A Aranha na Teia escrita por Elvish Song


Capítulo 14
Laços


Notas iniciais do capítulo

Oláááá! Estou de volta, com um capítulo para misturar os laços dos Vingadores se tornando mais fortes, como equipe e família, momentos tensos, momentos fofos, trechos para plantar teorias nas cabeças de todo mundo e o início de muita ação! Escrito com muito carinho, então, espero que gostem!!!
Agradeço de todo o coração a todos que vêm comentando e apoiando, sendo pacientes com a demora dos capítulos. Obrigada, mesmo. A participação de vocês é tudo, e dá vida a essa história!
AVISO DE GATILHO: há a descrição detalhada de um pesadelo e de um episódio de terror noturno.



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  - Respire fundo, Lucy. Mantenha o foco. - Jean Grey se sentava defronte à menina, ambas no chão, pernas cruzadas, aproveitando a sombra das árvores à beira do lago. - Agora, esvazie sua mente.

    O rosto plácido da criança se contraiu levemente enquanto recebia inúmeras mensagens e sinais, não apenas das pessoas que passavam, mas de tudo o que estava vivo ao seu redor. Feromônios, sinais químicos e ondas eletromagnéticas chegavam a seu cérebro como bombas de informação sobre absolutamente tudo! A vida em si era interligada, informações conectando tudo, como um gigantesco cérebro. Foi apenas por se manter em estado de contemplação que sua cabeça não doeu com o bombardeamento! Sua respiração se aprofundou, e aos poucos a menina selecionou os pensamentos e informações que desejava captar. Uma dupla que nadava no lago. Um esquilo na árvore, bem acima. A professora Grey. O restante se formava apenas um leve chiado no fundo de sua mente, quase imperceptível à medida que focava mais e mais em elementos definidos. Gradualmente, tudo foi desaparecendo, enquanto toda a atenção da criança se voltava para a própria respiração, para a percepção consciente dos sinais que o próprio corpo lhe enviava. Podia sentir as cargas elétricas percorrendo seus nervos a cada contração e relaxamento muscular, a cada respiração, a cada batida do coração. Sentia a pressão do sangue em suas veias e artérias, vagamente percebia como o cérebro enviava sinais reguladores a cada célula. Quanto mais se concentrava, mais distantes e silenciosas se tornavam as vozes mentais do mundo circundante, até tudo desaparecer e restar apenas ela e sua respiração. Silêncio. Serenidade.

    - Muito melhor. - Jean sorriu para a aluna quando esta abriu os olhos. - Leva algum tempo, no começo, mas com a prática, aprenderá a silenciar em um instante as vozes alheias, sem precisar se bloquear. 

    - É um pouco parecido com os exercícios de respiração e meditação que aprendi com tio Banner. 

    - Ele lhe ensinou bem, então. Levei muito tempo para ter seu nível de controle.

    - Como era, quando tinha a minha idade? - Quando se tinha alguém com os mesmos poderes, não se podia perder a oportunidade de entender melhor e saber como a outra pessoa havia lidado, até mesmo para ter alguma ideia de como as próprias habilidades seriam, no futuro. Esperava não ter ultrapassado algum limite, mas Jean Grey deu de ombros:

    - Um barulho infernal, o tempo todo. Meus poderes tinham acabado de despertar, e eu projetava em redor o caos que estava dentro de minha mente. Mas você parece ter habilidades levemente diferentes das minhas.

    - Diferentes? - Oras, não eram ambas telepatas?

    - Sim. Eu tenho duas habilidades distintas: telepatia e telecinese. Mas sua telepatia parece não ser o poder original, e sim uma consequência dele. Você não lê apenas pensamentos propriamente ditos: consegue entender sinais químicos, a comunicação entre seres de mentes muito simples, e até mesmo da vegetação. Mas já vi, também, sua presença distorcer sinais de rádio, televisão e internet. Você capta intuitivamente as informações através do contato e da proximidade, sem precisar entrar na mente de quem for. Finalmente, consegue canalizar energia de seu próprio corpo para criar impulsos que potencializam seus golpes, quando luta. Tenho fortes motivos para acreditar que sua mutação é, na verdade, a compreensão e manipulação de campos e ondas eletromagnéticas. 

    Romanoff não precisou perguntar como a professora sabia disso: Jean Grey estava constantemente monitorando seus pensamentos, e a garota não fazia questão de os esconder, uma vez que davam à sua orientadora melhor noção de como ensiná-la. Ainda assim, estava curiosa.

    - Às vezes, consigo reprogramar as inteligências artificiais do tio Tony, como se estivesse manipulando os pensamentos de alguém. As mais simples, só. Acho que nunca comentei isso.

    - Mais um ponto para a minha teoria. Você ainda é muito nova, mas podemos começar a trabalhar em um campo maior. Você pode aprender a comandar campos eletromagnéticos voluntariamente, e seria realmente útil, especialmente para sua proteção.

    Lucy ficou em silêncio, lembrando do período que desejava apagar da própria memória: como usavam ondas de alta frequência para puni-la, na HIDRA. Não tinha certeza se gostava da ideia da diretora. Mas... Se pudesse criar um campo de força, então não poderiam machucá-la novamente, certo? Pelo menos não daquele jeito.

    Grey franziu o cenho ao entrever os pensamentos de sua protegida e meneou a cabeça:

    - Ninguém mais vai te ferir desse modo, Lucy. Eu prometo. - Dedos gentis acariciaram os cabelos ruivos. - Podemos continuar depois. Está quase na hora do almoço, e tenho certeza de que Ellie e Yukio estão guardando sobremesa extra para você.

A menina olhou por alguns instantes para Jean Grey, uma das sobrancelhas erguidas enquanto avaliava sua mentora, então suspirou e deu de ombros. A outra ruiva não sabia muito mais do que ela mesma, e precisaria conversar com o professor Xavier; Romanoff já conhecera o ancião, e o vira cerca duas vezes depois, sempre por breves períodos, suficientes apenas para compreender se tratar de um homem sábio, gentil e disposto a ajudar de todas as formas que pudesse os jovens mutantes a encontrar o próprio lugar. Ele também a analisara, mas não fizera nenhum comentário e apenas a tratara como a aluna bem dotada que era. Talvez pudesse aproveitar a oportunidade e conversar com o professor, também. Ele certamente poderia falar mais a respeito dessas habilidades que vinham aflorando em si.

*****************************

 

Após o almoço, a criança foi dispensada da aula seguinte para ir com a diretora até a biblioteca, onde Charles Xavier lia tranquilamente em sua cadeira, o semblante sereno e distraído de quem já viveu o suficiente para apreciar cada momento pelo que é.

— Boa tarde, senhoritas. - Sua voz soou convidativa enquanto fechava o livro e a cadeira se virava para as moças. - Bom vê-la novamente, Lucy. Os professores falam muito bem a seu respeito.

— Boa tarde, professor. - A criança sorriu e se sentou com Jean no sofá de estofado verde.

— Adoro suas visitas, Jean, assim como as dos alunos, mas sei que não veio me procurar para uma conversa amena. O que há com a pequena? - Os olhos do idoso foram de uma para outra, ainda serenos, porém mais sérios do que anteriormente. Jean Grey segurou a mão da aluna, para lhe passar segurança e conforto, certa de que Lucy já captara a seriedade da conversa não-verbal entre os adultos, e se explicou:

— Acredito que tenhamos… Que eu tenha me precipitado quanto à natureza dos poderes de Lucy. Sua telepatia é o elemento mais manifesto, sim, mas ela se mostra sensível a mentes que sequer poderiam ser chamadas assim. Cérebros de animais primitivos, a própria vegetação, que sequer possui sistema nervoso. Considerei biocinese, mas ela também distorce campos magnéticos, e me disse ser capaz não só de compreender, mas de influenciar inteligências artificiais simples.

Xavier olhava para a criança com receoso fascínio: que singularidade! A cadeira se aproximou um pouco mais, e o telepata sorriu ternamente para Lucy, que retribuiu de modo preocupado:

— O que eu sou, professor?

— Uma jovem mutante, ainda descobrindo seu potencial. Como todos aqui são, ou já foram. - Ele lhe estendeu a mão com gentileza. - Posso?

Entendendo perfeitamente a intenção do fundador da escola - era impossível, em uma sala com três telepatas, que a comunicação não se desse em níveis sutis que passavam mais informações do que as palavras proferidas - a menina assentiu e colocou sua pequena mão sobre a dele, sentindo a mente familiar tocar a sua, procurando não por pensamentos ou memórias, mas sim pela estrutura como o cérebro da pequena operava. Não era invasivo como podia parecer. Era apenas… Como um exame. Impessoal e cuidadoso, como quando Bruce Banner cuidava de seus eventuais machucados. Finalmente ele se afastou, mas não se preocupou em sustentar o sorriso, uma vez que Romanoff era perfeitamente capaz de dizer quando se tratava de algo genuíno ou não.

— Você é bastante singular, minha criança. A capacidade de manipular energia é algo incrivelmente raro. - E ante a pergunta muda no olhar de ambas as jovens. - Não, não há o que temer. Você é uma boa pessoa e, com orientação adequada, será uma grande mulher. - Agora o senhor sorria novamente, de modo reconfortante. - Agora, querida, acredito que tenha algum tempo livre antes da próxima aula. Preciso conversar com a diretora Grey, por favor. E o livro que você quer está na terceira estante da esquerda.

— Obrigada, professor Xavier. - Lucy se levantou e foi até as enormes estantes paralelas, não demorando para encontrar o livro sobre animais selvagens que procurava. Antes de sair, contudo, virou-se para os adultos. - Querem mama e papa aqui, amanhã, certo?

— Sim, querida, mas eu falarei com quem vier te buscar, hoje. Não se preocupe. 

— Está bem. - Não, ela não desistira de saber mais, mas seria muito mais fácil conseguir algo de sua família do que de dois telepatas adultos e treinados. E tanto quanto estava curiosa para saber mais sobre o que era, sabia muito bem quem era, e isso bastaria, por ora. - Boa tarde, professor, diretora.

Os adultos acenaram brevemente enquanto a garotinha desaparecia pela porta, os cachos ruivos balançando por sobre o casaco em seu saltitar. Foi apenas quando suas impressões mentais desvaneceram que, enfim, Jean Grey encarou o próprio mentor, cujo olhar era pura preocupação.

— Estava certa, Jean. Não é biocinese. Não apenas. - Ele respirou fundo. - Achávamos que mutantes nível ômega eram os mais poderosos que havia. Receio que, quando crescer, essa menina virá a se encaixar em uma nova categoria. 

“Professor, o que ela é, exatamente?” A diretora preferia ter aquela conversa em silêncio, e com mais do que apenas palavras. Queria entender os conceitos e o que seu mentor vira, ouvira e sentira nos pensamentos da criança.

“Lucy é capaz de captar, ler e manipular toda forma de emanação de energia. Como é criança, domina as mais sutis, como ondas elétricas e magnéticas. A telepatia é apenas uma consequência de ela captar, ler e projetar ondas e campos eletromagnéticos e, por meio deles ler, controlar, interpretar e induzir pensamentos e emoções. Mas ela ainda não completou quatro anos de existência, e seu corpo mal atingiu o desenvolvimento de oito anos. Ficará mais forte.”

“Quão mais forte?” Todo mutante precisava ser passível de contenção, se viesse a se tornar uma ameaça! Sabia disso melhor do que ninguém.

“Ainda é cedo para dizer, mas senti… Algo. Adormecido no subconsciente, imaturo, mas poderoso. Desejo testá-la, para dimensionar exatamente seu nível atual de poder, mas devemos manter nossos olhos atentos. Lucy não faz a menor ideia do poder que possui, e você entende muito bem o quanto pode ser assustador, quando começa a crescer.”

“Devo me preocupar?”

“Não. Seu nervosismo fará a pequena se sentir nervosa, também. Ela se sente confortável consigo mesma, e deve se manter assim. Devemos apenas falar com sua família, e nos manter alertas aos sinais. Estar aqui quando Lucy precisar, e ela irá. Mas antecipar-se ao que pode ou não ocorrer, nesses casos…” O ancião fitou a mulher a quem criara praticamente como sua filha, e o entendimento entre ambos permaneceu no ar.

— Obrigada, professor.

— Não, Jean. Eu agradeço. - Inclinando-se para frente, ele ajeitou uma mecha de cabelos da mulher e voltou a se aprumar na cadeira. - Não hesite em me procurar novamente, se precisar.

Jean assentiu com gratidão e arrumou a coberta sobre as pernas de seu mentor, como um gesto de carinho, antes de se levantar. Ainda conseguia perceber a presença de Lucy, distraída com seu livro em algum corredor vazio, e sorriu levemente com isso. A menina ficaria bem.

— Sim. Guiaremos a pequena, e sei que se sairá bem. Já conheci outra garotinha assim, e ela não me desapontou.

Os telepatas sorriram brevemente um para o outro, antes que a mulher deixasse a biblioteca e o senhor retomasse a própria leitura. 

*

 

Ninguém esperava pela reação violenta do equipamento às amostras expostas para leitura. Ou melhor… Ninguém esperava que as amostras reagissem, explodindo o medidor de frequência! A maioria estava a pouco mais de um metro, de forma que apenas estilhaços os atingiram, mas Bruce… Bem, o doutor se encontrava operando diretamente o procedimento, e tanto os estilhaços quanto o calor o atingiram em cheio, derrubando-o com violência do banco. Ah, não… Os colegas correram para ele, mas o médico estendeu os braços queimados e gritou:

— Saiam agora! Saiam! - Ele se contorcia em dor, mas não pelos ferimentos: lutava para impedir a transformação e dar aos amigos tempo de sair. Mas todos ali presentes sabiam muito bem que não podiam simplesmente deixar o Hulk se manifestar, ou ele poria abaixo todo o prédio!

— Qual é, cara, você consegue! - Tony ainda estava junto do amigo, segurando seu ombro. - Vamos respire. Você consegue. 

— TONY! - a voz já se modificava para um tom gutural, e saiu mais como um rugido. - SAIA DE PERTO! - Mesmo a contragosto, Stark foi obrigado a se afastar e assistir, torcendo para o amigo conseguir se conter, mas a batalha pelo controle parecia muito acirrada...

Apesar dos esforços de Banner, seu corpo se avolumou e esverdeou em meio a grunhidos e rugidos, enquanto as queimaduras se fechavam às vistas de todos. A transformação estacionou a meio caminho de se concluir, com o corpo de Banner algo maior que o de Thor, a pele manchada e mesclada ao verde intenso, os músculos começando a rasgar os tecidos: ele tremia, gania e lutava, apoiado nas mãos e pés, ofegante pelo esforço intenso. Mas quando o amigo deixou escapar um uivo animalesco de raiva, frustração, dor e agonia, o grupo entendeu que a luta estava perdida, enquanto a transformação se completava. 

Os quatro Vingadores se espremeram contra a parede, tensos: Thor preparou Mjolnir, Natasha e Clint assumiram posição defensiva, mas não ofensiva, e Tony se revestiu da armadura. Quando a enorme fera verde se voltou para o time, o Homem de Ferro caminhou devagar em direção ao Hulk, tentando apelar ao subconsciente, onde Banner ora aguardava. Um confronto ali seria trágico, e bem poderia destruir todo o prédio, matando todos ali presentes! Esperava conseguir apelar à amizade com Bruce para acalmar o Hulk. Por instinto, Natasha se movimentou discretamente para um dos múltiplos controles, acionando o alarme de incêndio e os protocolos de evacuação em todos os andares, exceto naquele, já vazio. Mesmo porque, o som das sirenes seria por si mesmo um gatilho à agressividade do Hulk, que já encarava o colega de modo ameaçador, por mais que Tony tentasse ser amigável:

— Então, Grandão? Sou eu, Tony. Estamos do mesmo lado. Eu sei que você levou um baita susto, mas todos nós levamos. Você é melhor do que isso. - Seus passos eram lentos, mas a Viúva Negra pôde antever o resultado quando os músculos do Hulk se contraíram. 

A criatura investiu violentamente contra Stark, o qual procurou se defender o melhor possível sem atacar diretamente o colega. Tinham de segurar tudo ali, pelo menos até o prédio ser evacuado! A armadura bloqueava os socos violentos, mas não deixava o Homem de Ferro imune aos ataques! Quando o amigo foi arremessado contra a parede de metal, afundando-se nela como se fosse um molde de gesso, e o gigantesco punho verde começou a socar o reator Arc - sem o qual Stark não conseguiria respirar dentro da armadura - Romanoff ergueu a mão para impedir os outros de avançar, enquanto ela mesma saltava por sobre a bancada e chamava em voz alta:

— HULK! - Sua voz não foi um grito, mas ecoou com firmeza e sonoridade, autoridade, e chamou a atenção da fera, cujos movimentos predatórios o viraram ameaçadoramente para a pequena mulher. Ela estava com medo. Apavorada, na verdade, mas ainda assim se mantinha em pé e imóvel, a despeito do forte cheiro de adrenalina e cortisol liberados, do tremor nos músculos, do modo como todo o sistema nervoso autônomo simpático gritava informações para o organismo da mulher. Os homens assistiam, impotentes; em último caso, Thor derrubaria Hulk e o prenderia ao chão com o Mjolnir, mas isso apenas daria tempo de evacuar totalmente o prédio, deixando-os então com uma criatura furiosa e indestrutível altamente agressiva e de instintos destruidores, que não pararia até sua fúria se abrandar e causaria incontáveis danos no prédio e na cidade, até ser contido. Só o que podiam fazer era confiar em Natasha, ainda que todo o corpo de Clint estivesse tenso e pronto para agir em proteção à parceira, retesado como a corda de seu arco ao ser distendido.

Hulk encarou a mulher, que se moveu de modo extremamente lento e recuou com extremo cuidado, abaixando-se sobre os joelhos sem tirar por um segundo os olhos dos do ser que a ameaçava. Hulk era como um animal: precisava se mostrar como inofensiva, não provocá-lo, mas acalmá-lo o suficiente para que se pudesse voltar a ser Banner. Apenas um animal. O que o ser humano seria, em seus primórdios… Um ser das cavernas particularmente enorme e indestrutível, mas de mente simples. Se aquilo falhasse, bom... O controle para selar as portas estava a um salto curto de distância. Não trancaria o Hulk para sempre e muito provavelmente a mataria, mas permitiria a Thor e Stark conterem a fera antes de maiores danos ocorrerem. Tomara que o plano A funcionasse...

Não, ela nunca se esquecera do dia em que aquele mesmo ser quase a matara no Helicarrier, e tinha medo. Natasha dava pouco valor à própria vida, mas não era uma suicida. Acima de tudo, ela era humana. Mesmo que sua mente sobrepujasse os instintos primitivos de lutar ou correr, ou mesmo de congelar, as sensações estavam ali: o coração perto dos 200 bpm, pupilas dilatadas, todos os sentidos em seu máximo, calafrios e arrepios percorrendo suas costas, braços, pernas… Um tremor imperceptível em todo o seu corpo, que se movia com menos fluidez e flexibilidade do que o normal. Seria um estado de pânico, se sua mente não assumisse o controle férreo de tudo. Sentia o chão vibrar sob seus pés a cada novo passo do Hulk, e da posição de joelhos, agachou-se contra a parede às suas costas, um dos joelhos no chão, pés prontos para fazê-la rolar para longe, se necessário! 

A criatura verde chegou cada vez mais perto, mais intrigada do que agressiva; em seus olhos era possível ver a confusão e leve reconhecimento. Com voz suave e hipnótica, o tom que usava para dobrar qualquer um à sua vontade, falou:

— Hulk, sou eu. Ninguém aqui vai te machucar. Sou eu, Natasha. - Ela se calou quando o rosto enorme ficou a centímetros do seu, a fera farejando-a ruidosamente. O medo causava até mesmo dor em seu peito, como se seu coração estivesse prestes a explodir, e ainda assim ficou imóvel. Mais ainda, obrigou-se a relaxar tanto quanto seria possível. E pareceu funcionar: os dedos enormes mexeram em seu cabelo, empurraram sua cabeça para o lado e finalmente a derrubaram no chão, quando a criatura perdeu seu interesse, vendo-a como não-ameaçadora.

 Do outro lado da sala, os homens tentavam seguir o exemplo de Romanoff e parecerem menores e o menos ameaçadores possível. Tony já se libertara da armadura, e não protestava nem um pouco em sentar no chão e permanecer parado até o Hulk se acalmar. Thor era menos adepto da inatividade, mas já recebera lições duras e valiosas sobre o momento de depor as armas. E pelo bem de seus amigos mortais, estava disposto a fazê-lo. Já Clint, ainda que repetisse os gestos da parceira, vira cada mínimo sinal do pânico dela, percebera sua tensão no modo como piscava, como respirava, como se movia. Sabia que terror era uma palavra adequada para descrever o estado no qual apenas o treinamento da Sala Vermelha a impedira de cair por completo. Hulk era uma das poucas coisas que Romanoff realmente temia, em se falando de inimigos. Ou de qualquer outra coisa. E o instinto de Barton sempre seria proteger Natasha, como ela o protegia. Mas era exatamente tal ensejo que o obrigava a não reagir, pois qualquer coisa poderia fazer Hulk decidir que havia ameaças presentes, e levar a uma luta potencialmente fatal.

Em meio ao silêncio quebrado apenas pelos rosnados e grunhidos do alter-ego de Banner, de repente algo saiu totalmente ao controle: o som de pezinhos correndo para o laboratório, chamando a atenção da fera, e a silhueta minúscula de Lucy adentrando o aposento, claramente alarmada por ter visto o prédio sendo evacuado, e sua simples presença roubou toda a cor do rosto de Natasha, tornando seu semblante fantasmagórico! MAS QUE DROGA! QUAL PARTE DE "EVACUAÇÃO DE EMERGÊNCIA" ELA NÃO ENTENDERA? Mais além, muito embora a garota já houvesse sentido a mente de Hulk, nunca vira a criatura em sua forma manifesta, de modo que uma involuntária exclamação de surpresa escapou, abafada porém audível, e fez a criatura se virar para a recém-chegada com agressividade renovada!

“Lucy, saia da sala andando de costas, devagar.” Natasha pensava com toda a sua concentração, músculos prontos para saltar diante do Hulk, se preciso fosse, e o olhar da filha lhe disse que entendera, mas seus pés não se moveram enquanto a criatura se aproximava a passos largos, assomando-se sobre ela! Ninguém teve tempo de reagir antes que a fera parasse a centímetros do rosto da menina, rosnando muito alto, mas sem fazer um movimento sequer para feri-la. Como se houvesse presenciado os atos antecedentes da mãe, a pequena se manteve imóvel ao dizer em voz doce:

    - Oi, grandão. Sou eu, Lucy. - Ninguém podia ver, mas estava claro que a mente da telepata tocava a do enorme ser verde, cuja expressão se amainou. - Então, é assim que você é... É tão bonito! - Com um sorriso gentil, a garotinha tocou de leve no braço mais largo que todo o seu corpo, e aquilo pareceu confundir a fera. Devagar, apoiado nos braços como um grande símio, Hulk se abaixou até seu rosto estar nivelado com o da pequena Romanoff, e repetiu o ato de farejá-la. Havia reconhecimento em seus olhos, e a postura agressiva desapareceu enquanto tocava a ruivinha gentilmente com as costas da mão; ela sorria, e tomou a liberdade de acariciar o gigantesco rosto. 

    Hulk estava perplexo, mas de modo bom… Achava. Ao contrário dos outros, o filhote não tinha qualquer traço de cheiro de medo! Segurando-a com extremo cuidado, levantou a cria e a cheirou mais uma vez. Cheirava como a outra mulher, a ruiva pequena. Seu cérebro primitivo associou facilmente o cheiro compartilhado e as semelhanças na cor do cabelo para deduzir que se tratava do filhote da fêmea. Ele não gostava muito da fêmea, mas ela fora gentil. E gostava do filhote. O filhote gostava de si. O filhote não tinha medo, e gostava dele. Não era perigoso, era amigo. E para seu cérebro simples, o lugar de um filhote era com a mãe. Assim, caminhando apoiado em suas pernas e um braço, segurando Lucy na outra mão, Hulk se aproximou da espiã e colocou a menina no chão, ao seu lado.

    - Filhote. Seu filhote.

    Quem ainda prendia a respiração finalmente a soltou quando Natasha abraçou Lucy firmemente e, olhando nos olhos do alter-ego de Banner, respondeu:

    - Obrigada, Hulk. - E num gesto suave, tocou com o dorso da mão o antebraço do gigante, o qual sorriu com satisfação.

    - Filhote gostar Hulk. Hulk gostar filhote. Proteger ela. Proteger mãe. - Era a primeira vez que aquela boca pronunciava tantas palavras de uma vez, mas se mostraram verdadeiras quando o enorme ser virou e encarou os “machos do bando”, indeciso quanto ao que fazer.

    - São seus amigos, Big Guy. - Natasha falou com serenidade. - E nossos. Não há nada a temer. Você pode descansar. Ninguém aqui vai machucar você, ou a nós. - A figura de Steve apareceu na escada, mas um gesto discreto de Romanoff o fez se imobilizar no lugar, petrificado pela menor possibilidade de assustar o Outro Cara e, com isso, causar qualquer ferimento a Nat ou Lucy.

    Alguns longos minutos se passaram até que, finalmente, a forma gigantesca começou a tremer e se reduzir, o verde cedendo espaço à cor de pele normal de Bruce Banner. Imediatamente o time correu para ajudá-lo, enquanto Natasha se certificava meticulosamente de não haver qualquer ferimento na filha, no que foi imitada por Steve, o qual já se abaixou com olhar severo, ralhando com a pequena por fugir de sua vigilância em meio à multidão!

    - Você podia ter morrido! - Natasha fez coro à voz do namorado. - No que estava pensando?!

    - Um alarme de incêndio, sem fumaça. Qual a única emergência que tiraria todo mundo, menos vocês, daqui de dentro? Só o Hulk! 

    - Mais um motivo para ficar fora! Ele podia ter te matado! - A voz de Rogers era puro desespero.

    - Eu conheço o Hulk, melhor até do que o tio Banner. Se alguém podia acalmá-lo, era eu! E que tipo de pessoa eu seria, se fugisse enquanto a minha família está em perigo?! - Não fazia sentido, para a criança. Ela via sua família sempre correr na direção do perigo, quando todos os demais iam na direção oposta. Como poderia agir diferente? - Mama, Daidí, eu estou bem! O Hulk gosta de mim. Ele me conhece. Conhece a minha mente, o meu cheiro e a minha voz. Nunca ia me fazer mal. Eu sabia o que estava fazendo.

    Divididos entre alívio e zanga, Rogers e Natasha abraçaram fortemente a pequena infratora de regras. Steve via como as mãos da companheira tremiam, pousadas nas costas da filha, e como seu rosto ainda se encontrava desprovido de cor. A noção do quão em pânico a mulher estivera o atingiu em cheio, mas não foi um choque. Não mais. Assim, discretamente, ele a puxou também para seus braços, e por alguns minutos o casal se reconfortou e recompôs ante a noção de que nada de mal ocorrera à filha, ou a qualquer dos amigos, enquanto os demais cuidavam de Bruce:

    - Banner! - Thor amparou o amigo enquanto este se recobrava, cobrindo-o com sua capa tanto para aliviar os tremores do outro, quanto para cobrir sua forma quase nua e evitar o constrangimento do cientista. Tony também forneceu apoio ao colega enquanto este se sentava em um dos bancos que Hulk não virara.

    -  Está tudo bem, cara. Sem danos, fique tranquilo. Você está legal, todo mundo está legal. Respire fundo.

    - Estão todos bem? Mesmo? - O médico tremia e apoiava a cabeça nas mãos, esgotado. O pavor de ferir alguém o atingia com ainda mais força do que a confusão, tontura e cegueira periférica que se seguiam à volta ao normal.

    - Ilesos. Você só derrubou alguns bancos e mesas. - Assegurou Clint, dando tapinhas leves nas costas do amigo. - Tirando as reclamações do pessoal da faxina, nenhum dano. 

    Bruce anuiu, mas algo o incomodava ainda mais do que se transformar:

    - Como... Como eu voltei? - Ele voltara sem destruir coisa alguma, nem ferir outras pessoas... Estaria conseguindo conter o Hulk?!

    Houve um segundo de silêncio, antes que a vozinha de Lucy soasse, segura, firme e calma:

    - O Grandão me reconheceu, tio Bruce. Mamãe o acalmou com manipulação comportamental, e quando eu cheguei, ele me reconheceu. Ficou mais calmo, depois disso, e foi embora quando percebeu que ninguém ia machucá-lo. Reconheceu os outros, também, depois. Só estava assustado, na verdade. Não queria machucar pessoas de propósito. 

    Todos olharam para a criança com diferentes expressões, as quais iam de surpresa até consternação. Encolhendo os ombros, a garota apenas respondeu:

    - Desculpem, eu gosto do Hulk. Ele é mais fofo do que assustador, se a gente sabe como olhar. Ele só não faz idéia de como lidar com o mundo: é confuso, barulhento e ameaçador, e o faz ficar agressivo.

    Aquilo pareceu acender algo na mente de Banner:

    - Lucy... Está dizendo que o Hulk tem medo?

    - Ahan. Como um animal selvagem perdido na cidade. Ele não sabe o que é, mas sabe não ser da espécie humana. Ele é... Simples. E faz de tudo para proteger você e a ele mesmo de um mundo que, pra ele, é um caos.

    Natasha raciocinava em silêncio, e se manifestou em seguida:

    - O Hulk se comporta como um ser humano primitivo. Pouco diferente de um grande símio: quando não viu ameaça em nós, ficou calmo e recuou. Talvez, se conseguirmos desenvolver um modo de acalmar o Hulk, seja possível controlar as transformações.

    Os olhos de Bruce brilharam à menção da possibilidade, e até o cansaço desaparecia de seu rosto, mas logo a sombra da preocupação encobriu seu semblante:

    - Seria possível, acredito. Mas treinar o Hulk... Não posso expor nenhum de vocês a esse risco.

    - Claro, porque nosso trabalho nem é perigoso... - Clint ironizou, revirando os olhos. - Banner, você é um dos nossos. E o Hulk também. E por mais que eu adorei quando o cara verde dá as caras em combate, precisamos de um modo para contê-lo, quando o combate acaba. Nem todo mundo é o Thor, que aguenta um murro sem quebrar os ossos.

    - Barton está certo. - Steve se abaixou e pegou Lucy no colo. - Se há uma possibilidade de tornar o Hulk seguro para as pessoas em redor, e de fazer com que você possa retornar ao controle quando o Outro Cara não for mais necessário, então temos o dever moral de tentar.

    Tony tinha os braços cruzados, parecendo contrafeito e desagradado, mas finalmente grunhiu e declarou:

    - Não acredito que vou dizer isso, mas preciso concordar com o Picolé E a Viúva. JARVIS, delete isso dos arquivos. - Sua voz se tornou séria, então. - O que aconteceu hoje pode ter sido um golpe de muita sorte. Deu pistas sobre como lidar com o Grandão, até mesmo num acidente. É arriscado? Com certeza. Mas temos o Shakespeare no Parque para quê?

    Thor riu baixo, tanto do apelido que originalmente o irritara, quanto da colocação de Tony, e assentiu para Banner:

    - O Stark tem razão. Se algo der errado nas experiências, eu jamais deixaria o Hulk ferir um dos outros. Só precisamos de campo aberto, onde eu possa distrair o grandalhão e segurá-lo até que você tome o controle. 

    Bruce parecia dividido. Levantou-se nervosamente e começou a andar pelo laboratório bagunçado, seus olhos pousando no estrago feito onde o Hulk quase esmagara o Homem de Ferro na parede. Odiava a ideia de colocar os amigos em risco, mas já não estava fazendo isso, sem terem um plano de contingência eficaz contra seu alter-ego? Foi com olhos quase desesperados que se virou para os colegas e, após muito considerar, respondeu:

    - Certo… - Não podia se negar a qualquer coisa passível de domar o Hulk. - Mas vamos planejar tudo com cuidado, antes de fazer qualquer coisa. Sem espaço para furos, nem riscos para qualquer um de vocês. E só depois que eu terminar com as amostras: já perdemos tempo demais. - Metodicamente, o médico começou a arrumar as bancadas restantes e juntar os fragmentos que podia salvar. - Thor, a doutora Foster e o doutor Selvig podem emprestar equipamento deles? Não acho que tecnologia terráquea vá conseguir ler essas amostras, sem reagir: apenas a proximidade com os leitores está causando oscilações. 

— Vou ligar para eles. - Thor ia deixar o ambiente, mas hesitou. - Banner… Já chega, por hoje. Você mesmo disse que a tecnologia terráquea não consegue fazer leituras, então, tente se acalmar.

O misto de desconforto e constrangimento do médico eram quase palpáveis quando Lucy colocou sua mãozinha na dele:

— Vamos fazer yoga? Já está ficando de noite, daqui a pouco é hora de tomar banho e jantar, e faz dias que você não me ensina. Acho que seria bom para todo mundo… Um pouco de descanso. O trabalho de vocês é muito legal, mas também tem muitas coisas feias e horríveis de ver. 

— Baixinha…

— Lucy tem toda a razão, doutor. - Natasha cruzou os braços, percebendo-se ainda tensa após o evento recente. - Até o laboratório estar em ordem e Jane Foster os auxiliar a ajustar o equipamento, temos pouco a fazer. - Ela sabia como um ou dois dias podiam significar a vida ou morte de muitas pessoas… Mas o Hulk era um perigo mais próximo e imediato. Assim como um colapso da equipe: as olheiras de Tony não datavam de apenas uma ou duas noites. - Precisamos de um ou dois dias.

O tom da espiã não admitia contestação, deixando o ambiente silencioso até que, cerca de um minuto depois, todos se rendessem. Thor havia sido o primeiro a sair, a fim de ligar para a namorada, e agora os demais se dispersavam. Um olhar significativo foi trocado entre as duas Romanoff, mas a criança apenas sorriu e segurou por um instante a mão da mãe, assegurando-a sem palavras de estar bem antes de sair meio acompanhando, meio puxando Bruce Banner para o elevador. Finalmente, Tony, Natasha, Clint e Steve também deixaram o lugar, o primeiro rumo ao próprio apartamento, os outros três para a sala principal. Todos precisavam se refazer do susto. Bem, todos menos Lucy, ao que parecia… A praguinha tinha algum senso de autopreservação?

 

******

 

Seu tornozelo ferido doía como o inferno, amortecendo sua perna até acima do joelho e comprometendo sua velocidade. Ela corria com todas as forças, saltando e escalando escadas e passarelas a fim de fugir ao alcance da fera gigantesca cujos rugidos pareciam mais e mais próximos, mas Natasha não se atrevia a olhar. Receava que a fração de segundo requerida pudesse ser a diferença entre conseguir ou não escapar ao golpe seguinte.

Sua perna afetada falhou na aterrissagem de um salto, levando Romanoff ao chão numa queda nada graciosa, a qual instintivamente a espiã amorteceu com rolamentos para o lado, bem a tempo de não ser esmagada por pés quase tão grandes quanto seu corpo! Deviam ser tão enormes? Parecia ainda maior do que na última vez… Espere… Última vez? Não, não, não, isso era apenas um sonho! Um loop no qual fugia ininterruptamente do Hulk e, quanto maior seu terror, maior e mais apavorante o monstro pareceria!

— É um sonho. Acorde. ACORDE. - Tentou gritar consigo mesma, mas os movimentos instintivos para escapar do brutal atacante estavam além de seu controle. Congelar não era uma opção… Mas era apenas um sonho! Por que não conseguia controlar?

— Só está sonhando, Natasha. Controle. Mude isso… - Um golpe violento atingiu em cheio seu tronco, arremessando-a de costas contra uma pilha de canos, grades e placas de metal. Uma dor aguda atravessou seu ventre, espalhando-se para todo o abdome e, quando a mulher baixou o rosto para ver, percebeu-se empalada por uma grossa haste metálica, cravada na parede às suas costas e entortada na ponta, impedindo-a de sair dali, não importava quanta força fizesse para arrancar o objeto de seu corpo!

Agora o monstro sorria e farejava o sangue, avançando em sua direção lentamente, pronto para lhe dar seu destino final. MERDA, ERA APENAS A PORRA DE UM SONHO! POR QUE NÃO CONSEGUIA MUDÁ-LO?! Era quase como se… Como se houvesse outra mente controlando aquele espaço! E a súbita percepção fez o coração da Viúva Negra gelar, principalmente ao ouvir uma voz infantil chamar, como o mesmo tom de autoridade e audácia que ela mesma usara naquele dia:

— HULK! - Não, não, não… Lucy não estava ali. Era apenas projeção de sua mente. Droga, Romanoff, acorde logo! Ela se forçou contra a extremidade torta da barra, ansiando pela dor potencialmente capaz de despertá-la, mas só o que conseguiu foi um grito abafado escapando de seus lábios. Não!

A criatura verde chegava mais e mais perto da criança, que vestia o uniforme preto de Black Widow e tinha seus cachos rebeldes cortados na altura dos ombros… Desafiando o monstro como a mãe o fizera. Não…

— LUCY, SAIA DAQUI! - Não podia ser. A garota não podia estar de fato em seu pesadelo. Era apenas uma projeção de sua mente traumatizada que, afetada pelos eventos do dia, não conseguia despertar. Precisava ser! - HULK! EU ESTOU AQUI! FUI EU QUEM TE TROUXE PARA CÁ! Você não vai terminar o serviço?!

Seus gritos irritaram o monstro, cujo interesse na garotinha se desfez e o levou a arremessá-la para longe com um tapa, enquanto se voltava para a vítima inicial. Ela era a culpada. Fora quem começara aquilo. Quem o buscara em seu refúgio seguro. Ela queria o monstro… Teria o monstro.

A última coisa que Natasha sentiu foi a dor lancinante da haste grossa como um punho masculino sendo arrancada de seu corpo, e então cravada novamente em seu peito.

***

— NAT!!! - Steve já ultrapassara o ponto de se preocupar minimamente com qualquer autopreservação e, montando os quadris da Viúva Negra a fim de impedir-lhe o uso das pernas para partir seu pescoço, tinha as mãos em seus ombros, sacudindo-a vigorosamente a vir de acordar a mulher de seu terror. Soube que tivera sucesso quando as mãos femininas golpearam a face interna de seus cotovelos e empurraram suas mãos para longe, fazendo-o perder todo o apoio do próprio peso e cair sobre ela, perto o suficiente para uma cabeçada passar a milímetros de acertar seu nariz, e a base de uma palma acertar a lateral de sua cabeça com força suficiente para deixar o americano tonto. Ainda assim, ele não soltou a companheira, mas começou a lhe falar com voz calma. - Nat, sou eu. Você está em casa, amor, foi só um pesadelo. Só um pesadelo. Respire. - Foi difícil contê-la, mas entre seu peso e a confusão dela, Rogers a teve firmemente segura sob si até sentir os espasmos furiosos de luta se acalmarem, e ver os olhos verdes recobrarem sua lucidez.

— Steve? - Ante a anuência e o beijo suave em sua testa, ela deixou escapar um longo gemido, provavelmente dolorida do aperto em seus pulsos, e da própria tensão causada pelo que quer que estivesse aterrorizando seu sono. Com cuidado, o Capitão rolou para o lado e tentou ajudar a ruiva a se sentar, mas foi recusado; Natasha se sentou sozinha, tremendo como uma vítima de hipotermia. E por mais que a espiã prezasse os limites pessoais, seu namorado não iria simplesmente assisti-la se recobrar sem qualquer auxílio de uma crise de pânico causada por pesadelos. Assim, buscando respeitar seu espaço, mas sem abandoná-la, Steve começou a esfregar delicadamente as costas e braços da companheira, até esta relaxar minimamente e não fugir quando a puxou para seus braços.

A ruiva se ajeitou nos braços do companheiro, mas não durou um segundo que fosse, pois ambos foram praticamente derrubados pelo susto advindo com o berro de pavor que soou no quarto ao lado, onde Lucy dormia! Rápido demais para se acompanhar o movimento com os olhos, Natasha já tinha sua Magnum em mãos, e correu para o quarto da filha, com Steve em sua esteira, munido do escudo. Não havia ruído de invasão ou luta, mas a espiã não esperou para se certificar, praticamente arrombando a porta com a Magnum preparada. Contudo, o quarto parecia tomado por um terremoto, tomado por ondas de energia que distorciam as imagens e sons, fazendo o próprio ar se tornar denso e quase irrespirável! Encolhida no canto da cama, a pequena garota chorava copiosamente, uma Glock 9mm caída no colchão enquanto suas mãozinhas agarravam as laterais da cabeça. 

Natasha largou de pronto a pistola sobre a cômoda e correu para Lucy, tomou seu rostinho molhado e vermelho de choro nas mãos e a fez encontrar seus olhos:

— Filha. Filha, olhe para mim! Assim, assim… - Um abraço de contenção tanto serviu para impedir que Lucy ferisse ainda mais a si mesma, uma vez que suas unhas já se cravavam no couro cabeludo, quanto como forma de acalmar a criança, passando-lhe a sensação de estar segura nos braços da própria mãe. - Está tudo bem. Você está bem. - Com cuidado, ela chutou para Steve a pistola de Lucy, ignorando a expressão de censura do Capitão enquanto a pequena era sua principal preocupação. O próprio Steve não tomou mais que um segundo focando naquilo, pois se sentou do outro lado da filha e também a envolveu nos braços.

— O que aconteceu, mo bheag?

— Eu vi… Eu estava lá… No helicarrier… Eu estava lá, e tentei parar o Hulk, mas ele atravessou a Mama com uma barra de metal várias vezes… Eu não podia me mexer, não conseguia acordar… - Uma série de soluços abafou a pequena, e o quarto oscilou mais uma vez. Ou talvez não fosse o quarto a oscilar, mas a percepção dos adultos acerca do espaço. O ar ficava cada vez mais pesado e denso, de forma que Romanoff pegou sua garotinha no colo, levando-a com Steve para o quarto do casal, onde a acomodaram no centro da cama, janelas totalmente abertas, luzes acesas, ambos os adultos protegendo-a com seus próprios corpos e vidas, se fosse necessário.

— Shhh. Foi um pesadelo, meu amor. Só um pesadelo. - Natasha não podia deixar de se sentir culpada. Lucy entrara e ficara presa em seu pesadelo. Em seus terrores. - Você entrou por acidente no meu pesadelo, malen’kaya… - Ela abraçou com força sua menininha. - Desculpe, moya lyubova. 

— Não, mama… Eu não devia entrar nos seus pensamentos, mas senti que você estava com medo e… Não consegui fazer nada, eu só me senti… Quando vi eu estava ali. Nem sabia onde era. Achei que era um pesadelo meu. E quando aquele Hulk estranho te matar… Ele não parava, e tinha tanto sangue… E eu não conseguia entrar na cabeça dele… Ficou tudo escuro, não conseguia me mexer… Consegui rolar na cama, mas o sonho era confuso, eu nem acordava, nem entrava de verdade no sonho… Peguei a Glock, porque parecia que aquele Hulk esquisito estava no meu quarto e… - Mais uma vez os soluços tomaram conta da criança, que enterrou o rosto no colo da mãe. - Desculpa.

— Não, Lucy. Não. Não tem nada para pedir desculpas. O dia foi muito tenso, e você não tem como se impedir de entrar nos sonhos de outra pessoa. - O isolamento da fina malha elétrica deveria ser suficiente para impedir pensamentos alheios de interferirem nos sonhos da telepata, mas não fora o suficiente, hoje. - Foi apenas um pesadelo, meu bem. Só isso. Está tudo bem, nós duas estamos aqui, e seu pai. Estamos todos bem. O dr. Banner está dormindo no apartamento dele, e o Hulk está sob controle, graças a você. Ao que você fez hoje. 

Enquanto Natasha embalava a filha, acalmando-a, Steve envolvia a ambas em seu abraço, e podia sentir claramente o leve tremor do corpo da namorada, muito mais discreto do que os soluços da filha, mas não menos presente. A noite fora uma extensão do dia, com uma dura provação para ambas. 

— Vou fazer um chá para vocês. Foi um susto grande. - Mas não queria deixá-las sozinhas, agora… Ok, hora de apelar. - Hey, baixinha, sabe o que ajuda, também? Que tal roubar sorvete na geladeira, enquanto faço o chá? - Foi um alívio vê-la anuir, ainda chorosa, mas concordando. Natasha sorriu levemente para ambos e colocou a garota montada em seu quadril ao se levantar da cama para acompanhar Steve. Já mal se lembrava do próprio momento de terror quando comentou em tom de brincadeira:

— Você está ficando grande rápido demais, mini-mim. 

— Estou grande demais para você me carregar assim, mama…

— Isso você nunca vai ser. Nunca vai ser grande demais para eu carregar minha garotinha. Nem se ficar maior do que eu.

— Coisa que não vai demorar. - Steve alfinetou enquanto se acomodavam na pequena e organizada cozinha da casa das Romanoff, ele mesmo cuidando de colocar a chaleira para aquecer água. - Mais seis meses, um ano… 

— Steve, não abuse. - A espiã colocou a filha sentada na bancada, acalmando-a com sussurros reconfortantes em russo. 

— Você sabe que pode se camuflar numa vila de hobbits, Nat. - A fala fez Lucy quase engasgar com o riso repentino, brotando em meio ao choro já contido.

— Você sabe que Lucy é a única coisa que me impede de arremessar uma faca em você. - A espiã devolveu no mesmo tom, aumentando o sorriso da pequena. Enquanto o chá ficava em infusão, massageou lentamente as têmporas da filha, suas mãos e pontos específicos atrás da nuca. - Melhor, moya tsvetochka?

— Melhor, mama. Desculpe pelo susto.

— Pare de se desculpar. Para começar, eu é quem devia estar pedindo desculpas: foi o meu pesadelo que começou tudo isso. Nossos sonhos se entrelaçaram, e isso nos prendeu num pânico compartilhado. Não foi sua culpa. - Com a filha mais calma, a russa abriu uma exceção à disciplina alimentar que geralmente mantinha e abriu o freezer, servindo sorvete para os três e trazendo a taça maior para Lucy. - Não se acostume. Mas hoje, está liberado.

— Ya lyublyu tebya, mama. - A garota sorriu ante a resposta muito clara no olhar terno da mãe, e isso aliviou um pouco as marcas das olheiras cansadas no rosto pueril. Não tardou para Steve trazer o chá, junto com três canecas de chocolate quente, e colocar sobre a mesa, tirando a filha carinhosamente da bancada; o trio se sentou à mesa como raramente costumavam fazer, e era estranho que um episódio duplo de terror noturno causasse aquela agradável reunião. Era bom ter um momento de pausa e relaxamento…

— Adoro quando as minhas garotas me deixam cuidar delas. - Steve beijou a testa de Lucy e segurou com carinho a mão da namorada, a qual não apenas não se afastou, mas encostou a cabeça em seu ombro. Vendo aquilo, a criança se manifestou:

— Mama, Daidí, por que vocês não moram juntos, de uma vez? - Ambos os adultos a encararam, e a pequena se explicou. - Daidí já dorme aqui várias vezes por semana, isso quando não é você quem levanta de noite e vai para o apartamento dele, Mama. - Steve tinha a cor aproximada de um pimentão, e a própria Natasha tinha a pele curiosamente menos destoante do próprio cabelo. - Não tem nada de errado nisso. Vocês são namorados, e adultos. Mas se já praticamente moram juntos, por que não se mudam de vez?

— Ah… É… - Se não estivesse ela mesma constrangida, Romanoff teria gargalhado. A pirralhinha conseguira tirar o sempre presente discurso pronto do Capitão? Ah, estava fazendo um excelente trabalho, com aquele filhote! Mas quando os olhinhos azuis se voltaram para ela, a própria espiã precisou cuidar das palavras que diria:

— Nós… Ainda estamos trabalhando a relação, querida. Morarmos juntos significa dividir o espaço pessoal, e não poder simplesmente virar as costas e ir para casa, quando houver alguma tensão, porque você já está na sua casa.

— Você sempre fala que, se existe um problema, a gente resolve conversando. Pra que virar as costas e sair de perto? Não resolve nada. No pior dos casos, vocês dois sempre podem levar a discussão para o tatame, e decidir no braço quem está certo.

— Você está passando tempo demais com seus padrinhos. - Resmungou Steve, revirando os olhos.

— E vocês ainda não responderam. Por que não moram juntos, ainda? Ia ser legal. O apartamento que ficasse desocupado ainda ia estar lá, quando quisessem se estrangular e precisassem de um tempo.

— Desde quando virou perita em relações conjugais? - Natasha perguntou, levantando uma sobrancelha.

— A tia Pepper pensa muito alto, quando está lembrando ou pensando no tio Tony. - A pequena encolheu os ombros, dando uma risadinha. - Se ela não estrangulou tio Tony até hoje, vocês dois iam se dar super bem.

Ambos os adultos acabaram rindo baixo em suas xícaras, entreolhando-se. Estavam perdidos com aquela pequena peste. Steve foi quem se manifestou a seguir:

— Já que estamos falando de família, então… Eu tenho uma pergunta para você, senhorita Lucy.

— Estou sempre pronta para responder.

— Disso ninguém duvida, diabrete. - O americano realmente se divertia com aquela versão menor de sua companheira, que o fazia pensar muitas vezes em como a própria Natasha teria sido, se lhe fosse dada a chance. Imaginava que muito parecida com a filha de ambos. - Você me chama de pai, mas pela lei eu não tenho esse vínculo com você. Sua mãe e eu andamos conversando, e pretendia falar disso outro dia, mas já que certo filhote de arara vermelha começou a matraquear… O que acharia, se eu te adotasse, Lu? Se fosse seu pai em tudo, inclusive para a lei?

A resposta foi um gritinho feliz quando a pequena ruiva pulou no colo do pai, abraçando-o! 

— Vou ter seu nome, também?!

— Lucy Romanoff Rogers. - Confirmou Steve.

— Lucy Natalianova Rogers Romanoff. - Corrigiu Natasha, com tom definitivo, mas também algo divertido. - Com licença, mas cheguei primeiro. O diabrete é primeiro meu, depois seu.

— Poderíamos debater isso a noite inteira, mas ia acabar sendo como você quer… - Steve se inclinou na direção de Natasha.

— Menino inteligente, aprendendo quando a batalha está vencida. - A russa lhe deu um breve selinho, antes de se voltar para a filha. - O que acha? Romanoff ou Rogers?

— Bom… Todo mundo já me chama de Romanoff, mesmo. E eu sou russa. Te adoro, Daidí, mas Rogers Romanoff ia confundir menos o resto das pessoas, e soa melhor.

— E ainda quer que moremos todos juntos? Eu sou sempre minoria, nessa casa! - Steve brincou, fazendo cócegas na criança apenas para ver aquele sorriso luminoso. A vida podia mesmo ser tão… Normal e feliz?

A louça foi deixada para o dia seguinte, e Lucy foi se deitar com os pais, acomodada entre ambos, sentindo-se feliz e amada como nenhuma outra criança já fora! E enquanto se sentia protegida física e emocionalmente pelas pessoas a quem mais amava, percebeu que não havia mais medo, de sua parte ou da mãe. O pesadelo horrível fora totalmente esquecido, tratado não por um chá, chocolate ou sorvete, mas pelos cerca de quarenta minutos gastos sendo apenas… Família. 



*

 

Eram 4:40 da manhã quando o telefone de Natasha tocou. Ela grunhiu e olhou de esguelha para o ecrã, apenas para constatar ser uma chamada de Barton, e apenas por isso estendeu a mão e atendeu:

— Barton, é melhor alguém estar sangrando, sendo esmagado ou incinerado vivo, para você me ligar a essa hora.

— Nat… - A voz de Clint não era divertida ou leve, mas friamente profissional e com traços de cansaço. - Thor entrou em contato: HIDRA invadiu o laboratório da doutora Foster e levou-a junto com Darcy e o doutor Selvig. Ele precisa dos Vingadores, para achá-los a tempo.


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Notas finais do capítulo

Então, pessoal! É isso!
Teorias? Dúvidas? O que amaram? O que odiaram? Deixem-me saber, por favor!
Beijos enormes, e espero que nos vejamos muito em breve, com outro capítulo!
Beijos e abraços de luz para todos!!!

Que 2021 seja um ano cada vez melhor, e vamos com força e fé superar todo esse caos. Se alguém sentir que precisa conversar, pode me chamar nas mensagens privadas. Não passe sozinh@ pelos problemas, ok? Estamos todos juntos nessa e, ajudando uns aos outros, sairemos vitoriosos e fortalecidos.



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