A Bela e a Fera - Livro 1 escrita por Monique Rabello, Kyrion


Capítulo 4
Capítulo 4: Em canto




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[P.O.V. Fera]

Se, por um lado, a neve começava a rarear e o frio tornava-se aos poucos menos intenso, por outro, a eles se sucederam chuvas fortes com rajadas de vento, que retardavam a partida de nossa hóspede, já bastante ou totalmente recuperada pelo que podia imaginar. Isso alegrou a todos no Castelo, mesmo que ninguém demonstrasse tão claramente quanto Lumière. Não poderia negar que parte de mim sentia o mesmo.

Mais três dias se passaram desde a espetacular noite musical que eu assistira clandestinamente, e desde então não tentei ver Bela. O que não significava que eu não a seguisse, às vezes mesmo sem perceber: procurava seus indícios, como um pouco do seu cheiro, o som de sua voz ou o arrastar de suas saias, o eco de seus sapatos estalando no chão de pedra, sua sombra projetada na parede pelo fogo confortável de uma lareira.

Algo em mim preocupava-se com o risco de estar me expondo demais, com a chance de ser visto de surpresa e pôr tudo a perder, a encantadora e frágil situação em que nos encontrávamos. Ao mesmo tempo, não conseguia evitar perseguir esses momentos, esses detalhes que me davam a tola ilusão de companhia. Quando estava só, as vidraças encharcadas sendo sacudidas e o vento cantando pelos corredores me atormentavam. Perto deles... perto dela... o mau-tempo era um agrado, por nos proporcionar uma chance daqueles “encontros”, atrasando uma despedida inevitável.

Entre nós, sempre havia um par de portas, uma parede, um véu de sombras e de proibição, mas era o mais próximo a que ousava chegar. Eu continuaria assim para sempre se nada me impedisse. De todos os riscos, não vivi o que esperava.

Naquele dia,precisei sair do Castelo para providenciar carne novamente. Caçar era uma das poucas atividades que ninguém no lugar podia fazer direito, e ninguém faria melhor do que eu. Sempre detestei. O que havia de mais assustador em minha condição e natureza poderia vir à tona nesses momentos.

A contragosto, aproveitei a primeira estiada, a chuva reduzida a uma garoa carregada pelo vento, para partir. Não foi fácil. A maioria das presas estava entocada para se proteger, e o solo estava macio e instável sob o meu peso, cedendo todo o tempo. Logo eu estava coberto de lama, arranhado pelas quedas frequentes, irritado demais para ser sorrateiro, decidido a perseguir a primeira coisa grande que visse se mexer por entre a folhagem. Estava especialmente fácil de ser percebido.

Quando fiquei enfurecido, fui até a toca onde minha última presa se refugiara, e comecei a destruí-la com toda a força que tinha nas patas. A terra úmida de chuva e pesada desde a neve começou a ceder. Arranquei de lá um ser apavorado, e seu sangue foi como um veneno que amargou meu peito.

Cheguei à despensa dos fundos, imundo, com marcas de sangue, a expressão colérica, com a caça atravessada nos ombros. Causei agitação e tremores nos funcionários. Larguei o que trouxe em cima da primeira bancada que havia e fui em direção ao banheiro mais próximo para me lavar, minha respiração quente fazendo uma fina névoa no ar frio e úmido. Correram para aquecer a água, enquanto alguém da equipe de limpeza me seguia a certa distância, cuidando da lama que espalhava com meus passos.

O banho foi longo. Ver a água se tingir de vermelho além da terra me afligia. Descobri todos os pequenos ferimentos que ganhei nesta incursão à floresta, que também precisei lavar. Tinha pouca paciência para desembolar meus próprios cabelos e pelagem, com grande dificuldade para relaxar.

Ainda mais longo era meu tempo de secar, mesmo depois de várias toalhas, que me obrigava a ficar em frente ao fogo até parte da umidade em meu corpo evaporar. Despido e mal-humorado eu estava quando a ouvi.

Logo percebi que não era como uma conversa entreouvida nos ecos do Castelo; era música, cantarolada sem palavras. Não a conhecia, nem à voz, o que significava que só poderia ser Bela. Isso não explicava, porém, a aceleração em meu pulso, ou por que eu estava rígido como uma estátua, com as orelhas em pé. Era possível ignorar aquele canto? Não conseguia sequer cogitar. Da surpresa nasceu um relaxamento que minava minha resistência, penetrando as fibras do meu corpo em cada músculo, enquanto meu foco se perdia como se tivesse sono, sem de fato tê-lo. Minhas patas se moveram sozinhas e me colocaram de pé. Mal tive tempo de agarrar a capa junto à porta enquanto meus membros me conduziam até ela, sem me demorar no caminho.

O canto não era só belo. Na verdade, lindo e cristalino. Ele tinha algo de hipnótico que anuviava meus pensamentos, me deixando à mercê de sentimentos, sensações e desejos que não conhecia ou compreendia. Já não sabia o que me impulsionava – magia, instinto – só percebendo que não mais podia parar, e estava longe de querer tal coisa.

Cruzei corredores e escadas, sempre atrás do som que me atraía, cada vez mais claro e poderoso em seu efeito sobre mim. Talvez eu estivesse vulnerável, incapaz de lutar contra aquele encantamento que varria meu bom-senso e a noção de risco. Eu só queria aliviar a urgência que me empurrava.

A voz vinha de um cômodo iluminado e com as portas abertas. Eu as atravessei sem hesitar.

Não era surpresa estarem reunidos ali Madame Samovar, Lumière, Horloge e Chevet, também já cativado pela hóspede. Tinham um olhar de arrebatamento com aquele canto, o canto de Bela. A moça tinha Chip aninhado em suas mãos e para ele cantava, embalando-o suavemente, enquanto o pequeno não cabia em si de felicidade. Só me dei conta dos detalhes da cena muito depois. Naquele instante, enquanto dava os últimos passos para o interior do Cômodo, minha mente, meu corpo e meu coração não me pertenciam.

“Amo??!!” a exclamação na voz de Garderobe era como uma lâmina. O que significava que acabara de entrar no quarto de Bela.

A canção parou, e com ela a névoa que turvava meus pensamentos. Voltava a ficar dolorosamente ciente dos olhares espantados que pousavam em mim, de pé muito acima deles, apenas de capa, arfando paralisado. Vi Bela virar-se e aquele instante durou para sempre. Nossos olhares se cruzaram. Sei que meu corpo carregou-se de medo e arrependimento primeiro.

Antes que pudesse decifrar sua expressão, dei-lhes as costas e fugi. Corri como o monstro que minha visão me tornava, perseguido pela minha culpa, o único predador maior do que eu. Por que eu fugia se era eu a criatura? Eu não suportaria ver nos olhos de alguém a aversão que eu sentia por mim mesmo.

Arranhei o chão com as garras. Meus chifres arrancaram lascas de um corrimão. Destruí uma mesinha ao me chocar contra ela, caindo em uma curva.

Corri e corri até o fundo da Ala Oeste onde me refugiava, com o pânico de um julgamento que trazia já dentro de mim.

***

[P.O.V. Bela]

“Cante para nós, Bela!” Chip pedia animado em meu colo, pulando. Os demais concordaram também insistindo com olhares, aproximando-se sutilmente. Não cheguei nem mesmo a hesitar. Eles mereciam alguma resposta após aquele show gigantesco que haviam feito para mim.

Escolhi um dos cantos tradicionais do meu reino. Sem qualquer letra, apenas melodia solta com a voz. Levantei-me com a criança nas mãos, girando com ela. Os outros possuíam uma expressão de encantamento. Lumière levava suas velas ao peito e um sorriso feliz que eu não esperava reinou no local.

Não sei por quanto tempo fiquei cantarolando. Até mesmo Horloge tinha uma expressão de amor derretido com que eu não contava. Apenas fui parada pelo susto de Madame de Garderobe e o travamento corporal dos outros. Senti um arrepio na espinha. Eu havia feito algo errado?

Não demorei a virar-me e encará-lo, mesmo que para mim houvesse parecido que sim. Precisei olhar bem para cima para conseguir ver seu rosto, encarando olhos brilhantes de cores diferentes. Azul e cinza? Não deu tempo de ter certeza. O olhar de pavor e tristeza antes de sumir em fuga da minha frente foi mais chamativo...

“Amo! Amo!” Horloge e Lumière correram para a porta, o candelabro travando-se antes de passar por ela enquanto o relógio nem mesmo olhou para trás, prosseguindo preocupado. “Chérie, podemos explicar!” disse nervoso, tentando acalmar a minha expressão ainda paralisada.

“Este é o ‘amo’ de vocês?” perguntei ao sentar-me na cama.

“Sim, princesa...” Samovar respondeu e passei a mão nos cabelos. O candelabro pediu mil desculpas antes de sair correndo atrás de seu amo ao perceber que eu não teria reações bruscas. “Está preso conosco aqui...” deixou escapar um pouco nervosa e ficamos por um momento sem fala.

“Está assustada, querida?” Garderobe perguntou carinhosa, claramente receosa com a resposta.

“’Assustada’ não é a palavra. Não sei. Estou mais surpresa com toda a cena do que com o que ele é, com certeza. Está tudo bem... mas vocês nunca haviam me dito que seu amo é uma criatura tão bonita...” falei meio avoada, mas verdadeira.

“Achou-o bonito?” As duas madames riram juntas, cúmplices. “Ele de fato é... e que bom que teve a decência de entrar aqui ao menos de banho tomado!!” dessa vez, as três rimos juntas.

***

Monsieur! Monsieur!” Lumière chegou exasperado no quarto de seu senhor na Ala Oeste, sendo recebido com um rosnado alto. Tapou o rosto por um segundo, ignorando seu nervosismo para continuar a falar: “A garota não se assustou com o senhor a ponto de fugir! Ela ficou no quarto com as madames e parece estar tudo bem! Qu’est-ce qui s’est passé, monsieur?!” Ele estava realmente preocupado.

[P.O.V. Fera]

“Também não consigo fazê-lo se acalmar!” exclamou Horloge, que já vinha escutando meus rosnados e resmungos furiosos há mais tempo. “Espere! Ela não está tão assustada? Ainda está aqui?! Ouviu isso, amo? Não há motivo para tamanha inquietação!”

Aquelas palavras penetraram muito lentamente em minha consciência, tendo que atravessar as barreiras de tensão que eu mesmo erguera. Era o meu medo de ter estragado a alegria do grupo, de ter apavorado uma moça inocente, até de ter posto em risco sua segurança. Principalmente, por ter perdido o controle de mim mesmo.

“Ela... ficou?” perguntei, soltando o fôlego, ao que Lumière confirmou vivamente. Fiquei mais confuso do que calmo. O que aquilo significava? Saberia ela da minha condição pelas pistas que deixei pelo Castelo? Se aquilo tudo fosse de sua vontade... sua chegada também seria intencional. E se usava magia para me atrair? Estaria ligada a quem causou nossa maldição?

“Amo? Não está feliz?” Horloge perguntou, ingenuamente, vendo minha expressão ainda anuviada. Não queria lhes causar mais transtornos e tampouco conseguia dissimular minhas preocupações.

“Voltem até ela e garantam que ela está totalmente segura. Assegurem-na de que isso não vai se repetir.” Disse-lhes, passando a pata com garras pela minha cabeça, cansado e inseguro de conseguir manter a palavra. “Mesmo não tendo ido desta vez... mais cedo ou mais tarde ela irá.” Continuei quase em um sussurro, carregado de decepção.


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