Âncora escrita por Kurai


Capítulo 1
Âncora




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Morto. Eles diziam, eles repetiam a palavra, brincavam com ela como se fosse um dado. Morto. Suicídio. Se matou.

Ela não acreditou em nenhum deles até ver por si mesma. Não deu atenção a nenhuma informação precisa dos médicos com todos os detalhes técnicos que ela costumava usar pra dar credibilidade a alguma coisa. Precisou estar de frente a ele, deitado ali, pra finalmente aceitar o inevitável: ele estava morto, e jamais abriria os olhos outra vez. Jamais lhe daria o sorriso que tanto amava, ou brincaria com seu cabelo, ou deitaria inocente em seu colo sem saber que cada um desses gestos a enchia de uma felicidade ingênua.

— ...Você disse que ficaria ao meu lado. Disse que eu sempre teria você. Eu tentei... Tentei de verdade, fazer com que isso bastasse... — ela murmurava para o corpo à sua frente — Estar ao seu lado era o suficiente pra mim. Mas você mentiu... Você não está mais comigo — as lágrimas que prendera bravamente, desde sempre, por toda a vida, finalmente rolavam. — Como pôde mentir?

Ela chorou em silêncio por um longo tempo, olhando o corpo pálido e frio à sua frente. Levou um tempo até que parasse de soluçar. Ela se aproximou da maca outra vez, limpando o rosto, e se curvou sobre ela.

— Me perdoe... Eu sei que você não teria gostado disso, mas... — ela aproximou o rosto e, o mais delicadamente possível, tocou-lhe os lábios — ...Me perdoe ser egoísta.

Ela ergueu o corpo, respirando fundo. Cobriu o rosto dele com o lençol, por fim, e saiu dali, indo caminhar pelo verde ao redor do hospital.

Olhou para o céu enquanto andava.

— Alan... Céu e inferno existem? Existe algo depois que se morre..? Se existe... Se existe, eu poderia ver você outra vez?

Ela saiu do hospital, e automaticamente, seus pés a levaram ao parquinho. Ela se sentou ao balanço, acariciando a corrente. Se fechasse os olhos, quase o sentia atrás de si, empurrando-a de leve.

— Mas, Alan... Se existe céu e inferno, você não está no céu... Quem tira a própria vida garante o inferno, eles dizem. Como eu poderia... Como eu teria certeza de te ver outra vez? Não gosto de coisas incertas. — ela riu sozinha, se erguendo do balanço. Sabia que não podia voltar pra casa. Teria gostado de deixar um adeus.

— Se você está no inferno, Alan, deve estar assustado. Sozinho... Sozinho pra suportar tudo. Você sempre suportou tudo sozinho quando vivo... Seria um infortúnio suportar tudo sozinho pelo resto da eternidade. Não vou... Não posso deixar que isso aconteça, não é..?

Metodicamente, ela soltou o balanço do gancho, desprendendo as duas pontas da corrente.

— Mamãe, papai... Me perdoem. Henrick... Seja forte. Cuide deles. Ele... Ele precisa mais de mim, agora.

Ela enganchou a corrente na barra de ferro do brinquedo de escalar, testou - estava firme.

— Por favor... Por favor, se existe algum deus, se ele pode me ouvir... Me deixe estar ao lado dele. Estar ao lado dele... Me basta. — ela sorriu, passando a corrente pelo próprio pescoço. Sem dor, sem remorso, sem hesitar... ela saltou.


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Notas finais do capítulo

Spoiler: não, ela não morreu. Vá ler A Escolha de Sophia!! O título 'âncora' tem a ver com as razões de ambos os suicídios e é explicado melhor lá.



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