Artemis escrita por Camélia Bardon


Capítulo 14
012. Tudo que escolhemos manter


Notas iniciais do capítulo

Oi gente! Como vão vocês? Peço desculpas por não ter tido mais capítulos esse mês. Era minha pretensão mas esse mês foi cheio de altos e baixos: derrubei água no notebook, fiquei uns 3 dias esperando ele voltar à vida, tive umas crises lascadas de enxaqueca e tendinite... ou seja, tudo contribuindo para eu escrever o mínimo por dia para conseguir atualizar todas as histórias em andamento. Agradeço pelo carinho e paciência de sempre, vamos que vamos ♥



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/787122/chapter/14

Ao dormir, fui embalada pela lembrança doce do sol em minha pele. Tenho o palpite de que adormeci com um sorriso, mas tenho a certeza de que acordei com ele.

Caminhei contente ao bosque de faias pela manhã. Vim armada com minha blusa e água para que o sol não me desidratasse além do frio. Então, me sentei no mesmo ponto do dia anterior, aguardando a segunda aparição do sol.

───── ⋆⋅12⋅⋆ ────

Não tive mais nenhum incidente com Prince depois deste dia. Pelo contrário: por incrível que pareça, depois da minha demonstração de selvageria completamente alheia à tranquilidade quase religiosa de Sedona, Prince e eu passamos a ter uma relação de respeito mútuo. Não cutucávamos nossas onças internas com nenhuma vara – curta ou longa, vai saber? – e desde que continuasse assim estaríamos bem. Penso eu que, por ser muda, Prince pensou que automaticamente não diria nada. O problema, senhoras e senhores, é que eu era muda... E não surda.

Uma segunda opção também poderia ser que Prince não queria perder a posição que havia conseguido conquistar com largas braçadas com Kiera. Afinal de contas, os dois tinham gênios fortíssimos, a diferença era que Prince era petulante; Kiera, ousada. Prince queria expor seu ponto de vista a qualquer razão e circunstância; Kiera o fazia de maneira comedida, mas jamais se continha de expressá-la quando julgava necessária.

De certa, eu admirava a ambos. Prince poderia ter uma personalidade que não se afeiçoava à minha – e vice versa! Eu poderia ser insuportável aos seus olhos, quem o impediria de pensar de tal modo? –, porém ainda era um homem inteligente e talentoso que havia conquistado por seus méritos uma vaga entre os selecionados pela Orpheus. Portanto, queira ou não queira eu, ele era digno de meu respeito.

Enfim.

Após dois meses de estadia em Florença, Nora anunciou que Reid a chamara para outro encontro. “Casual”, disse ela, porém pelo brilho em seus olhos ao mencionar o fato foi suficiente para me fazer categorizá-lo com um adendo: “Casual, porém diferente do meu normal para casual”. Meu coração enchia-se de alegria em pensar que novos tempos estavam por vir, com todos os suspiros – literais e doces – que se tinha direito. Eu me contentava com ser a amiga solteira e observadora, desde que ela continuasse a me permitir estar à sombra de seus raios de sol de felicidade. Afinal, quem não gostava de estar na companhia de alguém feliz? Tinha mesmo de ser alguém pobre de espírito para tornar-se infeliz com a felicidade de outro.

Semana passada, visitamos San Gimignano. Foi naquela ocasião que Nora me comunicou o fato, porém o modo como me comunicou tinha seus tons de permissão:

— Não vai ficar chateada comigo? Não quero te deixar em casa sozinha. Você sabe, o voto de “amizade antes de homens”...

Exatamente. Não é o voto de “sempre as amigas e nunca os homens”. Vá em paz, raio de sol.

— Mesmo? — Nora riu com minha sentença.

Claro, eu chamo alguém para ver um filme comigo. Vai ser divertido.

— Pode chamar o Elio, ele vai ficar sem o Dr. Watson dele.

Pensei: “ou eu posso chamar a Mabel, Nora. Kiera, Sariyah... Temos muitas opções. Estou vendo o que quer fazer aí. Não vou morder a sua isca”.

Elio está mais para Capitão Hastings. Reid já tem a altura de Hercule Poirot, de qualquer modo, só lhe falta ficar careca.

Nora gargalhou, contendo-se apenas quando o rosto ficou vermelho carmim. Cobrindo a boca com as duas mãos, censurou o meu comentário apenas com uma negação de cabeça. Agora, enquanto acerta com uma tesoura sua franjinha que já começava a fugir do corte, seu sorriso enorme me faz ter a certeza de que tomei a decisão certa. O problema foi que ultimamente andei tão entretida com A amiga genial que acabei por me esquecer de convidar alguém para a noite de filmes. Oh-oh.

— Ficou bom, Di? — Nora pergunta, voltando-se para mim após bagunçar a franjinha de um jeito elegante. Seu cabelo cresce muito rápido, e o comprimento que antes estava acima do ombro já os alcança com facilidade. Faço um joinha para ela, e ela rodopia de maneira adorável com seu vestido em tons de azul bebê, coral e lilás. A parte de cima, com decote V e alcinhas, traz florezinhas bordadas. A parte de baixo é solta e leve, acentuando sua falta de busto e cintura marcada. Nora acertou em cheio no visual. — Ai, que maravilha. É bom que aquele calorão todo já esteja passando um pouco, né?

É... O ruim é que vai ser o período de chuvas, aqui parece que tem algumas enchentes...

— Ai, meu Deus — ela ri de nervoso, me olhando de esguelha.

É brincadeira. Nós moramos em prédios. E os canais são em Veneza, o rio Arno aqui não enche.

— Ah, que maravilha! Você é a melhor em acalmar as pessoas, Diana Davies.

Sorrio sozinha, arrumando um cacho rebelde que caiu em frente do rosto.

Não estou escrevendo um suspense à toa, minha querida. A época romântica já foi embora. Aliás, nem existiu.

Nora estreita os olhos para mim, apenas para revirá-los depois antes de me dar um beijo estalado na bochecha. Aceno para ela enquanto ela passa pela porta, e consigo sentir no ar a trilha de seu perfume de flor de cerejeira. Inspiro a fragrância e me espreguiço longamente antes de recuperar algum filme para assistir na sala de estar. Como o apartamento fica localizado na região mais “antiga” da cidade, não temos cabeamento moderno. Florença deixa Las Vegas no chinelo, nesse quesito. Portanto, uma vez que smart TVs ou mesmo televisões de tela plana são privilégios para poucos, a nossa televisão é quadrada à la anos 2000. E com um belíssimo aparelho de DVD para me satisfazer com minha sessão de filmes da Barbie.

Eu posso até estar sozinha, mas apenas fisicamente.

Depois de me presentear com uma bela pipoca amanteigada, deslizo o CD para dentro do aparelho e me sento confortavelmente no sofá. A Princesa e a Plebeia me cumprimenta com sua trilha sonora reconfortante, fazendo-me sorrir. Revejo as cenas tão familiares da minha infância como se fosse a primeira vez, e não posso evitar de dar um longo suspiro em respeito dos dias que já haviam passado.

Quando atingi a marca da primeira música, ouço batidas tímidas na porta. Penso que pode ser alguma das meninas – aliás, torço para isso. Nora não precisaria bater antes de entrar, de qualquer maneira. Também pode ser Annabella fazendo uma vistoria; ultimamente, ela parece refugiar-se em seus pupilos prodígios além dos universitários de nariz em pé. Porém, não se trata de nenhum de meus palpites. Quando abro a porta, me deparo com meu ítalo-americano favorito, trajado de uma melancolia que não combina com a primavera de Florença.

— Oi. Você, por algum acaso, teria comida? — Elio indaga, recostando-se no batente da porta. Parece estar a um passo do derretimento mental. — Eu pago, se for o caso.

Abro um pouco mais a porta, apontando minha pipoca com a cabeça. Elio exprime um “ah”, mas parece convencido. Apesar de tímido, entra no apartamento com olhares de curiosidade. Pergunto-me se as decorações são diferentes, afinal nunca visitei mais nenhum. Preciso me lembrar de fazer isso depois.

— Vendo filmes? — quando assinto com a cabeça, ele espia a sala com a cabeça. — O que é isso, desenho?

É Barbie — explico uma letra por vez. Tento sempre usar sentenças simples, uma vez que Elio não é fluente em linguagem de sinais como Nora. — Quer ver?

— Ah, Barbie? Ok. Nunca vi. Parece legal. Elas cantam? Adoro musicais.

E aí está o homem sem masculinidade frágil que eu pedi para ser entregue. O problema é que eu pedi nos sonhos, já esse aqui é bem real e bem fora do meu alcance. Ó, vida, nem para eu ter feito um macarrãozinho mais cedo?

Apesar do meu surto interno, confirmo com a cabeça para uma de suas perguntas ou todas; aí fica a encargo da interpretação alheia. Como já disse, não sou nenhuma princesa Ariel para ser muda e atraentemente misteriosa. Não, não, aqui funcionamos com um atributo de cada vez.

Deixo Elio à vontade, afofando as almofadas no sofá e servindo mais um copo de limonada. Elio parece faminto de tudo – comida, companhia, falta de forças pelo calor. A mim parece que a noite será longa, mas fico feliz de poder ser útil oferecendo animações antigas para ajudar uma alma aflita.

Retomo o filme desde o início para que Elio capte a medida certa do drama entre a princesa e a plebeia enquanto recupero meu bloquinho de notas. Tenho de estar pronta para tudo, afinal mulher prevenida vale por duas, não é o que dizem? Por incrível que pareça, Elio concentra-se na história com dedicação. Já não sei dizer se está realmente se divertindo com o desenho ou se está se apegando a isso como uma âncora de sanidade. De qualquer maneira, depois de notar que ele está piscando apenas esporadicamente, prefiro deixar a teoria de ambas às possibilidades em aberto.

Entre pipocas, ele até arrisca alguns comentários, tais como “oh, a princesa é uma nerd!”, “o gato late... A vida é mesmo intrigante”, “eu também daria um coice se fosse um cavalo e uma gata desse uma unhada na minha bunda”. O melhor de todos, na minha humilde opinião, é quando Elio ergue uma sobrancelha e entoa em um tom debochado: “Para quem na música com a amiga falou que nunca iria se apaixonar pelo rei, essa daí pagou com a língua”. Ao final do filme, seu sorriso de sempre já volta a dar ares de presença. Tenho vontade de segurá-lo no lugar com fita adesiva, para que não vá embora nunca mais.

— Obrigado pelo filme e pela pipoca... Vieram na hora certa — Elio sorri de lado. — Podemos fazer isso mais vezes.

Sim! Foi divertido.

Levantamo-nos juntos, e pela esbarrada que damos ao fazer isso rimos igualmente juntos. Elio ergue as mãos em defensiva, e eu reviro os olhos de brincadeira, cutucando sua barriga. Ele parece se lembrar da própria fome só agora, porque se muda para a cozinha comigo como se estivesse no piloto automático. Depois que eu sinalizo o pacote de spaghetti e os tomates na geladeira, Elio entende o recado e assume a faca para abrir o tomate e tirar suas sementes.

— Os pombinhos saíram de novo, não foi? — Elio ri baixo quando assinto com a cabeça. — Poderia ter me dito, aí a gente programava algo com antecedência.

Primeiro quebro o macarrão ao meio para depois responder:

Eu ia, mas esqueci. Fiquei ocupada lendo.

— Ah, está gostando do livro?

Já terminei. Ele é... — procuro alguma palavra que seja sinônimo para “instigante”, visto que quero que ele entenda sem o bloquinho. — Diferente.

— Não é? Tem algo nele que faz a gente querer continuar lendo. É quase como se a gente ficasse horrorizado, mas querendo saber o que acontece depois. O segundo livro é ainda mais intenso, acontece uns eventos que... — notando estar prestes a contar o enredo, Elio pigarreia de maneira cômica. — Quer saber? Eu te trago ele para ler e você tira suas próprias conclusões.

Ok. Obrigada.

— Não tem de quê, Lady Di!

Sorrio sozinha, me concentrando em encher o caldeirão com água. Água, óleo, sal. Pelo menos não estou sendo incumbida de fazer café, porque eu e aquela cafeteira já juramos uma à outra de morte. Depois de bater os tomates no liquidificador para o molho, Elio murmura:

— Assustei você, não foi...?

A mudança radical de assunto me faz olhar para Elio com curiosidade. É bem verdade que seu humor estava visivelmente transtornado quando havia chegado, porém não pensei que ele chegaria a tocar no assunto após ter lutado tanto para aparentar estar tudo sob controle.

Imagino eu que, em algumas horas específicas, as palavras sufoquem para serem destrancadas de suas jaulas...

Um pouco — opto por ser sincera.

— Sinto muito por isso. É que eu sou meio carente e dramático, às vezes. Nada fora do aceitável, prometo.

Sou uma boa ouvinte, sabia?

— Ah, não, essa é uma piada que eu me recuso a fazer.

Sorrio de maneira petulante. Não é autodepreciação se for você quem faz a piada.

— Você não me deixa escolha — Elio ri fraco, arrumando uma mecha de cabelo que caía em sua testa. Observo enquanto ele penteia o cabelo para trás com a ponta dos dedos longos e delgados, como os de um pianista. — Não vou mais assustá-la com os meus surtos de carência.

Daí, enquanto o macarrão cozinha, eu encosto-me à pia para ficarmos confortável. Elio me imita, assumindo o outro lado do mármore. Ainda sobrou limonada, então ele se serve de um copo antes de se abrir comigo. Tenho todo tempo do mundo, uma vez que Nora dificilmente dormirá aqui hoje.

— Estar aqui, em Florença, é bom e ruim ao mesmo tempo. Significa que estou numa terra calma, sozinho, com tempo para desenvolver meus hobbies. Mas, secretamente, eu estava torcendo para não ser convocado.

Franzo o cenho, intrigada com a escolha de palavras. Já Elio limpa a garganta e continua dizendo:

— Fanny diz que vem me visitar de Palermo. E, apesar de saber que tenho um fundo egoísta em pensar isso, sei que meus pais ficarão mais preocupados em saber como ela está do que em como foi o tempo para mim aqui em Florença. O problema não é a Fanny, ela é maravilhosa... O problema é que cada família tem o seu fracassado, e eu tenho muito medo de ter sido escolhido para ser o da minha.

A primeira coisa que me vem à cabeça é censurá-lo. Todos nós aqui, sem exceção, o achamos um ser maravilhoso. Porém, me encontro em suas palavras. Olhando para ele, respondo sua colocação com mais sinceridade do que pretendia.

Entendo como se sente.

— É? — Elio me olha de escanteio. Assinto com a cabeça, tomando um gole generoso de minha limonada. — Bem, eu... Não tiro a razão da Fanny por ter fugido para Palermo na primeira oportunidade. Ao invés de voltar para casa, estou pensando em ficar por aqui. Com o dinheiro que a Orpheus manda para cuidados, economizo a maior parte para poder pagar o aluguel de alguma coisa aqui enquanto não me estabeleço. De qualquer maneira, os vistos já vão estar bem, por conta da dupla nacionalidade... Sabe, Manhattan é muito grande para alguém comum assim. Não tem nada demais me esperando em casa.

Passo um braço ao redor do seu, puxando-o mais para perto. É assim que o abraço de lado, mostrando que estou ali para apoiar qualquer decisão que tome. Afinal, eu não havia feito o mesmo com Nora? Saído de Sedona fugindo da superproteção dos meus pais? Das comparações com Donna e a “má influência” de Nora? Como eu poderia julgá-lo?

— Vamos ver o que Fanny tem a dizer quando chegar, não é? — Elio ecoa seus pensamentos em voz alta, me inteirando. — Eu... Obrigado, Diana. Você é mesmo uma boa ouvinte.

Sorrio para ele, me soltando do “abraço” para poder me expressar melhor uma última vez.

Família a gente escolhe. Os parentes, não.

Elio aquiesce, meneando a cabeça para o macarrão. Desligo o fogão, apavorada, enquanto ele gargalha da desgraça alheia e acrescenta em um tom doce:

— Tem mais filmes aí para ver? Está cedo ainda, não acha?


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Ai, como eu amo esses dois *suspiro apaixonado* Fanny parece prometer no futuro, esperamos que ela traga a segunda versão da história do menino Elio, mas hoje já tivemos um adiantamento.
Até mais! ♥



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Artemis" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.