Esses dias escrita por Camy
Eu tenho esses dias
em que me finjo de morta.
É a minha maneira torta
de não levar isso às vias.
Eu não quero sair da minha cama
não quero falar com ninguém
Não quero tomar banho, comer,
acho que talvez nem respirar eu queira
Nesses dias eu quero que me esqueçam
Quero ficar deitada sem pensar
sem sentir, sem amar, sem chorar
Quero viver numa bolha em que só eu exista
ou talvez nem isso
Quero ficar nesse limbo em que nada é real
Não tenho responsabilidades
não tenho deveres, direitos ou quereres
Eu quero ignorar o mundo
Quero ignorar o que está dentro de mim
o que está fora
o que só está
Mas existem pessoas que eu não posso ignorar
Pessoas que moram comigo, dormem comigo
pessoas que vivem onde eu vivo
e entram na minha bolha quer eu queira ou não
São pessoas que eu amo
São pessoas que fariam de tudo por mim e se preocupam
São pessoas que eu não quero por perto
São pessoas que eu não quero que vejam sangue
Pessoas que eu não quero que se afastem.
Por elas, mesmo nesses dias, eu levanto
eu como, eu tomo banho, eu tento arrumar o quarto
Por elas, eu não sangro, eu não choro, eu vivo
Por elas, ainda são dias em que eu finjo
Nesses dias, meu celular não para
Eu tenho família, tenho amigos
Existem outros que querem saber de mim
Pessoas com quem firmei compromissos
antes de saber que esses dias estavam chegando
Eu quero ignorar todo mundo, quero me excluir
quero ficar nesse espaço em que nada nem ninguém existe
Quero parar de sentir e de falar e de pensar
mas existem pessoas que não posso ignorar
Por outro lado, é tão simples desligar o celular
Tão simples ignorar as mensagens
recusar as chamadas
me fechar em mim mesma
Eles não podem entrar comigo na cama
não podem me olhar no olho e perguntar se está tudo bem
não podem ver o sangue, se eu sangrar
Com eles, eu só preciso desligar a chamada
e fingir que não tô quebrando relações que importam pra mim
que são uma parte de mim
Eles não tão invadindo minha bolha de vazio
e eu posso mantê-los longe, então mantenho.
Eu conheço minhas responsabilidades
Eu vejo os horários chegando, eu penso no que tem que ser feito
E tem esse vazio, esse cansaço
esse peso que me cobre e me esconde
e eu fico com essa dormência
Essa vozinha me dizendo não importa, vai passar
Essa sensação de tudo bem ser odiada
tudo bem perder o horário
é até melhor
Quanto antes eu decepcionar quem eu amo
menos eles vão esperar de mim no futuro.
Tudo bem, tudo bem, tudo bem
É melhor que sintam raiva
que me vejam como irresponsável, que desistam
porque é por essas pessoas que eu ainda saio da cama
e sorrio e finjo e finjo e tá tudo bem
e sem elas…
Eu penso em sangue, nesses dias
Eu penso na faca na cozinha
Eu penso em como seria se a escorregasse pelo meu braço
Eu penso em como seria ficar molhada
e sentir minha cabeça pesando, até o sono chegar
Eu penso se doeria
Eu penso que eu mereceria, se doesse
E eu penso que eu tenho tudo
Eu tenho amigos
e um namorado perfeito
e uma família que me ama
e um emprego que eu adoro
e uma casa que faz eu me sentir segura
e uma gata que é incrível
E eu penso em sangue de novo
E em como eles se manchariam do meu sangue
E em como haveria culpa e dor e mais culpa
Haveria julgamento e brigas e eu não estaria aqui
Seria egoísta deixá-los com tanto para lidar
Seria egoísta fazer alguém me achar no chão do banheiro
Seria egoísta, egoísta, tão egoísta
se eles tivessem pesadelos depois
Se chorassem e sofressem
e pensassem no que poderiam ter feito diferente
Eu não quero causar esse tipo de dor
Não quero que acordem no meio da noite chorando
que haja problemas de confiança no futuro
que se lembrem de mim como alguém que poderiam ter salvado
e não salvaram
E eu penso em sangue de novo
Recebo mais mensagens e eu não mereço
Eu não mereço o amor, o carinho, a atenção, o cuidado
Eu penso em sangue e sei que não mereço
porque eles não fizeram nada para merecer
uma irmã assim
ou uma namorada assim
ou uma amiga assim
É egoísta pensar em sangue
e é egoísta ficar na minha bolha de nada
E é frustrante ver as horas passar enquanto eu não me mexo na cama
mas eu só quero que todo mundo finja que eu não existo
Só por alguns dias
eu preciso que finjam e eu preciso fingir
porque é demais
Eu chego em casa cansada
e quero que meu namorado me abrace
Ele me abraça,
mas não é do jeito que eu quero
Tem dias que quero
que ele me segure como se eu fosse uma criança
faça carinho na minha cabeça até eu pegar no sono
e me mantenha protegida
Tem dias que eu quero
que ele me segure como uma mulher
e me deite na cama
e faça eu me sentir amada e desejada
Tem dias que eu quero
que ele fique longe
e finja que eu não existo
porque não aguento a presença do amor dele
Eu não mereço ser amada assim
e não quero ser amada assim
Quero que ele entregue esse amor
para quem vai pensar mais nele que em si mesma
E eu ainda quero que ele saiba
quando me abraçar e como me abraçar
Mas não quero dizer nada
Não quero falar como me sinto
ou pedir que tipo de abraço eu quero
ou ter que dar uma dica sobre que tipo de dia eu tive
Eu quero que ele só saiba ao me olhar
É injusto e egoísta de novo
E é frustrante, porque ele me abraça
dum jeito que não é o que eu quero naquele dia
E eu fico irritada e frustrada e o quero longe
de mim e do sangue e da minha dor
Ele merece alguém melhor
alguém que saiba se expressar
e que o respeite
e que não o cobre como eu cobro
Mas ele ainda fica
Às vezes frustrado e irritado
às vezes com mais paciência
mas ele fica
Eu preciso que ele fique
Eu amo quando ele fica
Às vezes eu quero que ele vá
Eu tenho esses dias
em que só penso em sangue
Esses dias em que finjo que estou morta,
porque ironicamente acho que é o único jeito que tenho
de não morrer
Eu tenho esses dias
em que quero me excluir
numa bolha feita de nada e de silêncio
Esses dias em que tudo é tão cheio
e tão denso que só é…
vazio.
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