A Bela e a Fera - Livro 1 escrita por Monique Rabello, Kyrion


Capítulo 15
Capítulo 13: Laços




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[P.O.V. Bela]

Percebendo que algumas coisas haviam mudado desde o último sonho, Hurricane, observando a animação dos preparativos da festa por algumas janelas, escolheu que seria um bom momento para entregar mais informações, indo atrás de Fera naquela noite a fim de fazê-lo sonhar.

Pela proximidade do calor da Primavera, a porta-janela para a varanda do quarto passou a noite aberta, facilitando as coisas. Alguns gritos de corvo puderam ser ouvidos no céu... e então um pousar dentro do quarto.

Um homem surgiu do animal, arrumado em vestes esvoaçantes e negras, parecendo não ter peso algum pela leveza com que andava. Direcionou-se primeiro à rosa, passando a mão sobre ela mesmo sem tocá-la, para sentir seu funcionamento. Estava perfeita.

Logo foi à cama, parando ao lado da criatura que dormia pesado, claramente tranquilo e satisfeito. Um singelo sorriso apareceu-lhe nos lábios... Era possível notar que algumas de suas feições mais animalescas estariam se suavizando. Alguns sinais de ter curtido a festa, também.

Aproximou a mão de sua testa e dessa vez houve uma luz dourada como a iluminar a mente. O sonho começaria logo a seguir e ele afastou-se... as asas negras bateram mais uma vez para longe.

A carruagem havia chegado e, sempre que acontecia, alguns servos do castelo sentiam o coração travado. Quase sempre havia um novo ser humano trazido para interrogatório ou para “pagar” por desacato ao nobre... e daquela vez não era diferente.

O rei chegou com um sorriso enorme enquanto dois empregados levavam a pessoa para aprisionar. Abriu satisfeito as portas da cozinha, segurando nos ombros de seu chef:

“Chef Bouche! Possuímos agora seis prisioneiros. Gosto deste número. E encontrei um veneno novo... comprei de um andarilho. Vamos testar no almoço deles hoje.”

“Sim, senhor.” Foi a única resposta enquanto o outro pegava o vidro do bolso e entregava-o em mãos, saindo em seguida pela porta.

“Por que obedece? Não entendo. Sua família não está comprometida e você poderia colocar isso na comida dele!” Madame Samovar falava baixinho e raivosa enquanto arrumava o armário de louças.

“Você é louca, mulher? Se eu envenenar o rei, meu destino será deplorável. Todos sabem que ele me entrega esse tipo de coisa, não haveria dúvida de que fui eu!” o chef respondeu irritado e grave, mexendo mais rápido o caldo que preparava.

“Até parece que não vê problema nenhum nisso...”

“É meu trabalho, Samovar! Também é o seu. Experimente alimentar algum deles mais de uma vez por dia e parar de dar esse chá proibido.” Falava em tom de ameaça. “Não perca o juízo agora...”

“Às vezes acho que se parássemos... ele não conseguiria fazer sozinho...”

“Conseguiria, sim. Se livraria de nós e não passaria nem um dia antes de nos substituir.”

“É verdade, madame. Temos sorte de estarmos aqui...” Lumière disse, entrando no lugar. “Temos uma forma de qualidade de vida aqui. Poderíamos nem estar vivos se não vivêssemos no castelo!”

“Não consigo me acostumar... são anos!” ela disse, também já começando a preparar o tal chá. “Nunca se torna normal...”

“Nenhum de nós, madame... nenhum de nós!”

O sonho continuava e guiava a visão de Fera para as masmorras do castelo. Era idêntica na estrutura às que ele conhecia, mas sua energia e aspecto eram muito diferentes.

Pôde ver um homem magro e alto sentado em um banco pouco depois da entrada, guardando o lugar. Suas feições mostravam que poderia ser Chevet, mesmo que não tivesse certeza.

Havia, de fato, seis pessoas presas no local. A imagem durou pouco para que nenhum detalhe das misérias ficasse claro o suficiente para se guardar na memória.

Um dos cômodos possuía material suficiente para realizar torturas. Porém, quem as realizava ali não estava presente. Seria o próprio rei? A imagem começou a se desfocar desse momento até que Fera pudesse acordar sem tanto sobressalto.

Daquela vez, o feiticeiro havia decidido realizar um efeito colateral. Assim que o dono do castelo abrisse os olhos, o encanto que impedia os objetos de falar sobre sua maldição e história seria quebrado... e aquele dia poderia ser aproveitado, em algum momento, para mais um encontro entre todos para descobrirem mais ainda sobre si mesmos... unindo-os ainda mais.

***

[P.O.V. Fera]

Acordar foi um processo lento, acompanhado por uma forte dor de cabeça. Alguma bagunça me rodeava, e eu fazia parte dela. A claridade era muita para que eu suportasse, e fechei, com os olhos semicerrados, as grandes cortinas, escondendo de mim mesmo o quanto estava levantando tarde. Bebi toda a água que havia por ali disponível e fui tomar um banho.

Enquanto me banhava e massageava a cabeça para aliviar a dor, o sonho foi retornando à mente, cada vez mais cristalino, até que conseguisse reorganizar todas as cenas facilmente. Mesmo que daquela vez o mago não estivesse presente, percebi algumas similaridades com o sonho anterior que falava do passado do Castelo, com aquele sentimento de que eu via algo muito nítido para estar apenas imaginando. A profundidade de algo real, denso como minhas próprias lembranças.

Meu coração acelerou: aquelas revelações eram muito fortes, sendo reais. Não conseguia unir aquela imagem dos servos com a que tinha todos os dias... Quanto tempo teria se passado? Queria mais uma vez consultar Bela... mas como falar sobre algo tão pesado, depois de um dia tão bom? Pensando sobre isso, terminei o banho e comecei a arrumar um pouco do quarto, refletindo, separando roupas para lavar, reabrindo aos poucos a cortina para a luz da primavera entrar. A visão do jardim me deu a ideia.

Coloquei roupas claras e mais leves e desci à procura de Bela. Imaginei que já tivesse tomado café, e descobri que o almoço sairia mais tarde – até os servos começaram a rotina mais tarde, depois da festa e da noite em claro – o que nos dava algum tempo. O dia estava bonito, com algumas nuvens e um pouco de vento, ideal para um passeio.

Não foi difícil encontrá-la seguindo seu perfume. Bati de leve com o dedo na madeira para avisar que estava próximo. “Bom dia. Peço desculpas por não tê-la acompanhado no café. Posso ter... passado de alguns limites na noite passada.” Passei a pata pelos cabelos ainda úmidos, com algumas imagens vindo à mente, inclusive uma ou outra que não podia deixar que me distraíssem naquele momento. “Poderia... me acompanhar em um passeio no jardim? Queria mostrar algumas coisas... e ao mesmo tempo, falar sobre uma coisa séria. Acho que tive outro sonho enviado pelo feiticeiro.”

Esperei sua confirmação e nos encaminhamos juntos, saindo depois pelo portão principal. Guiei-a primeiro para a esquerda, onde várias flores já eram visíveis e um perfume intenso para mim já pairava no ar.

“Espero que goste desta estação. Assim como o inverno, que é especialmente agressivo, as outras estações também são bem, como dizer? Intensas por aqui. Na primavera, o jardim irá invadir cada vez mais o Castelo.” Comecei a explicar. Indiquei como a trepadeira já avançava sobre os muros externos, carregando-se de flores amarelas, enquanto outra, mais para o rosa e branco, já tomava as paredes do primeiro andar. Algumas plantas aquáticas espalhavam-se aos poucos pelo córrego que cortava o terreno, pelas margens do pequeno lago e até pelas fontes e chafarizes, agarrando-se às estátuas. As ninfas, criaturas e deuses ganhavam mantos e coroas de flores.

“Mesmo quando tentamos podá-las, elas crescem assustadoramente rápido. Devem, em breve, invadir o térreo do Castelo, mas quase não chegam aos andares seguintes, exceto nas janelas. Espero que não seja um incômodo.” Disse também, com uma preocupação sincera. “É algo... lindo, mesmo que um pouco assustador. Sublime, acho.”

Seguimos nosso passeio à procura de flores diferentes, botões escondidos, novos perfumes, indiquei alguns nomes que aprendi nas leituras e de que me lembrava, comentando: “Engraçado... não me recordo de quem me ensinou.” Acabamos próximos a uma pequena praça com bancos nos fundos do terrenos, dispostos em meio à cerca-viva, próximos a um coreto, também ele cercado de flores que o tomavam cada vez mais. Era um lugar especialmente bonito, preferido por pássaros e borboletas, onde muitas cores se misturavam, como em um quadro.

“Queria um lugar agradável para conversar, pedir sua opinião e orientação.” Comecei, depois que nos sentamos em um dos bancos de pedra ainda não recobertos por plantas. Narrei então a Bela o sonho que tive, com todos os detalhes ainda vivos e bem gravados em minha mente. “Imagino que seja o que Hurricane escolheu revelar desta vez, e seja aquilo sobre o qual não podem falar, justificando a culpa que sentem. Por isso aceitam essa maldição que lhes foi lançada.”

Estava para mencionar que aquele episódio parecia inacreditável, mas lembrei de suas palavras, indicando o quanto era incrédulo. Continuei então de outro modo. “Acho que já conheço este Castelo inteiro, e nunca vi um único instrumento de tortura. Devem ter se livrado de tudo o que lhes fazia recordar desse passado, e hoje mostram outra natureza. Será que foi por isso que foram transformados em objetos? Porque sempre se deixaram manipular, eram usados, passivos. E parece que aquilo que se tornaram está ligado à sua antiga função no Castelo, e um pouco com sua personalidade. Madame é frágil, Horloge é extremamente metódico, Chef Bouche sempre foi ‘esquentado’. O que acha de tudo isso? Devemos dizer a eles que descobrimos essas informações... e que o feiticeiro tem se comunicado comigo em sonhos?”

***

[P.O.V. Bela]

Acordei bastante animada para coma vida naquela manhã. Tudo estava apenas melhorando e eu sentia que poderia estar perto o momento de ficarmos juntos de verdade... Então me vesti rápido, sentindo um pouco de remorso por estar aliviada podendo acordar naturalmente, e não com meu despertador-armário.

Coloquei uma roupa um pouquinho mais chique do que queria naquela manhã... já que os que estavam comigo eram justamente as dúvidas de vestimenta para a festa. Coloquei o vestido azul que perdera para o lilás segundo a opinião de Fera e desci para tomar café, imaginando se Madame de Garderobe e Cadenza se entenderiam de fato... Teria eu de trocar de armário? Sorri com a possibilidade de ver um amor se concretizar no castelo além do único que já presenciara antes.

O café foi mais quieto com apenas a senhora-bule me fazendo companhia e conversamos sobre poucas coisas antes que voltasse para a cozinha e me deixasse ali... comendo bolinhos meio contemplativa. Terminei em paz e levei minha louça à cozinha antes de seguir novamente pelos corredores e voltar para o meu quarto, por achar que de fato não havia ninguém muito disposto.

Peguei o livro com que estava treinando daquela vez... já um pouco mais complexo, mesmo que nem tanto, sentada em minha cama já arrumada no tempo em que fiquei fora.

Não demorou muito para que eu ouvisse a voz de Fera. Fechei com vagar o livro enquanto encarava a porta, escutando-o. Nada disse... apenas marquei a página com uma das pétalas secas das rosas brancas de seu belo inverno, apoiando-o no colchão e fui ao seu encontro.

Sorri-lhe dando bom dia e acompanhei-o até o jardim tentando não demonstrar interesse apenas pelo sonho naquele momento. Poderia ser que... tivéssemos mais o que conversar após a noite passada? Ou estaria eu me precipitando mais uma vez?

Segui-o por onde andava e observava tudo o que me mostrava e assimilava as informações que me transmitia. Fiquei um tanto impressionada com a ideia do que seria a primavera ali. O exagero estava impregnado até mesmo na natureza. Queria ver aquilo acontecer... devia ser lindo agora que eu já sabia que não era exatamente perigoso.

Sentei-me no lugar que indicou, reparando estar mais quieta naquela manhã e mais disposta a ouvir. Concordei com a beleza diferente que o lugar possuía naquela estação, unindo as mãos nos joelhos para ouvi-lo com toda a atenção possível. Quase não pisquei, meu rosto ficando mais sério e concentrado. Ainda continuei quieta, fitando o chão e pensando antes de responder a qualquer coisa, maquinando as informações.

“Primeiro de tudo... deve ter acontecido outra coisa que ele aprovou para fazer novas revelações. Será que existe algum padrão? Porque não parece aleatório... a primeira vez em que isso aconteceu foi depois da nossa primeira reunião com o castelo, e fizemos algo significativo. Ele pode ter considerado nossa festa de ontem também... já que também estávamos unidos por algo, mas dessa vez apenas de coração...” Uma pausa. “Isso que você disse é bem importante... sobre as personalidades e profissões, e de um motivo para serem transformados justamente em objetos. Porque se a intenção era a prisão perpétua, se podemos chamar assim, não poderiam ser animais... E a ideia de serem servos é perfeita para isso. Acho, sim, que seja justo falarmos sobre isso com eles. Podem ajudar de alguma forma e estão contigo nessa... precisamos continuar juntos. É isso o que está acelerando o processo. E olha.” Parei para olhá-lo no rosto, levantando para tocar os pelos da bochecha mais uma vez, observando atenta.

“Você parece um pouco diferente. Acho que seus chifres estão um pouco menores e está com menos marcas...” fiquei ali analisando de perto, já imaginando que poderia ser ainda outra pista importante. “Parece menos ameaçador. Será que faz parte? Vai se libertando da maldição aos poucos ou... Seria como pensamos antes: se piorou a si mesmo e ao castelo, poderia fazer o inverso sentindo coisas boas?” falei esperançosa, mas com a voz mansa, sorrindo apenas pacífica ao acariciar o chifre, que também parecia menos áspero. Fiquei feliz.

[P.O.V. Fera]

Concordei com sua observação a respeito de um possível padrão para os sonhos, sempre depois de um acontecimento marcante envolvendo todos no Castelo. “Isso me faz pensar que... ele nos quis todos juntos por algum motivo, trabalhando por esse mesmo objetivo. Será que... até sua vinda estaria prevista?” franzi o cenho. Não era tão tranquilizador se aquilo tudo era orquestrado. “No primeiro sonho, mencionou que sua chegada proporcionou o que ele... esperava. Acho que você não estava nos planos, mas é bem vinda. Também penso que ele está nos observando bem de perto para saber disso, mesmo que através do Castelo.”

Ainda tinha um último questionamento: por que eu era o escolhido para ter os sonhos? Mesmo que houvesse a chance de termos algum laço especial de que eu não me lembrava, ainda predominava a sensação de que eu era apenas o mais difícil de convencer. Ia comentar sobre isso, mas esperei Bela continuar sua reflexão, assentindo a respeito da maldição sobre os servos... até que ela tocou meu rosto. Pisquei, surpreso, um pouco nervoso, até que seus dedos fizeram uma carícia muito confortável. Fiquei imóvel sob sua inspeção, fechando os olhos, sentindo que avermelhava nas orelhas.

Continuei ouvindo, mas não quis mais afastar a cabeça de sua mão. Ainda de olhos fechados, comecei a responder, murmurando. “É... possível... com certeza tenho... pensado e... sentido coisas boas. Coisas melhores...” Com a cabeça um pouco mais baixa, insisti em ficar ali como se pudesse prolongar o carinho. “Acho que... parte da maldição de viver aqui... já se... foi.”

Estava encabulado de abrir os olhos, encarar seu olhar, mesmo que me fosse positivo. Como acreditar em um presente daqueles?

“Sou muito grato... que me veja com esses olhos.” Falei bem baixinho.

Sentia vontade de lhe pedir que ficasse para sempre. Não tinha esse direito, e seria mesmo necessário? Era apenas medo. “Faria qualquer coisa... para retribuir o que tem feito.” Por nós. Por mim, pensei, sem dizer. “O que gostaria? O que o Castelo e eu podemos oferecer? Um presente, um banquete, um baile como os bonitos em que você ia? Eu faria qualquer coisa...” repeti, entreabrindo finalmente os olhos, mas encarando seus joelhos.

[P.O.V. Bela]

Parei algum tempo para pensar no que tinha dito. Não havia como o feiticeiro saber sobre meus motivos para fugir de meu pai... nem mesmo manipular meu reino – ao menos eu esperava – mas fazer com que eu encontrasse o castelo poderia facilmente ser orquestrado por alguém de seu nível. Poderiam todos os que vieram antes também ser alguma tentativa de ajuda... ou realmente era como imaginávamos, e o castelo abriria as portas para os necessitados? Não havia como saber.

Comentei com ele o que pensei enquanto continuava parada à sua frente, mantendo o carinho por mais tempo, aproveitando que parecia ter gostado. Abri um sorriso quando comentou sobre o sofrimento estar diminuindo e encostei sua cabeça em meu peito dando um passo à frente, abraçando através dos chifres, fechando os olhos por alguns segundos.

Queria dizer o quanto aquele sentimento de desprendimento verdadeiro poderia ajudar a acelerar ainda mais o processo de quebra da maldição, mas nada comentei, ao perceber que suas palavras se direcionavam a sentimentos para comigo.

Afastei-me um pouco quando fez a pergunta, pensativa, apenas para poder olhá-lo... Mas como não ergueu a cabeça, sentei-me ao seu lado mais uma vez, deixando meu corpo encostado de leve no dele.

“Um presente?” perguntei, animada, tentada a dizer que não precisava e que tudo oque eles proporcionavam já era tudo de bom... mesmo assim não querendo descartar o mimo. Pensei um pouco.

“Gostei dessa ideia de baile. Em um salão grande de chão bonito... boas conversas e danças. Acredito que iria adorar. Poder usar um vestido mais trabalhado... fazer algumas cortesias de que gosto... isso vai ser ótimo!”

Já imaginava a cena e fiquei feliz, batendo palmas suaves e soltando uma risadinha. Um baile com todas aquelas flores poderia ser mágico!

[P.O.V. Fera]

Foi um abraço confortável e bem melhor do que o último, já que sentia algo tão confortável no peito. Mesmo encabulado, pousei as patas em suas costas, sentindo um imenso aconchego. Notei que minha respiração vibrava e que... estava ronronando, sem saber que poderia fazê-lo.

Quando Bela se sentou novamente junto a mim, tão próxima, outra vez despertaram em mim as esperanças, os devaneios os... um momento!

“Você aceita o baile?” perguntei em confirmação, olhando seu rosto, com as orelhas em pé. “Certo, certo... isso é... ótimo!” afirmei, eufórico e preocupado, já pensando em quais preparativos seriam necessários, e em tudo aquilo que precisaria aprender até lá. “Com certeza Garderobe e a costureira podem providenciar tudo o que quiser em um vestido de baile. Havia bastante material na despensa, mas temo que os tecidos estejam um pouco antigos.”

Olhei ao redor, onde as flores já davam os sinais da intensa estação. “Em pouco mais de duas semanas você mal reconhecerá o Castelo.” Disse, sorrindo. “A decoração do salão estará especial. Se estiver de acordo com a data...”

Ficamos ainda um tempo no banco, curtindo a atmosfera calma e viva do jardim, respirando fundo o perfume que a brisa trazia. Fiquei tanto tempo imóvel que uma borboleta pousou em meu chifre esquerdo. Mesmo sem vê-la, tentei não espantá-la o máximo que pude.

Já estava pensando em retornarmos, quando meu próprio corpo tomou a decisão por mim: minha barriga vazia deu um profundo e longo ronco. “Não tomei café... talvez o almoço já esteja ficando pronto?” comentei de orelhas baixas. Pusemo-nos a caminho do Castelo, e guiei-a por outro trajeto para mostrar mais de perto outros canteiros. Um deles estava cheio de margaridas, e acabei quebrando uma com a cauda por acidente. Peguei a flor caída e coloquei-a nos cabelos de Bela, sem encará-la por tanto tempo.

No caminho, encontramos Philippe, que às vezes era visto se exercitando pelo amplo terreno ao redor da construção. Parecia querer saudar sua nova dona, mas hesitava se aproximar demais de mim sempre que acabava de me encontrar. Bufou, batendo de leve o casco no chão. Não consegui entendê-lo, mas afastei-me alguns passos para que viesse até a princesa e ganhasse o afago merecido. Quando bufou novamente olhando para mim e sacudindo a cabeça, respondi fazendo exatamente a mesma coisa. Foi a escolha certa a se fazer: ele veio até mim, e pela primeira vez consegui acariciar seu pescoço. Percebi que a partir daquele momento nos tornamos amigos.

Bela e eu continuamos até o salão, onde soubemos que o almoço seria servido em seguida: tivemos muitas verduras e frutas frescas, enquanto a horta e o pomar novamente se enchiam de vida. Muitos servos vieram conversar, ou riam enquanto nos serviam, quase sempre fazendo comentários sobre a festa da noite anterior. Ouvimos também algumas fofocas e aprendemos algumas coisas sobre as relações do Castelo, como o fato de que Cadenza e Garderobe estavam mesmo encantados um pelo outro. A alegria era tanta que preferi não comentar sobre os sonhos naquele momento... Não seria justo tirar-lhes um sentimento tão bom. Talvez mais tarde, ou em outro dia.

***

[P.O.V. Bela]

Era meiga sua forma de demonstrar qualquer coisa... Eu podia sentir meu próprio sorriso fácil para tudo o que fazia, e sentir que era cada vez mais recíproco me deixava feliz, até mesmo eufórica por dentro. Não havia problema que os tecidos fossem antigos. A propósito: “Será que em algum momento poderei sentir que posso ir e vir do castelo? Sabe... eu poderia trazer coisas novas, algo que seja necessário e...” parei de falar, um tanto triste. Havia esquecido que estar em qualquer lugar poderia ser um risco para mim... e desconversei, tentando ser discreta.

Sorri leve e sincera mais uma vez quando disse que eu mal reconheceria o castelo. Estava ansiosa para ver aquilo e concordava com a data. Claro! O que me impediria? Não comentei nada sobre a borboletinha, mas o silêncio e o momento de observação podiam dizer muita coisa. Será que aquilo já havia acontecido? Poderia até ser significativo.

Senti-me muito princesinha ao rir com a mão na boca de sua barriga se manifestando. O horário do almoço de fato se aproximava. Era um pouco mais fácil perceber pelo clima cada vez menos frio no horário da tarde.

A vinda de Philippe era sempre agradável e gostei da interação dos dois após um abraço longo que dei em seu pescoço. “Uma amizade entre vocês seria algo que eu gostaria muito... viu, amor?” sorria carinhosa ao encostar o rosto no do cavalo, que fechou os olhos. “Só não conte para ele meus erros de leitura...” beijei o focinho e ele mexeu a cabeça novamente, respondendo de sua maneira.

Com a flor em meus cabelos e o cavalo disparando mais uma vez para voltar ao seu exercício diário, uni as mãos à frente do corpo, andando em silêncio com ele até entrarmos, felizinha e quieta para não constrangê-lo de seu jeito.

Já sentados à mesa, coloquei a margarida em um frasquinho ao lado de meu prato para ter um almoço ainda mais enfeitado. Lumière chegou com uma animação e agilidade ainda mais acentuados do que o normal, distribuindo alguns beijos em meu braço como de costume. Fofuras e comentários acabaram também me animando e fiquei interessadíssima nas fofocas após a separação do grupo na festa. Gostei da ideia dos dois músicos terem se curtido tanto e também de algumas outras novidades. Percebi que Fera não começaria o assunto mais sério e assim também deixei que ficasse.

Após o término da refeição, sugeri que passássemos ainda mais tempo do dia juntos... queria tentar entrar no mundo da história de Notre Dame como havíamos comentado na noite anterior. Realmente chegaríamos a cantar juntos? Fomos até a biblioteca e sentei-me ao lado da cadeira grande mais perto do sol, recostando-me nele para ouvi-lo começar aquele romance que ainda tiraria meu fôlego por seus acontecimentos.

***

[P.O.V. Fera]

Senti que arfava quando perguntou sobre a possibilidade de partir um dia... não, não partir. Depois de tanto tempo... ela voltaria, eu confiava nisso. Ainda assim, por que meu coração doeu ao ouvi-la?

Sua própria tristeza me distraiu da minha. Preferi não dizer nada, mas roçar em sua mão com um dedo da pata. Eu entendia. E queria acreditar, por mais improvável que fosse... que nossa situação um dia mudaria para melhor.

Ainda estava satisfeito com a amizade que travei com Philippe quando nos sentamos à mesa; desisti de sentar à cabeceira para ficar apenas de frente a Bela. Acompanhei um tanto distraído as fofocas, mas fiquei feliz que os servos já não se sentissem constrangidos ao falar de suas intimidades na minha frente – ou, pelo menos, das intimidades dos outros. Também notei uma pontada de ciúmes com as liberdades que Lumière se dava com a princesa e como conseguia fazê-la rir. Era infantil, mas não conseguia evitar.

A florzinha sobre a mesa era minha cúmplice, e me fez sorrir.

Terminado o almoço, segui Bela até a biblioteca, pegando o grosso livro do renomado autor, sentando-me na poltrona para ler. Quando se recostou em mim, senti de novo o calor no peito, sorrindo de leve e tocando seu braço, com carinho. Demorei um pouco para começar, aproveitando a sensação.

Abri o primeiro tomo, notando uma frase rabiscada na página de rosto, como quem assinasse um nome: “Só a Arte salva.”

Ergui as sobrancelhas. Não reconheci a letra; a tinta não parecia nem especialmente antiga nem tão recente. Era muito vago para parecer uma pista e não era a caligrafia do feiticeiro. De qualquer modo, não pretendia esquecer que a frase estava ali. “Concordo...” murmurei em resposta ao que o livro me dizia.

Comecei a leitura. Às vezes, fazia pequenas pausas para comentar alguma coisa que soubesse sobre o autor, a época, ou para mencionar alguma coisa presente nas letras da famosa ópera. Pedi aos servos bisbilhoteiros e prestativos que me trouxessem água para aliviar a secura da boca. Desta forma, a tarde deslizou por nós até que a luz do sol nos abandonasse, sendo substituída pelas velas acendidas por Lumière, no pequeno grupo que veio nos fazer companhia.


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