelada a algo de aparência tão insignificante, e igualmente capaz de privá-lo de sua liberdade, Nicholai engoliu a cápsula, forçando a garganta a absorvê-la a seco como algo que queria enterrar no canto mais obscuro de sua alma.

O frasco voltou ao compartimento, e os olhos percorreram o depósito mais uma vez. Nenhum interesse restava ali, e o russo gastara bem menos tempo do que imaginara.

Os zumbis esmurravam o metal da porta que dava à rua com a agitação de quem se banquetearia num açougue. A realidade não podia ser mais desanimadora, seus cérebros podres ao menos contando com a vantagem de não criarem expectativas. Devorarem Nicholai além do farmacêutico seria um adicional, porém teriam de se contentar com o jantar que ele lhes preparara.

Com a pistola pronta no outro punho, o mercenário liberou a tranca e puxou a maçaneta de uma só vez.

Quatro sacos de pus e sangue tropeçaram para dentro do depósito, não chegando a cair; seus movimentos erráticos orientados pelo cheiro de carne fresca.

Conforme o russo planejara, toparam com o cadáver baleado no meio do caminho, abaixando e começando a mordê-lo. Ele não demoraria muito a se reerguer e sair à caça de mais vítimas com os demais – os ferimentos a bala, se percebidos, gerando a conclusão de que alguém tentara se defender do perigo iminente e não conseguira.

Somente um dos zumbis rejeitou o farmacêutico, ainda que depois de examiná-lo por um instante, e continuou seu caminhar trôpego na direção de Nicholai, braços esticados para agarrá-lo.

O mercenário não pretendia enganar-se quanto a aquele ser um raro caso de reação mais inteligente por parte de um infectado; do jeito que as coisas iam, mais admirável até que o intelecto dos membros do U.B.C.S. – da maioria deles, para ser justo. Fora somente o instinto da criatura que a fizera trocar o alvo para alguém menos competido, a anomalia de comportamento liquidada com um disparo certeiro da SIG de Nicholai em sua testa.

O zumbi caiu de costas sem que seus companheiros reanimados sequer erguessem as cabeças da ceia servida no chão do depósito.

O morto-vivo em questão, entretanto, não chamara a atenção do mercenário somente por sua ação distinta. Mesmo depois de caído, Nicholai ainda olhou-o por vários instantes, examinando seu colete e capacete de obras em tom amarelo-esverdeado, característico de quem trabalhava no setor de infraestrutura da cidade.

As lembranças trazidas por aquele traje geraram no russo a imediata necessidade de tomar ar, remetendo-lhe ao espaço mais abafado e claustrofóbico de sua vida – onde, no passado, coletes e capacetes como aqueles, estes últimos dotados de lanternas, também haviam se destacado.

Saiu pela porta dos fundos do depósito, levando ao beco também constituído por uma passarela. Dali poderia facilmente voltar ao metrô e reportar a Mikhail não ter encontrado civis prioritários à evacuação, com a maior das naturalidades...

Se seu passado não voltasse a atormentá-lo num nível que aquela cidade-sepultura jamais conseguiria.

Tentou renovar o oxigênio nos pulmões, mas o odor pútrido vindo dos arredores só aumentou-lhe o desconforto. Ofegante, debruçou-se num dos parapeitos da passagem, a mente realizando extraordinário trabalho mental para represar as recordações que fluíam sem controle por sua consciência...

1986. Nicholai, já ocupando o posto de tenente das Spetsnaz com apenas vinte e três anos de idade, tinha sua unidade operando no Afeganistão. A guerra não ia bem à União Soviética, mas o rapaz era elogiado – e sequencialmente condecorado – por seus esforços, mostrando-se exímio combatente e eficiente assassino durante missões secretas de caça a líderes guerrilheiros. A estrela do soldado prometia somente brilhar, ainda que a de seu país esvanecesse; a tendência desta passando a afetar a sua quando, em junho daquele ano, ele foi convocado às pressas à Ucrânia.

Usina nuclear Vladimir Ilyich Lênin, em Pripyat. O local que se tornou mundialmente conhecido como "Chernobyl".

Nicholai fora um dos seiscentos mil "Liquidadores", pessoas que arriscaram suas vidas para limpar a região depois que a explosão de um reator causou um dos maiores desastres da humanidade. Enquanto inúmeros soldados vindos do Afeganistão removiam vegetação ou eliminavam animais silvestres contaminados, ou outros cuidavam do transporte e eliminação do lixo radioativo, o tenente, dentre outros trabalhos, subira ao telhado do prédio do reator, removendo com uma pá os destroços de grafite de volta ao interior do núcleo – seguindo a regra de não poder ficar mais de um minuto no local, ou sofrer as consequências para sempre.

O governo soviético lhe garantira que se ater ao procedimento reduziria e muito os riscos, mas Nicholai nunca criara grandes esperanças. Antes mesmo de chegar a Pripyat, inúmeras histórias circulavam. Tomar parte no esforço em Chernobyl era uma espécie de condenação simultaneamente certa e incerta, os efeitos podendo vir a curto, médio ou longo prazo – alguns sortudos conseguindo avançar até os derradeiros anos de suas vidas sem problemas. Justamente arcar com tal custo era o que tornava o empenho de todos os envolvidos algo heroico; ainda que Nicholai jamais houvesse se atribuído tal adjetivo...

Ainda mais quando, três anos depois, foi diagnosticado com um câncer terminal.

Ao menos os políticos de seu país cumpriram a promessa de arcar com suas necessidades e, mais importante que a pensão de algumas centenas de rublos, forneceram-lhe o medicamento para frear o quanto possível o avanço da doença. Foram necessárias igualmente, no entanto, frequentes sessões de quimioterapia – o cabelo de Nicholai caindo para, ao voltar a nascer, adquirir o tom grisalho atípico a um soldado na casa dos trinta anos. Ao invés de disfarçar tal traço pintando os fios, o tenente resolveu adotá-lo como algo distintivo. "Raposa Prateada" fora o codinome, ainda nas Spetsnaz, que ele lhe proporcionara. E Nicholai ostentava-o com mais orgulho que sua medalha da Ordem de Lênin.

De nada valeram essa e outras distinções, todavia, quando a União Soviética se dissolveu em 1991. Junto com a dispensa de inúmeros quadros das forças armadas, viera a informação de que seu medicamento não seria mais suprido. O tenente fora abandonado para morrer; e isso teria mesmo acontecido se não fosse pela intercessão de seu velho amigo e colega de exército, o coronel Sergei Vladimir.

Também eliminado como uma carta fora de jogo pelo governo russo, Vladimir contara a Nicholai que uma grande multinacional farmacêutica estava interessada não só em suas habilidades militares, mas seu próprio material genético, para a organização de um setor de intervenção tática. E que eles sem dúvida poderiam lhe fornecer o remédio ao câncer, com a regularidade necessária, se também colocasse sua perícia à disposição...

Ainda apoiado ao parapeito, o russo não conteve uma risada. Vendera a alma à Umbrella a ponto de ser enviado a missões cada vez piores, culminando naquele desastre. Quem no U.B.C.S. possuía melhor histórico lidando com contaminações, afinal de contas? Já Vladimir conseguira criar carreira invejável na empresa e, além de posicionar as peças – incluindo Nicholai – no tabuleiro, tinha seu DNA como base aos Tyrants produzidos em massa como armas bio-orgânicas, incluindo o novo modelo que caçava os S.T.A.R.S. por Raccoon portando uma bazuca, por mais absurdo que aquilo soasse.

O chefão e o faxineiro... Assim as coisas são! – pensou consigo, finalmente seguindo seu trajeto pelo beco ao dar conta que as mazelas do passado poderiam, e deveriam, ser compensadas pelos projetos do presente.

A bonificação financeira em troca da higienização de Raccoon City prometia ser substancial. Ainda assim, não tão satisfatória ao se considerar que o esquema da Umbrella era sempre dividi-la entre todos os Supervisores; ou melhor, a quantidade deles que retornasse viva de uma missão.

Naquela em questão, Nicholai já dera os primeiros passos para ser o único. E os riscos envolvidos não importavam.

Ter uma vida em si condenada, passar os dias como se possuísse uma bomba-relógio presa ao corpo, era o ingrediente perfeito para fazer um homem perder o medo da morte – e ainda tinham a audácia de chamar aquele outro soldado da Umbrella, Hunk, de "Sr. Morte"; conhecido por superar Nicholai nas sessões de treinamento apenas pelo câncer não permitir ao russo competir no auge de seu físico. Disposto a encarar qualquer multidão de zumbis, experimentos sanguinários ou supersoldados, Nicholai colocava-se à prova tanto para cumprir os objetivos dados pela Umbrella, quanto evitar que outros mercenários encarregados das mesmas tarefas pudessem retornar consigo para reivindicá-las.

O objetivo? Acrescentar anos a mais à sua contagem regressiva, ao mesmo tempo em que deixava de ser um escravo da Umbrella. Bela conquista a um homem com mais nada a perder.

Dias antes daquela operação, fora contatado por uma organização misteriosa, supostamente rival de seus empregadores. Apresentaram-se apenas pela sigla "HCF". Eles detinham a fórmula da medicação destinada ao câncer de Nicholai, e prometiam-lhe uma perspectiva de carreira muito superior caso colaborasse tanto com sua experiência de combate quanto com seus conhecimentos internos sobre os atuais superiores. Tornar-se o Sergei Vladimir que jamais fora, em outras palavras.

Outro importante subordinado da Umbrella passara por uma crise similar à de Nicholai no passado, tendo debandado antes à "HCF". O russo podia apenas conjecturar quem era, embora tivesse boas suspeitas...

De todo modo, o pagamento por aquela missão lhe garantiria não só uma vida material extremamente confortável, mas os recursos requeridos para desaparecer – adotando nova identidade e paradeiro – até começar a colaborar com seus novos benfeitores. O receio em arriscar aquela precária existência por tal prêmio significaria privar-se da única versão de sua vida minimamente aceitável em comparação ao que Nicholai fora um dia: combatente de perícia destacada, nome em ascensão. Senhor de si.

Retornando à ruela onde se situava uma das entradas do Moon's Donuts, o mercenário abriu caminho rapidamente livrando-se de dois zumbis diante de si: um desmoronando após ter uma bala da SIG disparada contra sua orelha esquerda; o outro, mais esguio e ágil, logrando desviar de um primeiro tiro do oponente, somente para ter um dos joelhos partidos pelo segundo, vindo ao chão e acabando com a cabeça espatifada sob o coturno do russo, os fragmentos de ossos e miolos se desprendendo do calçado conforme ele recomeçava a andar.

Uma última missão... Não mais pela Mãe Rússia, nem pela Umbrella, Nicholai... – ele dizia a si próprio enquanto subia a escadaria rumo à rua que o levaria de volta à Estação Redstone.

Apenas por mim!


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Notas finais do capítulo

Comentário do autor: Espero que tenham gostado de mais este POV. Estão curtindo a desconstrução dos personagens? Comentem suas impressões, sentimentos, críticas, enfim... Fiquem à vontade!

Faltam mais dois. Até lá!



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