Bravado escrita por Camélia Bardon


Capítulo 3
Defeitos à flor da pele




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— E-Eu... estranho, como?

Adele bufou, impaciente. Nem se eu quisesse, conseguiria enrolá-la. Portanto, apenas umedeci os lábios, procurando uma resposta que ela fosse considerar suficiente.

— Sim. Tenho notado que ele anda um tanto... esquivo, estes tempos. No entanto, pode ser por qualquer motivo...

— É claro que pode. Mas sou da opinião de que é algo a ser investigado — enquanto isso, Adele já havia se levantado e agora andava pela lavanderia, de um lado para o outro. — Pense nisso como um livro policial, mas... em tempo real! Isso não é empolgante?

— Seria... se no momento não estivesse pensando em algo mais "ó céus, sangrarei até a morte numa casa enorme em Paris" ...

Adele gargalhou. Diferente de mim, que a voz parecia se repuxar para dentro, a dela era alta e firme. Tia Sienna costumava dizer que, se tivéssemos nascido numa monarquia, rei nenhum jamais ousaria dizer não se acaso ela fosse uma rainha. E eu, obviamente, concordava.

— Quem diria que um dia sua vida dependeria de um punhado de calêndulas, Alexander Banks?

— Ah, é um jeito ridículo de morrer — resolvi entrar na brincadeira. O que eu tinha a perder? — Um legista teria vergonha de escrever morto por uma tesoura de poda no obituário.

— Bem... por um rasgo de pele, sim. Agora, se a tesoura tivesse sido cravada diretamente no coração...

Não pude evitar de erguer uma sobrancelha para ela, ante o comentário. Quando notou o que havia dito, suas bochechas assumiram um tom rubro intenso.

— Perdoe-me. Estou sendo mórbida, novamente.

— Longe de mim criticar — sorri. — Sinta-se à vontade.

Mais confortável, Adele voltou a sentar-se. Me lembro de ter lido uma vez que as melhores pessoas eram aquelas que exibiam os defeitos à flor da pele. Assim, numa ocasião em que eles fossem necessários, já seriam bem-vindos. Sorri sozinho, notando que era um defensor fiel daquela afirmação.

Antes que pudesse acrescentar mais um comentário, Thomas retornou com as preciosas calêndulas pendendo do bolso do paletó. Pela correria, seu cabelo perfeitamente alinhado agora parecia um ninho de pardais. Suprimi um riso, porquanto que o meu era assim normalmente. Herança do meu pai. De qualquer maneira, Adele tomou a dianteira e recolheu as flores delicadamente do bolso, indicando o armário de produtos acima do tanque de lavar roupas.

— Thomas, querido. Faça-me um favor e encontre para mim um vidro cilíndrico de nome "fenol"? Da última vez que vi, estava aí.

Thomas assentiu com a cabeça, murmurando sozinho ao abrir o armário de produtos de limpeza. O cheiro forte de sabão invadiu nossas narinas, o que fez Adele franzir o nariz. Segurando meu braço, ela passou um polegar ao redor da ferida, observando-a minuciosamente. Tentei evitar que minha respiração ficasse pesada, no entanto a situação era delicada. Estendendo a outra mão para alcançar a torneira, Adele habilmente encheu um pote com água da torneira.

— Vai arder — ela sussurrou, logo soltando meu braço para segurar o pote. — Desculpe, Alex.

Dei de ombros e fechei os olhos enquanto ela passava a água ao redor para retirar a sujeira mais grossa. Mordi os lábios enquanto o ardor pinicava minha pele. Antes de abrir os olhos, um líquido gelado entrou em contato com o corte.

E aí, doeu.

— Minha nossa... — grunhi, piscando para conter as lágrimas. Tive a vaga noção de algo sendo enfiado junto ao ferimento. As flores! — Nunca mais caminho naquele jardim...

Adele e Thomas trocaram um riso nervoso, e aí sim consegui abrir os olhos para observar todo o processo de enfaixar e lavar tesouras ensanguentadas. Ambos olharam para o pano de enfaixe e para minha camisa suja, bem como o livro molhado.

— Eu acho... — começou Adele, com um tom convidativo. — Que seria uma ótima ideia passearmos na cidade hoje. Para clarear os ares e nos esquecermos do ocorrido. Não concorda, Alex?

Ah, é comigo?

Olhei de soslaio para seu rosto, que me indicava que eu não tinha outra resposta a não ser...

— C-claro. Claro que concordo. Quando partimos?

Thomas franziu a testa, como se pensasse e desde quando este ser aí gosta de passeios ao ar livre? No entanto, ao perceber que não estava convidado, pôs-se a recolher os itens que estavam fora do lugar. Quanto a mim, alternei o olhar entre a expressão aflita de Adele e minha atadura desleixada.

Seria uma tarde cheia...

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Após cambalearmos e nos escondermos em quase todo o perímetro da Casa Bretonne, conseguimos alcançar meu quarto e trocar de camiseta. A outra com sangue foi direto para as mãos de Adele – "eu sei exatamente o que fazer, não se preocupe" –, seguida de dobras cuidadosas para a atadura não aparecer sob o tecido. Pouco tempo depois, já descíamos a Rue Ramponeau de braços dados. Vários outros casais faziam o mesmo, e Adele acenava para a maioria dos transeuntes que passavam.

— Eu acho que poderia ter sido um pouco mais sutil em seu convite — comentei com ela, à medida que nos afastávamos da casa. — Nunca me chamou para sair antes, Thomas com certeza estranhou seu comportamento.

— Ou... ele poderia ter ficado apenas surpreso com minha iniciativa! Como uma boa ação para o bom e velho Alexander que nunca sai de casa, como o rato de biblioteca que é. No entanto, eu adoro sair, então é perfeitamente adequado ter solicitado a sua presença para acompanhante.

— Ei! —protestei, mas não resisti em rir. — Isso foi terrivelmente cruel.

— Eu sei. Não é adorável?

Ergui uma sobrancelha, revirando os olhos logo em seguida. Aquela mulher poderia muito bem ter uma aparência angelical, contudo poderia ser terrível quando quisesse. Acho que, se eu precisasse esconder um cadáver, a pessoa que solicitaria seria ela.

Descemos a rua com calma, até a Quartier Latin. Puxando minha manga com ânimo, ela apontou:

— Está vendo ali? É a universidade Sorbonne. Marie Curie cursou ali. E é lá que quero estudar. Farei Enfermagem e depois Medicina, então serei uma pioneira, como ela.

Sorri com o seu comentário, acompanhando-a até o banco mais próximo. Adele sempre sonhou alto. No entanto, como o mundo era mundo, observei-a encostar a cabeça e jogar os cachos negros para trás. Fechando os olhos, ela sorriu de escanteio, continuando o raciocínio:

— Quer dizer... depois que me casar. E meu marido me permitir estudar. Não é ridículo? — bufou ela, junto a uma risada irônica.

— Deveras... a-afinal, o esposo não estará com a esposa na universidade...

— Precisamente! Precisamente...

Surpresa com minha opinião afirmativa, Adele me olhou de soslaio. Entretanto, pelo seu pigarro, deduzi que talvez tivesse se arrependido de tê-la dividido comigo. Eu poderia até incentivá-la a continuar a conversa, mas algo no fundo de minha consciência dizia que era melhor deixar como estava.

— Então... por que viemos aqui? — perguntei, ocasionalmente.

— É claro. Eu... adoraria apresentá-lo ao Quartier Latin. O coche ficará aguardando, pois sabe que venho aqui com frequência. Fala latim, Alex?

Neguei com a cabeça, então ela se levantou e ofereceu o braço – para que eu a sustentasse, é claro. Tão rápido quanto nos sentamos, já estávamos nos levantando. Como bambeei no processo, Adele instantaneamente me conduziu até a boulangerie mais próxima. Enchendo minha mão com pão doce antes que pudesse sequer protestar, ela puxou uma cadeira na ruazinha de paralelepípedos.

— Perdoe-me a afobação. É que estou ansiosa por uma aventura há mais tempo do que consigo contar — confessou, rindo baixo.

— Já pode parar de pedir desculpas, Adele...

— Desculpe — em contrapartida, ela ergueu as mãos em defensiva. — Bem. Tenho uma sugestão de como podemos iniciar nossas pesquisas.

Ah, céus.

— Sou todo ouvidos.

— Agora que Thomas sabe que sou interessada na área botânica, mesmo para fins medicinais, poderia usar isso como álibi.

— Não precisa de um álibi para falar com o Tom — franzi a testa, encarando meu pão imerso em creme.

— Eu sei! Eu sei. Mas não concorda que seria um tanto estranho puxar qualquer tipo de assunto começando por "e então, Thomas querido. Vamos falar sobre o que esteve fazendo ultimamente em meu jardim"?

Acabei por rir de seu comentário, assentindo com a cabeça para indicar que continuasse.

— Então. Enquanto procuro saber o que ele fez enquanto esteve aqui, o senhor pode puxar assuntos relacionados à universidade, já que iniciará os estudos em Cambridge em breve — cada vez mais, seus olhos brilhavam de empolgação. Gesticulando para uma das copeiras, Adele pediu duas chávenas de "café italiano". Não entendi, mas prossegui ouvindo. — Coisas como onde encontrar determinado elemento, opiniões sobre medicamentos naturais...

— Pensou nisso em quanto tempo? — provoquei, com um sorriso ladino.

Como resposta, ela gargalhou, sendo obrigada a abafar o riso com as mãos.

— Não me aborreças, faça-me o favor, Alexander!

— De modo algum — também ri, porém com menos emoção.

— O senhor é cheio das gracinhas. Adoraria saber o que seus pais achariam se eu mencionasse seus comentários maldosos para uma moça indefesa.

Recostei-me na cadeira, suspirando dramaticamente. Com um horário perfeito, a copeira serviu os dois cafés, me fazendo lançar um olhar crítico às chávenas quase no automático. Sorri para ela em agradecimento, bem como Adele. Voltei ao dilema ocasionalmente:

— Isso, é claro, se não pensarem que fui eu o atormentado por uma moça dada a gracinhas maldosas.

— E é por isso que eu apostaria numa tesoura cravada num coração, e não num rasgo...

Ri com certa ironia, apontando com a cabeça para a xícara. — O que seria um café italiano?

— Se chama macchiato, na verdade. É café com leite, mas a graça é a espuma fervente. Deixa tudo mais cremoso. Experimente — convidou ela, com um sorriso.

Irresistível. Me fazendo de mal-humorado, analisando o conteúdo antes de erguer o braço bom para provar o tal café manchado. No entanto, ficou difícil de manter a pose quando parece que tem fogos de artifício em formato de cubos de açúcar explodindo no céu da minha boca.

— Eu sabia que ia gostar!

— Se soubesse que investigar meu irmão traria esse pedaço de céu, teria me candidatado há muito — gargalhei.

— Quer dizer então que aceita?

Assenti com a cabeça, dando mais uma mordida em meu pão doce. Adele me perscrutou com os olhos castanhos brilhantes, atenta a todas as minhas microexpressões. Penso que ela daria uma ótima psicóloga, também. Assim que terminei, estendi uma mão para ela. Como se uma faísca tivesse riscado seu olhar, ela abriu um sorriso maldoso e apertou-a.

— Então, temos um acordo. Pegue seu bloco de notas, Watson. O jogo acaba de começar.

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Claro que não pretendia investigar Thomas a fim de colocar à tona todos os seus segredos obscuros. Estávamos preocupados com suas atitudes nos últimos tempos, e éramos – aliás, pensávamos ser – seus melhores amigos. Se, baseado no princípio de que melhores amigos dividem segredos e ele estava fazendo o contrário... poderia ser algo sério. Poderíamos estar salvando o mundo dele, afinal.

Isso me lembrou de uma das histórias da mamãe que sempre era mencionada pela metade. Pelo que tínhamos entendido, ela apenas conheceu o papai porque sua curiosidade falou mais alto que seu bom-senso. Sempre pensávamos que era algo relacionado aos Chevalier, pela troca de olhares cúmplices entre ela e o tio Thierry.

De qualquer maneira, tivemos de passar o restante do dia guardando o segredo da minha ferida de batalha. Eu, ela e Thomas vez ou outra ríamos sozinhos, o que fazia os adultos se questionarem o porquê de estarmos parecendo cachorros arreganhando os dentes.

Ao final do dia seguinte, por incrível que pareça, me sobressaltei com Thomas entrando em nosso quarto com um embrulho na mão. Evan ainda não tinha retornado da jogatina noturna com Laurent, então estávamos a sós. Observei-o sentar-se na ponta da minha cama e oferecer o embrulho para mim.

— Para você... em desculpas pela tesoura — em seguida, ele riu fraco.

Não deu para evitar a curiosidade. Rasguei o embrulho, apenas para dar de cara com uma cópia de O Fantasma da Ópera. Arqueei as sobrancelhas, ao passo que ele sorriu, a vergonha estampada em seu olhar.

— Estou desculpado?

— Mas é claro. Livros são bons pagamentos!

Ambos rimos, no entanto... algo no fundo do meu subconsciente acabou falando mais alto.

Culpa. Culpa por todos os lados.

— Então... estamos quites.

Como poderia investigar meu irmão quando ele agia tão inocentemente?


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Notas finais do capítulo

Gente do céu, quase que esqueço de postar os capítulos de hoje KKKKKKKKK só pela misericórdia...

Sabe de nada, inocente. Será que é mesmo?
Adele é toda fofa, mas ô menina pra ser mórbida... ainda bem que o Alex não julga, já pensou?
Até mais, queridos ♥