A Última Chance escrita por Caroline Oliveira


Capítulo 24
A serpente do deserto


Notas iniciais do capítulo

Olá, pessoal!! Mais um capítulo para vocês, com direito a algumas surpresas e algumas coisas legais apesar do caos! Espero que gostem!



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Edmundo Pevensie

A Feiticeira Branca fitava meus olhos com deleite, apreciando cada músculo rígido que marcavam minha pele ao tentar evitar transparecer a apreensão e a raiva que eu sentia por estar em suas mãos outra vez.

— Não vai dizer nada? - Indagou, o sorriso cínico se pronunciando nos cantos de seus lábios naturalmente avermelhados. Por mais que eu odiasse admitir, sua voz me causava péssimos arrepios - Onde está o Grande Leão?

— Tem tanto medo dele assim que não consegue dizer seu nome? - Retruquei. Se Jadis pensava que eu era o menino malcriado e medroso que ela conheceu, ela estava muito enganada. Eu não a deixaria pensar que me fazia ter medo.

Ela me jogou de volta ao chão e eu grunhi com o impacto de volta ao solo. Mais sangue escorreu da mão ferida quando tentei evitar bater o rosto e eu rangi os dentes com a dor. Quando voltei a olhar Jadis, olhos verdes vibravam de ódio por minhas palavras. Seu sorriso se desfez num instante.

— Matei Aslam uma vez - Vangloriou-se, tentando contar uma vantagem vazia para se sobressair apesar da derrota, a respiração irregular denunciando que a tirei do sério - Matarei aquele leão petulante outra vez!

— Você o matou porque ele deixou! - Rebati e seus punhos se fecharam - Ele matou você e a fez passar mais de mil anos vagando como uma alma penada!

Ela chutou o meu rosto de repente, um golpe tão certeiro e rápido que jogou minha cabeça para o lado e eu soltei um grunhido. Meu lábio foi cortado e eu o toquei com a mão ensanguentada, vendo o quanto sangrava. Eu precisava estancar aquele corte.

— Aslam não terá a quem salvar quando eu destruir Nárnia! - Bradou impetuosa. Não esperava por aquelas palavras. Para mim, a feiticeira havia se unido à Cietriz para enfraquecer Nárnia e dominá-la, até porque esse era o desejo de Ahadash. O que ela queria dizer com "destruir"? - Ah, ficou confuso? - Ela falou com o tom de quem fala com uma criança, imbuída de falsa piedade - Não restará pedra sobre pedra, Edmundo.

Katrizia pigarrou.

— Não é minha intenção interromper um reencontro tão fervoroso - Seu tom era risonho, ela estava adorando ver Jadis com raiva enquanto judiava de mim - O tisroc, que ele viva para sempre, vai querer vê-la.

A sacerdotisa caminhou para nós, o vestido oscilando. Jadis suspirou.

— Vou precisar de um vestido à altura para a ocasião - A feiticeira advertiu. Ela se abaixou diante de mim e segurou meu rosto como costumava fazer quando me tinha capturado. Um sorriso desdenhoso se desenhou em seu rosto. - Levarei esse pequeno troféu para ele.

— Você, Ahadash, a serpente do deserto, todos podem confabular o plano que quiserem! - Retruquei, mexendo o rosto para tentar fazê-la me largar, sem sucesso - Nunca vão vencer!

— É o que veremos! - Sussurrou por fim.

 

Caspian X

Decidi conversar sobre meus planos com os soldados após o café da manhã, para recuperar as forças com calma antes de partirmos. Esperei pacientemente com Trumpkin e mais dois soldados do lado de fora da caverna, fazendo sua guarda. Susana havia insistido para que eu descansasse por causa da perna, mas preferia suportar um pouco de dor enquanto garantia a segurança dos feridos e dela própria.

— Retornaremos para Nárnia? - Trumpkin indagou, interrompendo o silêncio. Sorri de canto.

— Não pode esperar para saber com todos os outros? - Questionei calmamente, soltando o cabo da Rhindon para cruzar os braços.

— Pensei que fôssemos amigos, não mereço o privilégio de saber antes? - Argumentou - Eu sou membro do seu conselho, mereço mais consideração!

— Merece uma noite ao relento para abater esse seu ego inflado! - Retruquei e ele riu brevemente.

Quando todos os soldados foram reunidos do lado de fora da caverna, uns auxiliando os outros para andarem mais rápido apesar dos ferimentos, esperei que Susana se colocasse ao meu lado para começar a reunião.

— Viemos a Arquelândia com um objetivo claro - Comecei - Recuperar a lança da rainha Cisne Branco para matar a serpente do deserto e findar a seca que assola Nárnia. Eu imaginava que poderíamos ser atacados pelo caminho, mas não uma investida tão covarde que nos tirou tantos companheiros de luta. - Fiz uma pausa - Se alguém tiver uma objeção a fazer a respeito do que direi a seguir, fique à vontade: achei por bem retornarmos a Nárnia enquanto ainda estamos antes da metade do território arquelandês. Temos muitos feridos para prosseguirmos com a viagem e não suportaremos mais ataques calormanos.

— Além disso - Susana se pronunciou - Um ataque tão preciso e expressivo nos faz acreditar que existe um informante nos traindo em Nárnia. Pedro, Lúcia e todos os que ficaram podem estar correndo perigo.

— E ainda temos o fato de que Edmundo continua desaparecido e não temos condições de procurá-lo sozinhos - Continuei - Se Ahadash não conquistou Anvard, está prestes a fazê-lo e o próximo passo será Nárnia.

— Majestade - Garvis pediu a palavra, fazendo um sinal com a mão que não estava imobilizada - Eu posso ir com alguns de nós até o Flecha Sinuosa. Um grupo menor, sem os reis por perto, podem chamar menos atenção e obter sucesso.

— Eu concordo com o rei Caspian - Trumpkin disse - Sobre a maioria de nós, inclusive os reis, devem voltar para Nárnia. Mas precisamos desta tal lança para restaurar a fertilidade da terra!

— Estariam dispostos a se arriscarem em tão pequeno número? - Indaguei. - Não quero que se exponham além do necessário. Eu acreditei que se nos dividíssemos, acalmaríamos os ânimos de Naim e conseguiríamos completar a missão, mas…

Fui interrompido por sons de passos na floresta, uma pessoa apenas, correndo entre as árvores. Os soldados hígidos armaram-se, assim como eu que tirei a espada da bainha. Susana não havia se separado do arco desde que ficou sem ele durante a batalha e logo colocou a flecha no arco, tal qual Trumpkin fez também.

Os sons ficaram cada vez mais nítidos, até que a figura de Neriah se revelou para nós.

— Ai, eu encontrei vocês! - Exclamou ofegante, apoiando as mãos nas coxas para descansar.

Os cabelos castanhos estavam bagunçados como era de se esperar depois de um ataque. Ela parecia ter rasgado a barra do vestido para correr mais rápido e os olhos verdes-amarelados estavam arregalados, com as pupilas dilatadas, alertas.

— Neriah! - Susana exclamou de volta, logo guardando o arco e a flecha na aljava. Ela caminhou até a princesa da Arquelândia e as duas se abraçaram.

— O que aconteceu, princesa Neriah? - Indaguei, aproximando-me também ao passo que guardava a espada.

— Fomos atacados perto da montanha de Anvard! - Explicou ainda ofegante, depois de ter se separado de Susana - O campo aberto que cerca a montanha está tomado pelos exércitos de Calormânia! - Fez uma pausa e engoliu em seco - Preparam um ataque contra Nárnia de certeza!

— E onde está o seu pai e Tácito? - Susana indagou - Por acaso viu algum grupo de soldados com Edmundo?!

— Não vi o seu irmão. - Neriah não pareceu surpresa ao ouvir falar de Edmundo - Acho que meu pai e Tácito foram rendidos, mas meu noivo conseguiu me ajudar a escapar antes disso. Fui perseguida por soldados calormanos até que … - Passos tranquilos produziram um som familiar sobre as poucas folhas caídas no chão - Ele apareceu para me salvar.

Meu coração disparou ao ver o Grande Leão, maior do que a última vez que eu o havia visto, saiu de dentre as árvores com seu semblante imponente que ao mesmo tempo nos transmitia tanta paz.

 

Pedro Pevensie

Reuni os membros do conselho que não haviam partido com Caspian para sua missão em Arquelândia. Glenstorm, Caça Trufas, Dr. Cornelius, Theodor, Argos, entre outros estavam presentes. Tanto eu quanto ela e Liliandil estávamos acomodados nas cadeiras dos lordes que não estavam presentes. Ainda que Caspian houvesse me deixado no comando, não achava adequado me sentar em seu trono.

— Majestade - Caça-Trufas pediu a palavra - Detesto ser portador dessa notícia infeliz, mas se achávamos que as coisas não poderiam ficar piores…

— O que foi essa vez? - Meu tom era de puro desânimo, nem forças para me desesperar eu tinha mais. 

Meu coração estava a mil desde que Lúcia recebeu a mensagem de Aslam. Meus pensamentos que já eram consumidos em resolver a seca agora se concentravam em organizar os detalhes da formação dos batalhões com Glenstorm para derrotar Calormânia e salvar Edmundo.

— As poucas reservas que ainda tínhamos foram envenenadas - Levantei-me num rompante e as exclamações dos outros conselheiros mostravam a surpresa deles também - Os primeiros telmarinos que receberam suas partes dos cereais morreram. Felizmente, se é que posso dizer, notamos o problema no início e suspendemos a distribuição.

— Aslam tenha misericórdia de nós! - Lúcia lamentou, massageando as têmporas, os olhos azuis ainda mais arregalados pelo desespero - Como as pessoas vão se alimentar agora?

— Tomei a liberdade de separar parte do mantimento do castelo para atender a necessidade dos aldeões - Theodor confessou.

— Agradecemos a sua eficiência, Theodor - Falei sinceramente - As cortes já partiram, então temos menos pessoas a atender. Acho que todos os nobres compreendem a nossa situação. Não é momento de luxo.

Theodor assentiu.

— Aslam nos deu ordem para marcharmos em breve em direção à Arquelândia. - Continuei, os olhares atentos se concentraram em mim - Este foi o motivo de solicitar essa reunião às pressas. Peço que Theodor e Windren auxiliem a Rainha Lúcia e Liliandil - Mostrei minha irmã e a estrela com uma das mãos - A uma pequena jornada ao Ermo do Lampião. O rei Edmundo corre perigo e seu salvamento depende de Liliandil recuperar seus poderes de estrela.

— Será uma honra, milorde - Theodor agradeceu a confiança.

— Iremos só nós e alguns soldados, majestade? - Windren era a esposa do general Glenstorm, ambos eram centauros. Ela me indagou com um olhar atento, ciente da responsabilidade da missão que estava em suas mãos.

— Não - Aí vinha a parte difícil. Senti meu peito subir e descer diante da decisão de permitir ou não que Rilian fosse com elas. - Aslam pediu que mais uma pessoa as acompanhasse.

Assenti para o guarda telmarino que estava do lado de dentro da porta da sala do trono e este abriu a porta para que o minotauro carcereiro trouxesse Rilian acorrentado até o centro da sala.

— O homem que tentou matar a rainha Susana irá junto? - Glenstorm perguntou, seu tom não denotava qualquer tipo de acusação, apesar dos burburinhos tomarem conta do salão.

Então fiz um sinal para que todos se acalmassem.

— Senhores, senhores! - Pedi. Silêncio se fez na sala - A rainha Susana é minha irmã e não imaginam a preocupação e a raiva que o ato impensado de Rilian me fez passar. - O rapaz baixou a cabeça e eu troquei um olhar com Lúcia - Quando Rilian descobriu a verdade a respeito da morte de seu pai, no entanto, ele se arrependeu amargamente do que fez, segundo conta a rainha Lúcia.

Aquela foi a deixa para que Lúcia falasse. 

— Eu acredito no arrependimento de Rilian, mas não cabe a mim dar a sentença a ele - Lúcia se aproximou de Rilian respeitosamente enquanto falava. - O julgamento de Rilian acontecerá depois da nossa batalha e vitória contra os ardis de Calormânia. Mas nós gostaríamos que ouvissem o que Rilian tem a dizer antes que o rei Pedro decida se seguirá ou não a ordem de Aslam.

— Uma ordem de Aslam deve ser seguida de imediato! - Windren argumentou.

— O Leão não pode nos dizer o que fazer sem que antes pensemos a respeito! - Theodor retrucou - O garoto quase cometeu um regicídio!

— Contra a lei não há argumentos! - Argos reforçou - O rapaz não é digno de confiança e deve ser punido!

— Pela lei, realmente não. - Dr. Cornelius ressaltou - Mas lembrem-se que Aslam pagou a traição de Edmundo e seu delito foi perdoado. O garoto traidor rei se tornou e nenhum de nós tem o direito de questionar suas ordens.

— Deixem que o rapaz fale! - Caça-Trufas esbravejou. - Os narnianos deram uma chance ao rei Caspian um dia e todos foram salvos. Deixe que o rapaz se explique!

Rilian observava as discussões a seu respeito de cabeça baixa e eu podia ver apenas o girar de seus olhos acompanhando aqueles que falavam. Ele então ergueu a cabeça e girou nos próprios pés, o minotauro dando uma folga justa nas correntes em suas mãos para permitir seu movimento.

— Eu prometo ser breve - Começou ele - Primeiro eu gostaria que entendessem que cheguei a Nárnia a procura de meu pai, mas ele estava morto. Eu confesso que meu comportamento anterior ao acontecido não me defende. - Ele fez uma pausa para engolir em seco, os olhos levemente marejados - Eu negligenciei o meu irmão e destruí minha vida. Mas eu fui enganado pela serpente do deserto.

— O que a mulher que trouxe a seca para Nárnia tem a ver com isso? - Theodor indagou.

— Ela me fez ter uma visão. - Explicou e passei a realmente prestar atenção no que dizia ao invés de analisar as reações dos conselheiros - Mostrou o usurpador Miraz sendo acertado por uma flecha e a rainha Susana sobre o monte.

— Lorde Sopespian fez parecer que tínhamos cometido traição para iniciar o ataque - Lúcia relembrou - Ela fez o mesmo com Rilian e por isso ele atacou a rainha Susana.

— Sei bem que meu ato poderia ter tido consequência terríveis e injustas - Reconheceu - Sei também que pela lei eu não mereço perdão. Mas eu me arrependo de tudo o que fiz e espero poder cumprir a ordem de Aslam numa tentativa de me redimir dos meus erros, mesmo que eu seja condenado depois.

— Acredita em Aslam, rapaz? - Windren perguntou.

— A rainha Lúcia me fez perceber que ele é sempre quem auxilia vocês quando estão em apuros - Ele olhou para minha irmã com certa admiração - Acabaram de dizer que foi o próprio Aslam quem perdoou o rei Edmundo e deu ao rei Caspian a chance de provar seu valor. Se foi o próprio Aslam que me deu essa incumbência - Dirigiu seus olhos para mim - Eu pretendo cumpri-la se me permitirem.

Eu detestava admitir, mas via em Rilian uma luz no semblante que vira em poucas pessoas. Via coragem, determinação e até mesmo boas intenções. Via a luz da perseverança, a mesma luz que via em Lúcia, Edmundo, Susana, Caspian, Glenstorm, Trumpkin, até mesmo em Ripchip, Oreius e Tumnus que não estavam mais entre nós. A luz redentora de Aslam.

— Se ninguém tiver objeção…  - Dei o braço a torcer - Eu permitirei que Rilian vá até o Ermo do Lampião.

Os ombros de Rilian caíram de alívio e ele arfou. Lúcia tentou suprimir o sorriso, mas a felicidade estava estampada em seu rosto. A bondade de Lúcia e sua fé inabalável em Aslam e até nas pessoas eram mais que dignas da minha admiração. Lúcia havia crescido e, apesar de ainda não ser uma adulta, era mais sábia que eu muitas vezes.

— Glenstorm! - Chamei - Agora que essa questão está resolvida e o exército está pronto, eu quero que você coloque esse castelo de ponta cabeça! - Ele franziu o cenho - Existe um traidor entre nós e isso é fato. Alguém alertou Ahadash da partida de Caspian, Edmundo e Susana e por isso meu irmão foi sequestrado. Alguém envenenou a comida dos celeiros e isso não é obra do acaso. Eu quero esse traidor hoje e no mais tardar amanhã nessa sala para ser julgado!

— Sim, majestade - Glenstorm bateu no peito como uma forma de dizer que acatava a ordenança e saiu em direção à porta, os cascos soando contra o chão do salão.

A reunião foi encerrada e Lúcia veio até mim para me abraçar como uma criança que recebe o presente de um pai.

— Obrigada por confiar - Agradeceu após me soltar - Em mim e principalmente em Aslam.

— Só peço que tenha cuidado - Pedi - Rilian pode estar arrependido, mas a serpente do deserto fará de tudo para nos impedir de vencê-la. E se Jadis estiver mesmo para voltar…

— Teremos problemas em dobro. - Completou.

Caminhamos em direção a Rilian e eu fiz um sinal para que o minotauro o soltasse de suas correntes. O corte em seu rosto feito pelo murro de Caspian já estava sarando, havia pouco menos de um rastro de casquinha sobre o corte e o rosto estava desinchado.

— Eu só tenho a agradecer a senhora, rainha Lúcia - Ele falou quando chegamos - Ninguém confiou tanto no que eu ainda tenho de bom quanto a senhora. - Lúcia sorriu - Eu ouvi o seu conselho e falei com Aslam. Acho que ele me ouviu.

— Ele ouviu sim - Liliandil se aproximou - Agora cabe a você fazer por merecer. Preciso dos meus poderes para ontem, rapaz, então trate de se esforçar!

Rilian sorriu e estava começando a não me sentir tão desconfortável com a ideia de ele livre e nos ajudando. Que Aslam não permitisse que eu estivesse errado.

 

Edmundo Pevensie

Katrizia levou a mim e a Jadis para o castelo, não sem antes passar pelo maldito acampamento de novo. Os olhares, felizmente, estavam concentrados na aparência medonha da feiticeira pálida e incrivelmente alta do que em mim, mero rei derrotado. 

As vestes brancas rasgadas de Jadis foram trocadas por um vestido branco mais requintado. A gola era semelhante a de um casaco de frio, as mangas eram estreitas com tufos de pele no pulso e ele era acinturado e se abria glorioso, arrastando-se pelo chão.

Fui levado como seu troféu para a sala do trono; os soldados voltaram a me amarrar com cordas, com o pequeno alento de ter um pano surrado para estancar o ferimento da mão. Esperava não pegar uma infecção com aquele pano sujo.

Guardas calormanos me acompanhavam lado a lado, com Jadis na frente e Katrizia entre nós. Não conseguia parar de pensar que a barra de seu vestido se assemelhava a uma cauda de cobra.

O guarda da esquerda tinha uma navalha no bolso, típica de fazer a barba entre os oficiais do exército. Ele provavelmente tinha acordado atrasado e precisou retocar a barba, deixando a navalha no bolso ao sair às pressas. Era a minha oportunidade de me livrar das cordas, roubar uma espada e fugir dali.

A sala do trono de Arquelândia estava totalmente modificada do que eu me lembrava, apesar de saber que tinham se passado mais de mil anos. A decoração tipicamente calormana substituiu os arcos e as pinturas arquelandesas que mantinham na memória grandes figuras do passado, como os príncipes Cor e Corin, a princesa Aravis, todos os que eu havia conhecido no meu reinado de quinze anos.

Ahadash estava acomodado no trono, com uma taça de vinho na mão e beliscando alguns petiscos trazidos a ele por uma serva arquelandesa que tremia de medo.

— Deixem-nos! - Ordenou o tisroc. Os guardas que ficavam entre as colunas do corredor até o trono saíram e as servas também, inclusive a que servia o rei, que suspirou aliviada. 

Os guardas ao meu lado fizeram menção de sair e o da esquerda se virou, largando a corda pela qual me puxava. Aproveitando-me de que Katrizia e Jadis olhavam para frente e que o rei estava bêbado demais para notar o meu furto, em um movimento rápido puxei a navalha do bolso do soldado. Senti a lâmina cortar de leve um dos meus dedos, mas já estava tão cheio de sangue na mão que ninguém notaria. Escondi a pequena arma entre as mãos unidas e fingi que nada estava acontecendo.

— Embora eu odeie Nárnia com todas as minhas forças - Ahadash fez uma pausa para tomar o último gole da taça e a jogar no chão - Devo admitir que suas mulheres são de uma beleza estonteante.

Jadis riu-se e eu notei a menção encoberta à minha irmã Susana em seu elogio. Jadis, porém, não era humana, então provavelmente seus sentimentos deviam ser um pouco diferentes; eu duvidava que ela desse importância ao desejo carnal e a atrações físicas.

— O humor dos calormanos é realmente precioso - Comentou ela. Ahadash levantou-se do trono para vir ao seu encontro - Imagino que o exército esteja pronto para marchar em direção a Nárnia.

— Certamente - Respondeu o tisroc. Comecei a cortar as cordas devagar, fazendo o mínimo de som possível para não ser descoberto - O povo narniano já sofre com a seca, seus exércitos devem estar fracos e nossa fonte de informações já tratou de envenenar suas provisões.

— Perfeito! - Jadis exclamou orgulhosa. Lançou um olhar desafiador para mim e eu fingi que nada estava fazendo, comprimindo os lábios com ódio pela sua satisfação em ver meu povo sofrer - Espero que tenha gostado do nosso presente.

— O capitão comentou que tinha capturado o rei Edmundo para seu ritual - O tisroc confirmou. Katrizia andou devagar e passou por Jadis, caminhando devagar até o rei - Será uma bela barganha em troca da rendição dos narnianos.

— O rei Pedro ficará desesperado, decerto - Falou a feiticeira - Mas não é minha intenção que haja uma troca, ou dominação.

— O que quer dizer? - O tisroc ergueu os olhos para Jadis, o raciocínio lento, comprometido pelo vinho.

Katrizia caminhou até a mesa em que os aperitivos do tisroc estavam repousados, enquanto Jadis distraía Ahadash com sua conversa fiada, embaraçando-o com seus encantos. Eu reconhecia aquele tom, fora enganado por aquelas mesmas palavras doces.

— Quero dizer que não é minha intenção governar Nárnia outra vez - Explicou ela, caminhando para cada vez mais perto de Ahadash por sua frente, enquanto Katrizia vinha por trás com algo nas mãos.

Eu estava prevendo o que aconteceria ali e não sabia o que fazer. Ahadash merecia uma morte bem feia, mas uma traição daquele tamanho não era algo que eu pudesse concordar. Tratei de cortar as cordas mais rápido, aproveitando que a feiticeira e a sacerdotisa enlaçavam o tisroc em sua teia.

— Não nos auxiliará em nossa investida? - O tisroc estava surpreso. Ele provavelmente tinha sido convencido pela serpente do deserto de que Jadis seria seu triunfo para a vitória sobre Nárnia. Estava curioso, inclusive, por não ter visto a tal Cietriz até então.

— Na verdade você é quem me auxiliará - Jadis tocou o rosto do rei com falso afeto, demorando seus dedos pálidos na pele morena do rei até alcançar sua barba - Na destruição daquele reino medíocre.

— Mas esse não foi… - A voz do tisroc foi interrompida por ele mesmo ao ser golpeado.

Quando Jadis se afastou dele e Katrizia também, Ahadash caiu ajoelhado, sangue escorrendo por sua boca, vindo de alguma parte do tubo digestivo.

— Aprenda uma coisa antes de morrer, humano infeliz - Jadis disse quando Ahadash caiu de corpo inteiro no chão, agonizando enquanto seu sangue jorrava do golpe e banhava o piso da sala do trono de Naim - A feiticeira branca não deve fidelidade a ninguém.

— Trai-d-do-ra! - Ahadash agonizou para Katrizia, que ainda segurava a faca.

A vida deixou Ahadash com a mesma pressa com que cortei as cordas. Eu precisava fugir dali. Larguei as cordas no chão e corri em direção à porta, procurando ficar bem longe daquelas loucas.

— Onde pensa que vai, Edmundo?! - A voz de Jadis soou alta, mas não me deixei amedrontar.

Corri com a urgência de lutar pela minha vida, mas antes que pudesse alcançar a porta, gelo congelou a maçaneta. Tentei puxá-la, bati contra o gelo com a navalha, cortando ainda mais meus dedos, mas ela não cedia.

Ouvi a risada baixa de Jadis e me virei para ela, que mantinha sua mão levantada pela magia que acabara de executar.

— Não se preocupe - Katrizia disse a Jadis - Eu me certificarei de que ele não tenha mais para onde correr. - Engoli em seco com a ameaça.

E vi diante de mim a cena mais horrenda e escabrosa que já pude presenciar: Katrizia jogou a faca no chão e abriu os braços. Seus braços e sua cabeça começaram a encolher à medida que suas vestes caíam no chão sobre ela, a pele bronzeada tornando-se um verde escuro até ela sumir debaixo das roupas cor de laranja.

Foi quando ouvi o sibilo de cobra. Serpentes marinhas assombravam meus pesadelos desde antes de uma delas virar realidade na Ilha Negra e eu não tinha boas experiências com cobras, afinal havia sido picado por uma.

A serpente que saiu de debaixo das roupas e joias me era familiar. Era a mesma que habitava a tenda que Susana e eu encontramos no dia em que chegamos a Nárnia. A cobra, porém, tornou-se maior à medida que vinha na minha direção e eu não esperei muito para começar a fugir dela pela sala.

Escondi-me atrás de uma coluna, mas a cobra maior do que eu poderia prever sabia exatamente onde eu estava. Meu coração acelerado não me permitia pensar na dor, ou em desistir de fugir, mesmo sabendo que a sala fechada decretava a minha derrota.

Corri para a outra coluna e fui fazendo um zigue-zague com a serpente ávida por sangue até pensar em algo melhor.

— Sabe que não tem saída, Edmundo! - Jadis bradou, lançando estacas de gelo com sua magia na minha direção.

Quando corri para outra coluna, a cobra gigante bateu com a cauda na que estava a seguir aparecendo na minha frente de repente. Me joguei para a direita a fim de desviar da coluna que se quebrou espalhando escombros na sala e levantando poeira, até que senti algo me perfurar nas costas. A sensação era que o golpe havia criado raízes e estava se espalhando, destruindo meus nervos e me fazendo urrar de dor. A serpente havia me picado, numa proporção muito maior do que na primeira vez.

— Você vai definhar em dor e sofrimento pelo resto dos seus dias - Os pés de Katrizia se colocaram diante de mim, mas já não era ela.

Quando ergui meus olhos, o corpo de cobra havia se desfeito e uma aparência humana voltou a existir, mas o rosto era completamente diferente. O rosto de uma mulher de meia idade de Katrizia se transformou num rosto mais jovem, que em idade se assemelhava à de Susana, Neriah ou Hiandra. Eram feições características de calormanas, porém com o brilho ferrenho de uma feiticeira cruel e vingativa.

Então era no corpo de Katrizia que Cietriz estava se escondendo. A serpente do deserto finalmente se revelou e eu estava sucumbindo ao seu veneno.


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Notas finais do capítulo

Eaii gente? O que acharam?
Jadis voltou perigosíssima e o que acharam da revelação da Cietriz? Já sabiam quem ela era?
E a redenção do Rilian? Acham que Pedro fez bem em deixá-lo ir na missão?
E o retorno de Aslam? Como acham que o Leão vai agir?
Não esqueçam de comentar! É muito importante para eu saber o que estão achando!
Beijos!!



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