Explore escrita por LC_Pena, Indignado Secreto de Natal


Capítulo 3
Capítulo 3 Entendendo


Notas iniciais do capítulo

Está vindo aos poucos, mas a fic está saindo. Três fisioterapeutas morreram ao ler o conteúdo desse capítulo, peço desculpas desde já.



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Eva desceu as escadas para o térreo do castelo, se apoiando precariamente no corrimão, porque não sobrava muita alternativa, seu joelho estava doendo e se forçasse muito, ele iria começar a falhar também. O que era absolutamente normal, segundo a enfermeira de Hogwarts.

O normal de alguns podia ser bem ridículo.

Chegou na cozinha, ouvindo alguns gritos infantis animados do lado de fora, para seu eterno alívio. Isso até dar de cara com um dos garotos, o russo, que estava abaixado pegando alguma coisa em um dos armários do fundo. Ele a encarou desconfiado quando se levantou.

—  Você é nova aqui, não é? Em que time você jogarr? — Ele perguntou sem modos. Eva o analisou com cuidado, antes de responder. O menino tinha olhos verdes familiares, então seria muita idiotice da sua parte não fazer a associação correta, agora que tinha mais evidências acumuladas:

Loiro, russo, com olhos verdes apertadinhos, cara marrenta, roubou seu casaco ontem e Lupe devolveu em seu nome e ainda por cima tinha essa aura de comando nata... Isso só podia significar uma coisa.

— Você é filho de Volkov, não é? — Eva falou enquanto esfregava a testa, tentando raciocinar melhor. Claro que o homem tinha um filho, ele era velho o suficiente para isso, a criança só não era a sua irmã de mais de 20 anos! O menino não confirmou sua suspeita. — Respondendo a sua pergunta, acabei de sair da escola e me machuquei, então não estou jogando em equipe alguma, mas a minha família joga nos Vagamundos de Wigtown, já ouviu falar?

— É o time favorrito de Kennilworthy Whisp. — O garoto respondeu com um sorriso encantado, porque, graças a Whisp e sua torcida pela equipe, a popularidade dos Vagamundos havia crescido bastante desde a publicação do seu clássico “Quadribol através dos séculos”. — Você vai jogarr no Vagamundis tombém?

Ok, ele era uma gracinha, quando não estava roubando ou perturbando garotinhas inocentes.

— Pretendo um dia. A propósito, meu nome é Evangeline Parkin, mas os narradores nos estádios da Liga irão me chamar de “Eva princesa unicórnio alado Parkin"! — Ela falou em um tom falsamente sonhador, que fez o menino rir.

— É um nome horrível! — Ele reclamou, então a garota colocou as mãos na cintura, em uma posição desafiadora. Gostava muito de provocar crianças, elas sempre respondiam tão bem!

— Ah é? E qual é o seu nome de jogador então, espertinho? — Eva perguntou em um tom de quem não achava que ele podia fazer melhor, logo o menino a encarou com o cenho franzido em concentração. Depois a olhou com sua superioridade tipicamente russa.

— Meu nome é Wolfgang Volkov e eu não prreciso de nome extrra, o meu já é perrfeito! — Falou com arrogância e Eva tinha que admitir, era um nome bem legal mesmo.

E confirmava seu palpite.

— Bem, Wolfgang, parece que todo mundo na sua família tem alguma coisa com lobo, não é? Vocês por acaso não teriam um ancestral lobisomem escondido por aí não, teriam? — Ela perguntou com uma curiosidade exagerada, como se o lobisomem pudesse estar até às dele agora mesmo, pretendendo que o menino lhe contasse mais detalhes de sua família.

— Poderria ter... A forrma animague de meu pápa é um lobo, enton podemos terr um lobisomem no clã, porr que non? — Ele falou com orgulho e Eva sorriu com deleite.

Então Volkov tinha uma forma animaga! Não à toa ficou debochando de sua falta de talento com a varinha, aparentemente ele era muito bom com feitiços em geral, bom o suficiente para fazer animagia, o que era ótimo, na verdade. Ele devia ter várias técnicas interessantes para ajudar em sua recuperação.

Uma das outras crianças chamou Wolfgang do lado de fora, que nem sequer deu um olhar de despedida em sua direção, partindo correndo, do jeito que meninos saudáveis de menos de 10 anos sentiam necessidade de fazer.

Eva continuou parada onde estava, meio apoiada na grande mesa de madeira que ocupava uma boa área na cozinha em formato medieval. Havia panelas de aço escovado penduradas junto ao fogão à lenha e um paninho colorido no convencional, algumas ervas secas penduradas em lugares estratégicos, uma foto trouxa de Lupe e Wolfgang no que deveria ser uma quermesse ou parque de diversões e...

— O que está fazendo aqui parada, olhando para o nada? — Lupe, essa sim surgida do nada, assustou Eva de um jeito que a deixou com taquicardia.

— De onde você veio, criatura? — A corvinal falou, colocando a mão no coração. Lupe a olhou sem entender o susto da outra.

— Vim dos calabouços, claro. — A garota loira explicou com simplicidade, depois apontou para umas escadas que definitivamente não estavam ali mais cedo. — Lá embaixo.

— Isso não estava aí antes. — Eva falou em um tom acusatório, fazendo Lupe rir com diversão.

— Não mesmo, acabei de construir com minhas próprias mãos! Você quer dar uma olhadinha na minha obra prima? — A galesa provocou, recebendo um revirar de olhos da garota mais nova.

— Olha, Lupe, você nem devia estar aqui fazendo essas gracinhas comigo, não depois de ter literalmente me jogado na boca do lobo! — Eva falou com dramaticidade, jogando as mãos para cima.

— Literalmente?

— É um modo de dizer, Lupe! Como pôde não me contar todos os detalhes da lista, me fazendo parecer uma estúpida na frente do seu irmão? — A corvinal reclamou chateada, mas Lupe ainda a encarava com as sobrancelhas levemente franzidas.

— Como algo pode ser literal e um modo de dizer ao mesmo tempo, Eva? — A galesa perguntou com uma dúvida sincera colorindo o tom de voz. Eva respirou fundo, porque esses Volkovs...

— Isso não vem ao caso, Lupe! Eu estou falando de coisas mais importantes aqui! Por que você não me explicou tudo direitinho quando eu te perguntei sobre a lista? — A corvinal repetiu a demanda por uma desculpa, mas a moça só deu de ombros, indo até o armário perto da porta para pegar alguma coisa.

— Wulfric me pediu para só responder perguntas específicas, mas se te consola, você não é a primeira pessoa com quem ele faz isso. Meu irmão gosta de ensinar lições que vão além do Quadribol. — A loira sardenta respondeu contente, depois de achar um pacote com um pó alaranjado. — Isso, sal de cura, perfeito! Estou fazendo alguns embutidos lá embaixo, você quer ver?

— Não, eu não... Ok, eu quero! Mas isso não quer dizer que eu deixei de estar chateada com você, senhorita Volkov! — Eva apontou para a garota, que já voltava para as escadas de onde havia saído, com bom humor.

— Posso viver com isso. Mas e agora? O que você e Wulfric decidiram para o resto do treinamento? — Lupe perguntou enquanto descia a escada de degraus apertados, bem típico de construções antigas. Eva se xingou por ter topado a aventura, pois agora estava tendo que tatear a parede para manter o equilíbrio, seguindo a loira pelo caminho estreito.

— Bem, não deu tempo de decidir nada, porque eu ameacei esquartejá-lo e saí andando do escritório dele o mais rápido que pude. — A bruxa informou orgulhosa, fazendo Lupe lhe olhar do degrau mais baixo com uma sobrancelha levantada.

— Você faz bastante isso. — Ela falou com um tom de constatação óbvia, que fez a garota escocesa de Wigtown a encarar confusa.

— E o que supostamente isso quer dizer? — Não queria deixar transparecer que tinha ficado ofendida com o que quer que Lupe tivesse sugerido, mas Eva não pôde evitar o tom indignado.

— Que você se irrita com Wulfric, saí batendo o pé no chão e enrola ainda mais a sua situação com ele. Você nem sequer sabe o que vai fazer agora pela tarde, isso porque deviam estar tentando ganhar tempo...

— Olha, Lupe, a sua sensatez tardia está me dando nos nervos! Você devia ter pensado nisso antes de contribuir com os imbróglios de seu irmão! — A corvinal falou irritada, mas agradecida por ter chegado ao final da escada sem despencar lá de cima. — Você me traiu!

— Isso não faz o menor sentido, como eu posso ter te traído? Eu conheço Wulfric há mais de dez anos, enquanto você eu conheci literalmente ontem. Viu o que eu fiz? Usei a palavra do jeito correto, enfim, não posso me meter nos assuntos do trabalho dele, essa é a nossa regra de ouro! — A garota loira falou com uma das mãos com os dedos cruzados e a que segurava o tal sal de cura ia por cima do peito esquerdo, em sinal de juramento.

Assim que Eva revirou os olhos, Lupe falou algo em russo e duas criaturinhas se materializaram do faixo de luz produzido pelo grande candelabro na área principal do que deveria ser o antigo calabouço do castelo. Sumiram tão rápido, correndo pelo lugar, que a corvinal nem pôde dar uma boa olhada nelas.

Mas em compensação estudou com cuidado o ambiente em que se encontrava: haviam pequenas portas, provavelmente de celas mantidas em sua conformação original, mas a maior parte havia sido aberta para dar lugar a um espaço amplo, que tinha a extensão equivalente aos andares superiores, só que coberto de estantes com algumas rodas de queijo, embutidos, potes de conservas e geleias.

Era como um mini empório gastronômico em uma alcova de teto baixo – Volkov devia ficar com dor nas costas quando permanecia muito tempo ali – comandada pelas criaturas peludas e rápidas que Lupe não parecia dar muita atenção.

— O que é tudo isso? — Eva fez um gesto amplo, que englobava todo o ambiente, então se deteve em uma das criaturas que passava perto de onde Lupe estava parada, olhando orgulhosa para sua “obra prima". — E o que são essas coisinhas?

— Essa é a minha oficina de comidas ao redor do continente. Você vê? Eu tenho vários tipos de queijo de ovelha, de vaca e até de búfala! Com ervas, sem ervas, alguns mofados e outros curados, um mais gostoso que o outro. — Lupe falou animada, depois correu para pegar uma bandeja, onde tinha algumas fatias já cortadas. — Aqui, prove! Essa é uma receita nova que comecei lá em Moscou, mas a maturação está terminando aqui. Estava fazendo o primeiro teste gustativo.

— Seu irmão disse que eu não devia comer leite... — Eva falou, colocando uma fatia na boca, aceitando também uma taça de vinho branco que a galesa lhe entregou. — Obrigada. Isso aqui está delicioso, Lupe!

— Não está? Comecei a fazer esse de leite de vaca e um pouco mais do de ovelha, porque Samuel precisava achar um comprador para seu leite! O pobrezinho perdeu o posto de fornecedor da vila para um fazendeiro novo, que conseguiu cobrir o preço dele. — Lupe contou triste, mas depois se animou e começou a falar algo para a dupla de seres sencientes, que a corvinal não conseguiu identificar de que espécie eram. — Enfim, pedi para Astrid pegar um dos embutidos que já está no ponto ideal e Bum foi terminar de salgar a coppa. Já comeu coppa?

— Já comi, minha família é de açougueiros, esqueceu? Embora a gente não produza embutidos italianos. — Eva falou enquanto continuava a comer o queijo e bebericava o vinho, que era fresco e frutado. — Mas, que fique bem claro, adoraria comer a sua versão.

Iria parar de comer apenas quando Lupe parasse de lhe oferecer comida, era o educado a se fazer.

A moça sorriu feliz para ela, porque eram poucas as pessoas para quem podia pedir uma opinião sincera sobre o assunto. Astrid lhe entregou uma das peças prontas, então, com uma faca afiada, Lupe cortou fatias finas do embutido de carne de porco marinado em vinho italiano e maturado por meses na temperatura adequada.

Eva aceitou feliz e assim que terminou de saborear a primeira fatia, demonstrando toda a sua aprovação, apontou novamente para a criaturinha servil que tinha perto de si agora e a quem podia observar com detalhes.

— O que são essas coisas, Lupe? Você ainda não me disse. — Falou de boca cheia, aceitando mais uma fatia da carne gostosa.

— Bem, não sei exatamente o que são, Wolfgang aposta que são mini iétis, mas a única coisa que sabemos mesmo é que algum ancestral nosso salvou a vida de um deles ou de toda uma tribo, depende da quantidade de vodka no sistema de quem está contando e agora há um deles para cada um de nós.

— Já perguntou ao seu irmão sobre a lenda? — Eva questionou curiosa, porque Wulfric era o mais velho deles, devia saber mais. A pergunta arrancou um riso pelo nariz da outra garota.

— Mas é ele mesmo quem muda a história de acordo com o quanto bebeu! — Ela respondeu divertida, fazendo a corvinal a encarar surpresa. Lupe sorriu com mais carinho dessa vez. — A verdade é que nenhum de nós teve acesso a muito de nosso passado. Wulfric soube mais, mas mesmo ele só ouviu a história até os 9 anos, época em que você não se atém muito aos detalhes, sabe?

— O pai de vocês morreu cedo, então? — Eva tentava fazer as contas na cabeça. A diferença de idade entre os irmãos era apenas de 9 anos? Não podia estar certo, talvez o homem houvesse falecido quando Lupe era um bebê de colo, mas tinha a sensação de que estava deixando passar algo.

— Não sei ao certo... Talvez, se você levar em conta o quanto um bruxo pode viver. — A galesa deu de ombros, pouco disposta a falar algo mais. Eva franziu o cenho para o tom de descaso, tentando pescar de sua memória algo que Lupe tinha dito anteriormente.

— Espera... Você disse quando chegamos aqui que conhece Wulfric há 10 anos! Por que as contas de sua família não batem? — A apanhadora questionou inquieta, principalmente porque a expressão de Lupe se tornou triste. — Vocês não deveriam se conhecer há pelo menos 20 anos?

— Nosso pai... Ele não tem um bom histórico de... Ficar. Ele abandonou Wulfric aos 9 anos e a minha vez chegou aos 4 anos, em países diferentes. Só nos encontramos quando eu tinha 12 anos e ele 26. — Ela informou com um sorriso nostálgico. — Precisava vê-lo naquela época: era tão famoso e rico, ainda jogava pelos Gaviões de Heidelberg, sabe? Wulfric parecia que estava sempre falando em russo com palavras em inglês e não deixava você completar uma frase sequer, era bem engraçado, na verdade.

— Ao menos essa última parte ele melhorou... — Eva apontou, enquanto tentava formar a figura desse homem 10 anos mais novo na sua mente. — Então ele jogou na Alemanha?

— Sim, depois voltou para a Rússia, acho que porque queria construir uma família com Alenka em sua terra natal. — Lupe deu de ombros, depois esclareceu melhor as coisas. — Alenka é a mãe de Wolfgang.

— Sim, claro, imaginei que fosse. — Eva falou pigarreando de leve, terminado de tomar seu vinho. Aquilo era estranho, porque, de alguma forma, embora sempre tivesse cogitado a possibilidade de Wulfric ser pai, primeiro de Lupe, depois de Wolfgang, nunca tinha dado dois segundos de atenção para quem seria a mãe da criança.

Talvez estivesse levando a alcunha de lobo solitário muito a sério.

— Que bobagem a minha! Eu aqui falando um monte de tolices, enquanto tudo que você queria saber era sobre os nossos guardiões! — Lupe falou com um sorriso constrangido, então disse mais algumas palavras em russo para suas criaturinhas. Ambas se enfileiraram ao seu lado. — Essa é Astrid e esse é Bum, Astrid acompanha Wulfric desde sempre e Bum é o meu guardião desde que nasci. Temos ainda Koschei, que é o de Wolfgang, mas ele está em Moscou, com Alenka. Eles surgem toda vez que nasce um Volkov novo, é bem estranho, na verdade.

— Bem, é estranho mesmo, mas... Só servem aos Volkov? Então isso quer dizer que Alenka ainda é... — Eva não quis completar a pergunta para não parecer tão interessada no assunto, mas a deixou subentendida.

— Uma Volkov? Não, mas Wolfgang é protetor, gosta que Koschei proteja a mãe em sua ausência e não é como se ele precisasse de ajuda, tendo os nossos aqui. — Lupe falou dando de ombros, como se fosse a coisa mais comum do mundo ter protetores.

Eva curvou as costas para avaliar os guardiões dos Volkov de perto. As duas criaturinhas tinham olhos de um azul profundo, mas suas caras pareciam de amassos, cobertas de pelos compridos, um cinza chumbo e outro claro, quase branco. Não usavam roupas, mas não precisavam, não dava apara ver nada com uma pelagem tão espessa.

Bum, o escuro e Astrid, a clara, a olhavam com ansiedade, cruzando e descruzado os dedinhos, com nervosismo. As mãos, ao contrário do resto do corpo, não tinham pelos da ponta dos dedos até os pulsos, como se tivessem os raspados para trabalhar melhor. Provavelmente não era o caso, mas dava um aspecto engraçado aos dois.

— Prazer em conhecê-los, Astrid e Bum. Espero que tenham percebido que tenho a melhor das intenções com os Volkov, então não precisam me vigiar a noite! — Eva falou brincando apenas em parte, porque sabia bem o quanto algumas criaturas mágicas podiam ser territorialistas e super protetoras com seus donos. Lupe riu de seu cuidado.

— Eles não são esse tipo de protetores, Eva! Se tiver um ataque aqui no castelo, vão ser os primeiros a correr para debaixo das camas. — A galesa continuou rindo, mas passou as mãos carinhosamente no topo da cabeça dos dois bichinhos. Falou algo em russo, que fez os dois sumirem para onde quer que estivessem trabalhando antes. — Bem, agora que foi devidamente apresentada a todos os membros da família, o que pretende fazer com sua tarde?

— Hum... Não sei, talvez você pudesse me falar mais sobre a carreira de seu irmão, quem sabe? Vamos começar com a posição em que ele jogou! — Eva bateu palmas animada, porque era bom saber com quem estava lidando, não é?

— Sério que você não sabe isso? Normalmente as pessoas procuram a ajuda de Wulfric porque sabem muito bem quem ele é. — Lupe falou com o cenho franzido, depois deu de ombros, divertida. — Mas é claro que você faria o oposto disso, não é? Então tá... Deixa-me ver... Wulfric era batedor e jogou na liga russa, depois na alemã, depois na russa de novo, quando finalmente se aposentou.

— E quando foi isso? — Eva perguntou enquanto juntava uma fatia de queijo com outra de coppa, porque já que estavam ali, cortados, não iria desperdiçar os produtos, não é? Se encostou na mesa de trabalho de Lupe.

— Foi há uns cinco, seis anos atrás... Ele tinha 28 anos. — Lupe respondeu solicita, então Eva lhe deu um aceno de cabeça distraído.

— Muito novo para um jogador... Ele se contundiu? — Perguntou de pronto, pegando Lupe de surpresa, ela estava avaliando a coloração do marmoreio de gordura da sua coppa recém-aberta.

— Wulfric? Não, na verdade ele se cansou de jogar, eu acho. — A moça loira falou displicente, fazendo Eva quase se engasgar com o pedaço de comida que tinha acabado de engolir. Precisou de um tempo para se recompor.

— Se cansou de jogar Quadribol?!?!

— Hum... Eu não sei bem. Acho que ele se cansou do burburinho, da mídia e essas coisas. Wulfric ainda gosta de jogar e sempre acompanha o campeonato russo quando estamos em casa, então...

— Ok, ok, faz sentido, não muito, mas meio que combina com seu irmão largar tudo porque estava cansado do assédio e da fama... — Eva falou tentando juntar melhor os fatos à linha do tempo que tinha na sua cabeça. Por que era tão ignorante acerca das outras ligas de Quadribol? Não sabia quase nada dos times russos e alemães! — Espera, você disse casa? A Rússia é a casa de vocês?

— Bem, durante o inverno e a primavera e até mesmo em parte do outono, quando Wulfric não fica preso aqui com suas pesquisas. A gente só vem para Gales no final da primavera, para passar o verão. — Lupe falou com carinho, olhando para a casa como se esta fosse uma pessoa querida, que visitassem de tempos em tempos.

Eva olhou para o ambiente também, porque, por mais estranho que o castelo fosse, a primeira impressão que tivera é que ali era o lar dos Volkov. Era boa adivinhando um pouco da personalidade das pessoas pelas suas casas, mas se aquela não era a deles...

— Lupe, como é a casa de vocês em Moscou? Você tem um lugar como esse lá? — A corvinal resolveu que seria bom mudar de abordagem, porque iria tentar entrar em terrenos mais íntimos, então era melhor que fizesse isso demonstrando interesse por Lupe e não pelo seu irmão estranho.

— Não, mas venho aqui de vez em quando ou mando Bum dar uma olhada nas coisas. Na verdade, eu comecei a produzir queijo no verão passado e os embutidos no anterior, então ainda estou me adaptando a vida de fabricante rural. — Ela riu do próprio título, fazendo Eva sorrir gentilmente como resposta.

— E o que faz quando está na Rússia? — Dessa vez Eva perguntou curiosa de verdade, afinal, a imagem que tinha de Lupe era de uma garota do interior, simples e rural, mas se ela passava a maior parte do tempo em Moscou, a capital do país, talvez ela fosse algo mais do que isso.

— Basicamente eu leio. Às vezes saio para fazer algumas compras e... Nós temos bons parques e cafés na Rússia, sabe? Eu adoro passear por eles no início da manhã, quando a vida noturna se encontra com a matutina. — Ela falou com um sorriso contente, brincando com uma mecha do cabelo entre os dedos. — Às vezes vejo um grupo de jovens ainda bebendo, fumando e rindo, se encontrando com um corredor e seu cachorro no meio das trilhas. É interessante...

— E quanto a festas? Shows? Encontro com o pessoal diferente e alternativo da Rússia? Ouvi dizer que todos adoram beber vodka pura, é verdade? — Eva perguntou como uma intrometida, mas na verdade estava incomodada com a descrição da vida de Lupe, porque aquilo parecia... Tranquilo demais, para seus padrões. — Você vai aos jogos com Wulfric?

— Às vezes...  A gente prefere assistir pessoalmente aos jogos da segunda divisão. A torcida é mais barulhenta e até mesmo grosseira, mas é divertido. Wolfgang gosta de atirar comida nos rivais na ala ao lado. — Dessa vez Lupe falou com uma expressão travessa, deixando entrever que não era só o sobrinho que gostava de aprontar com os rivais. Provavelmente ela e até mesmo Wulfric entrassem no clima de baderna de um estádio mais simples e com menos etiqueta.

Eva sabia tudo sobre normas e etiquetas não ditas da elite do Quadribol.

— E quanto a... — Deixou sua pergunta morrer na metade, ao sentir um arranhão na parte interna do seu antebraço. Puxou a manga do moletom que estava usando, para encontrar uma palavra escrita sobre a pele: torreão. — Lupe, por acaso esse castelo tem algum torreão?

— Wulfric fez o feitiço irritante na pele, não foi? Desaparece em alguns minutos, mas eu acho tão invasivo... Da vontade de escrever algo na testa dele! — Lupe disse com um surto de rebeldia, depois sorriu tímida, como se não devesse cogitar fazer tal coisa. — O torreão fica subindo as escadas no final do corredor, do lado oposto ao escritório dele. Vai subir as escadas, daí vai encontrar a porta dos aposentos de Wulfric, então você sobe mais e mais e mais, até se cansar. O torreão fica no final de tudo.

— Devo entender que é bem no alto? — Eva perguntou com sarcasmo e Lupe a olhou com diversão.

— Wulfric gosta de ser dramático às vezes, o torreão combina perfeitamente com ele. — A loira respondeu travessa, dando uma piscadinha para a outra garota.

— Claro que combina.

***

Não, aquilo não ia dar certo!

Se toda vez que o preparador físico quisesse falar com ela fora de seu escritório, Eva fosse forçada a subir todos aqueles lances de escada, ela não teria joelho suficiente para encarar o restante dos treinos!

Ou melhor, o restante da sua vida!

Chegou exausta no final da torre da princesa prisioneira, porque, pelas paredes circulares iguais as da torre de astronomia de Hogwarts e os degraus apertados, aquilo devia ser um grande apêndice desnecessário do castelo.

— Você, por um acaso, enfeitiçou a torre para não ser visível pelo lado de fora? — A garota falou em um lamento, se apoiando na primeira bancada que viu ao entrar no cômodo espaçoso. Não lembrava de ter visto essa parte da construção quando viu o castelo de longe.

— Não foi por acaso. — Essa foi toda a resposta que o senhor “Lobo não tão solitário assim" deu, ainda de costas para a porta e sua visitante.

— Claro que não... Volkov, olha, eu não sei nem por onde começar! Tá, vou começar pelo seu feitiço estúpido arranhando meu braço e então esses lances de escadas todo... Você esqueceu que meu joelho está machucado? — Esse final saiu em um quase chorinho dramático, de quem tinha atingido o seu limite naquele dia.

— Sinto muito pelas escadas, mas você não precisava tê-las subido, tem permissão para aparatar pela casa. — Ele disse sem parecer sentir absolutamente nada.

— Tenho medo de me estrunchar. — Eva falou emburrada, arrastando uma cadeira de pernas magrelas para se sentar. Se era para ter uma conversa chata, que ao menos fosse sentada.

Nenhum dos dois disse nada por um tempo, Eva porque não fazia ideia do que estava fazendo naquela sala estranha e clara, que com certeza havia sido ampliada magicamente e Wulfric apenas porque ficava bastante confortável com o silêncio.

Depois de mais alguns minutos de observação de todos os armários com instrumentos estranhos, maca, bolas gigantes, esqueletos e diagramas de parte de corpos e até mesmo uma ou outra parte real de corpos dentro de vidros com líquidos nojentos – meu Merlin, o homem podia ser um assassino em série! – Eva resolveu quebrar o silêncio.

— Então esse é o seu consultório? Achei que só medibruxos e curandeiros tivessem consultórios, sabe? Não me lembro de ver os preparadores dos Vagamundos terem um lugar como esse... Para que serve ess-

— Pode transfigurar sua calça em um short ou em uma saia, por favor, senhorita Parkin? — Foi uma pergunta, mas no tom de Volkov havia soado como uma ordem.

— Por quê?

— Porque quero testar um procedimento em seu joelho, a calça pode atrapalhar. — Ele explicou de costas, ainda mexendo em algum objeto misterioso, que bem poderia ser o cutelo que usaria para arrancar fora seu pescoço. Pena que o ambiente era tão claro, porque não ajudava em nada no clima de terror que seu cérebro se recusava a pintar.

A garota não tinha com o que contrariar a ordem, então pegou sua varinha no bolso e fez o que foi pedido. Transfigurou a calça em um short de moletom, que deixava o joelho e uma grande parte da coxa a mostra. Ralph diria que estava sendo deliberadamente descarada, mas se fosse verdade, teria transfigurado a peça em uma saia, não é mesmo?

Volkov finalmente se aproximou com algumas agulhas gigantes, em um tom verde venenoso metálico, flutuando ao seu lado. Ele parecia concentrado em um pequeno livro, que desconjurou com um gesto elegante de mão.

— Estamos prontos. — Ele falou isso e então sorriu, como se tivessem discutido por horas qualquer que fosse o absurdo que ele estava pretendo fazer! Eva fez um não enfático com a cabeça, antes de verbalizar a sua discordância com o tratamento.

— Não, hã-hã, não vamos fazer isso! — Ela falou, enquanto apontava para as agulhas, que eram finas, mas deviam ter o comprimento de seu dedo médio. — Você não vai enfiar essa coisa enorme em mim!

— Você não vai nem sentir. — Ele argumentou, ainda com seu suposto sorriso tranquilizador no rosto, mas os olhos tinham um brilho de diversão malicioso, que não agradou em nada a corvinal.

— Só um bruto insensível como você para dizer uma sandice dessa! Você não vai enfiar essa coisa gigante em mim! — Ela repetiu com mais ênfase, se recusando a deitar na maca que ele estava oferecendo.

— Agora chega desses comentários de duplo sentido, Parkin, a gente não tem o dia todo! Senta logo! — O homem falou com um tom irritado, fazendo Eva o olhar, ofendida.

— Eu não estou fazendo comentários de duplo sentido, eu só estou tentando deixar claro que não quero ser empalada por uma... Ah meu Merlin, Volkov, você tem 15 anos de idade? — A garota perguntou com desprezo, ao finalmente notar sobre o que ele estava falando. Wulfric não riu, mas continuou a olhando com seu sorrisinho de deboche. — Olha aqui, não vou me submeter a seu procedimento assassino, sem saber do que se trata!

— São agulhas com uma poção para ajudar na recuperação da sua cartilagem do joelho. — Ele falou simplista e ela o encarou cética.

— E você não pode injetar a poção na minha corrente sanguínea ou me fazer ingerir? — Eva questionou de braços cruzados, mas se sentou na maca, ainda desconfiada.

— Só se for para ter que desovar seu corpo no mar depois. — Ele falou sem humor, então convocou um cubo esquisito do tamanho de uma cabeça humana, feito de uma substância gelatinosa e transparente. — Você quer que eu demonstre o porquê do procedimento?

— Por favor. — Ela falou cínica, então ele se levantou de sua cadeira de curandeiro louco e se afastou um pouco, colocando o cubo na maca, ao lado de onde a garota estava sentada. Antes de se afastar completamente, colocou uma placa escura na frente do objeto.

Quando estava a cerca de três metros da maca, Volkov executou um feitiço em russo, que tinha uma coloração alaranjada familiar. Eva ficou tensa automaticamente. Como ele sabia o feitiço exato que o terrorista havia lançado em seu joelho?

— Como você...

— É um feitiço genérico de desmembramento, muito comum em duelos sem lei. — Ele falou com calma, a observando com cuidado, porque ela parecia pálida. — Não sei exatamente qual foi o feitiço lançado em você, mas dá para saber o tipo só pela sua lesão.

Claro, claro! Obviamente Volkov não era seu atacante, que ideia mais doida, Eva!

— E por que fez isso? Lançou o feitiço no cubo melequento, digo. — Ela perguntou ainda nervosa, mas a curiosidade ganhou a disputa contra o nervosismo. — Por que a placa de metal?

— A placa simula sua patela, o osso que o feitiço atingiu. — Wulfric falou, enquanto se aproximava da peça em cima da maca. — Foi um golpe limpo, com impacto bem distribuído, então o osso, denso, não foi quebrado, nem sequer fraturado, vê?

Ela via, a placa de metal não parecia nem um pouco afetada por qualquer que tenha sido a força externa que a atingiu. Volkov retirou a placa escura da frente do cubo gelatinoso e Eva sentiu vontade de chorar ao ver o estado do objeto.

Aquilo supostamente era o estado do seu joelho?

— Está vendo aqui? As paredes permaneceram intactas, a força ou melhor, a distância, no seu caso, fez com que o feitiço não fosse o suficiente para arrancar sua perna fora, mas observe as estruturas cartilagenosas... Estão dilaceradas e fora de lugar. — Ele apontou para as lacerações que desenhavam padrões na substância revirada dentro do cubo.

— Meu joelho está assim? — Eva murmurou enquanto analisava os padrões de raios saindo de um mesmo ponto de impacto e irradiando até às bordas do cubo, com menor gravidade nas áreas periféricas.

— O padrão é similar, mas é claro que não é tão ruim. Você tem aí embaixo ligamentos e músculos, além da cartilagem, mas é, digamos que... — Volkov começou explicando em um tom quase consolador para seus padrões, mas depois se interrompeu. — Teoricamente cartilagens não podem ser regeneradas, só substituídas, diferente dos ossos. Nenhuma tecnologia trouxa ou bruxa jamais conseguiu esse feito, porém...

— Porém? — Eva perguntou esperançosa, porque aquelas agulhas horrorosas de repente não pareciam tão ruins assim.

— Porém você não perdeu cartilagem, só está revirada, então eu irei colocar as agulhas nas áreas fibrosas, onde seu corpo começou a cicatrizar essas micro lesões, vou mexer para romper as fibras e daí a poção de cura vai poder penetrar melhor nas áreas da cartilagem que foram afetadas. — Ele explicou como se não fosse nada demais, mas parecia exatamente o que ele falou que não era possível fazer.

— Você acabou de dizer que não dá para regenerar cartilagem. — Eva apontou confusa, não querendo soar cética.

— E acabei de dizer que você não perdeu cartilagem. O que eu vou fazer é... — Ele pegou a própria varinha, a mexendo lentamente ao redor do cubo, fazendo as rachaduras desaparecerem na substância gelatinosa. — Reorganizar o tecido fibroso ao redor da cartilagem, de um jeito que ele volte a ser maleável, para a poção penetrar nele, indo até onde eu quero.

—Não sei se estou entendendo... — Eva falou, acompanhando o cubo voltando ao seu estado anterior via magia.

— As cicatrizes são o que pressionam os seus nervos e fazem com que você sinta dor quando se movimenta, mas a minha maior preocupação é com a cartilagem. Ela era para ser uma espécie de lubrificante entre os ossos, mas está machucada e não se regenera como os outros tecidos moles, então vou tentar aplicar a poção diretamente nela, para que ela se recupere bem.

— A enfermeira de Hogwarts disse que eu ficaria bem com o tempo, mas você faz parecer como se isso não fosse acontecer naturalmente! — A garota falou em um tom que não era de curiosidade ou indignação, mas uma mistura desagradável dos dois.

— Seu joelho pararia de inchar e inflamar com o tempo e você voltaria a jogar e talvez até mesmo conseguisse seguir uma carreira de sucesso no Quadribol. — Ele falou com um tom que deveria ser consolador, mas que não parecia dizer tudo que precisava ser dito.

— Mas...

— Mas nada, seria uma boa vida. — Volkov concluiu, enquanto flutuava o cubo e a placa de volta para os lugares de onde haviam sido convocados. Eva o encarou com sarcasmo, porque aquilo certamente não era tudo o que ele queria dizer. — Mas... Vou tentar te dar uma vida melhor.

Ela piscou surpresa pela veemência no tom de voz, o sotaque russo acrescentava força a promessa.

— Como assim? — Perguntou tímida, porque não era todo dia que um homem prometia a uma garota que iria dar uma vida melhor para ela, seja lá o que isso signifique na cabeça dele!

— Se tudo der certo, vou diminuir as cicatrizes, o que vai fazer você ter pós-treinos mais confortáveis, sem grandes dores e vou tentar tratar a cartilagem diretamente. — Ele falou, voltando a se sentar em sua cadeira de curandeiro. Regulou a altura para ficar com os olhos na mesma direção que o joelho de Eva. A fez esticar a perna com um simples gesto autoritário. — Como eu disse antes, cartilagens são como amortecedores dos ossos, queremos elas bem saudáveis, para você jogar por muito tempo.

— Então isso quer dizer que eu não vou sentir mais dores no joelho?

— Talvez sinta, todos nós, jogadores, sentimos dores de vez em quando e elas pioram com a idade. Joelhos, tornozelos, punhos, cotovelos, ombros... Sabia que a tal velhice por volta dos 45 anos no mundo do Quadribol nada mais é do que o fim das cartilagens? Vai ficando cada vez mais difícil manter o alto nível quando o seu corpo já está desgastado. — Volkov esclareceu, aproximando as agulhas da área em que iria trabalhar.

Eva ficou na dúvida se deveria permanecer sentada ou se deveria deitar para facilitar o trabalho. Como ele não disse nada, preferiu ficar parada como estava, com medo de fazer algum movimento brusco e ele acabar furando algo que não devia ser furado.

— Foi o que aconteceu com você?

— Não, mas acontece com muitos. O desgaste da cartilagem é um processo natural, mas o que fazemos com nossos corpos nos treinamentos diários, nos jogos... Isso não tem nada de natural, porque os atletas estão sempre chegando ao limite e então indo além. — Ele falou tudo isso tateando o joelho da bruxa com uma leveza tão surpreendente, que a jovem quase não podia senti-lo. — Meu preparador físico dos Gaviões costumava dizer que esporte de alto nível é sinônimo de lesão.

— É uma coisa cruel de se dizer sobre algo que ama. — Eva falou com tristeza, porque não era essa a imagem que tinha do Quadribol profissional. Amava o jogo e sim, sabia que podia ser duro e que exigia muito dos jogadores, mas não era tão ruim assim, era?

— Jogar Quadribol de vez em quando faz bem, deixa os músculos fortes e os reflexos afiados. Mas fazer isso todos os dias, repetir os movimentos mais duros, sofrendo todos os impactos até que os músculos se lembrem de cada comando e os ossos não se importem mais com as pancadas dos balaços... Me diga, Parkin, qual foi o jogo mais longo que já jogou? — Ele perguntou com bom humor, fazendo a garota se sentir inexperiente e ingênua.

— Durou umas oito horas, acho. — Respondeu timidamente, então respirou fundo, porque ele enfiou a primeira agulha. Ok, não era tão ruim quanto havia imaginado. Doía um pouco, em um lugar que não estava acostumada a sentir dor, mas era como aquelas coceiras internas que não podia alcançar, era uma dor suportável.

— Bom... Na minha primeira temporada, quando eu tinha uns 17 anos, eu joguei quase que por seis dias, pode imaginar? — Volkov falou com um tom nostálgico, como se aquela fosse uma boa lembrança. Quase distraiu Eva da sutil agonia que era ele movimentando a agulha em pequenos movimentos circulares na lateral de seu joelho. — Os artilheiros se revezavam nos ataques e deixavam toda a parte da defesa para gente. Me lembro de não ter sentido nem fome, sede ou cansaço naquele jogo.

— Não tem intervalos para descanso na Rússia? — A garota perguntou curiosa, ignorando o fato de que ele havia deixado a agulha no lugar e partido para pegar outra flutuando perto de sua mão. Espera, ele iria colocar todas? Quantas eram? Uma, duas, três... Meu Merlin, eram oito! Ele iria colocar oito agulhas em seu joelho?

— A cada 12 horas de jogo, eles nos davam uma hora de intervalo. O preparador nos obrigava a engolir qualquer coisa e então nos estuporava para descansar o máximo que dava,  enquanto tentava recuperar nossos músculos cansados. — Ele disse rindo, lembrando de alguma memória feliz, messmo a história sendo bem triste na verdade, Eva pensou com uma sobrancelha levantada para a loucura do homem. — Em um dos intervalos eu quase me engasguei com um pedaço de alguma carne que eu nem lembro mais o que era. Fui estuporado antes de terminar de engolir a comida!

— Isso parece horrível.

— Era divertido. Bons tempos... — Ele sorriu nostálgico, já iniciando a colocação de mais uma agulha. — Vai ter suas próprias histórias de vestiário logo mais, Parkin.

— Espero que não tão brutais. — Eva resmungou observando que, agora que já tinha acostumado, o procedimento não era tão assus... Ouviu um pequeno “ploc", então sentiu uma agonia que a fez contrair o joelho de leve. Wulfric segurou seu tornozelo por reflexo, com a outra mão.

— Não puxe, foi só uma fibra mais densa, acontece. — Ele continuou a enfiar a agulha, que depois da primeira resistência, entrou com facilidade. A garota o encarou com uma careta.

— Doeu!

— Em mim não doeu nada. — Ele disse a título de provocação, mas o tom foi gentil. Parou para admirar o que tinha feito até agora: quatro agulhas, duas de cada lado. — Parece bom... Vou deixar assim por hoje, amanhã eu tento mais.

— A gente vai fazer isso de novo? Eu vou ter que dormir com essas coisas na perna? — Eva não sabia qual das duas respostas era a mais urgente, mas ambas eram importantíssimas!

— Sim, vamos fazer de novo e não, não vai dormir com isso na perna. Preciso mexer nas agulhas de cinco em cinco minutos, mas não vamos ficar nisso por muito tempo e devo dizer, o alívio é imediato. — Ele falou otimista, flutuando o restante das agulhas para um lugar onde Eva não pôde ver, por causa da distância.

— Da dor? — Eva perguntou esperançosa.

— Sim, da dor. Você vê? Os trouxas usam para desfazer ponto gatilhos, que são como nós nas fibras musculares. Eu hoje estou indo além, usando as agulhas em micro cicatrizes fibrosas, para acessar a cartilagem sem abrir o seu joelho. — Ele falou voltando com um sorriso satisfeito e as mãos na cintura. — Me sinto bastante misericordioso, se quer saber.

—   Um batedor misericordioso... Isso deve ser novo, talvez por conta disso tenha se aposentado, não? — Ela tentou provocá-lo, mas ele apenas a encarou com um sorriso sem sentimento no rosto.

— Eu não saia de campo sem quebrar pelo menos um osso do rival, mas é o que dizem “ossos foram feitos para quebrar, por isso temos tantos”. — Ele falou cínico, voltando a se sentar para mexer na primeira agulha que tinha colocado. Eva se esforçou para não sacudir a perna, porque quase já tinha esquecido das coisinhas enfiadas em seu joelho.

Quase.

— Ninguém fala essa besteira. — A corvinal desdenhou, fazendo uma careta, quando Volkov aumentou a amplitude do círculo feito com a agulha. Ele estava querendo escrever o nome dele dentro da sua carne?

— Na Rússia falamos e fazemos coisas muito piores. — Ele sorriu falsamente, então seguiu para a próxima agulha. Eva apoiou as mãos, uma de cada lado do corpo na maca e olhou parano teto de madeira muito alto do torreão.

Respirou fundo e se resignou ao seu destino: se era para ter seu joelho de volta, arriscaria a passar por uma ou duas torturas da velha e brutal Rússia.


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Notas finais do capítulo

O tratamento de hoje foi baseado em um procedimento chamado agulhamento a seco (dry needling), que eu já fiz no meu calcanhar e sobrevivi para contar a história. Ele foi adaptado para fins plotísticos, então tem alterações de suas funções (mas a agonia é real e os movimentos circulares também).

Enfim, espero trazer a educação física nos próximos capítulos.

Bjuxxx



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