algumas coisas sobre Narcisa escrita por Estrelas


Capítulo 2
02 — Narcisa e seus olhos de joias


Notas iniciais do capítulo

Oi, pessoal. Obrigada pelo feedback. Fiquei muito feliz de ver que a história despertou algum interesse, hehe ♥ me epolguei e resolvi postar logo o segundo capítulo/carta/diário/como quiserem chamar, pois fará sentido somente no final.

Boa leitura.



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/778293/chapter/2

Desde cedo aprendi a gostar de ir para a escola, pois apesar das piadas constantes sobre meu peso, era o lugar onde eu ficava longe de Narcisa e conseguia respirar. Eu me esforçava em ler, aprender matemática, a desenhar bem e a ser engraçada com todos, até com quem dizia que eu tinha ferrugem na cara e cabelo de vassoura. Eu relevava, sorria, ria junto. Aprendi cedo que fora de casa eu era vista desgostosamente, também. Contudo, havia a oportunidade de ser alguém, meus professores diziam isso, que deveríamos pensar no que queríamos para o nosso futuro. Eu pensava em ser advogada. Tinha que ler muito, diziam. Estudar sem parar. Estudar era ficar mais tempo fora de casa, e eu estudaria todas as horas do dia se fosse preciso.

Havia uma garota, não lembro se seu nome era Tatiana ou Tatiane, mas eu a chamava de Tati. Ela era uma garota magrinha, que vivia com o seu nariz bicudo descascando pois a sua pele estava sempre queimada pelo sol. Adorava brincar de futebol, empinar pipa. Parecia um garotinho valente quando corria e caía na terra, falava muito palavrão, era bastante desavergonhada sobre si e não ligava de voltar para casa suja de terra. Sempre andava com o cabelo cacheado todo bagunçado. Era mais loiro que o que eu costumava ver, parecia palha seca. Éramos boas amigas.

Um dia, Narcisa a conheceu. Ela foi até a minha casa, precisávamos fazer um trabalho da escola. Uma maquete feita de materiais recicláveis que mostrasse algum lugar da cidade. Iriamos fazer a pracinha local, ela tinha um lago muito bonito e queríamos  fazer lindos peixinhos.

Quando ela chegou na minha casa, foi junto comigo após a aula — depois de uma semana em que eu falava para Narcisa que ela tinha que ir, e tudo o que eu ouvia era um ok seco, irredutivelmente de pouca importância, e mais duas ansiosa para pedir, passando mal imaginando as possibilidades, pois pouco sabia como ela reagiria. Sua indiferença me deixava vacilante, porque eu não saberia se ela de fato se importaria ou não. Seus olhos azuis ficavam sempre com aquele brilho de joia guardada numa caixa de presente bem feita: lindos, frios, mas completamente impassíveis ao mundo que lhe circundava.

Então Tati foi, e no dia que minha amiga foi, um belo almoço nos esperava. Peixe grelhado, uma salada com muitas cores, arroz integral temperado com couve, molho de suco de limão. Minha mãe recebeu Tati com muito carinho.

Oi-minha-querida-como-você-está-a-minha-olívia-não-parou-de-falar-de-você.

Ela se abaixou até ficar na altura dela, abraçou-a rapidamente e num giro que rodopiou seu vestido florido do dia, se ergueu, para nos mostrou a casa, e eu apenas as segui. Tati sorria imensamente, seus dentes tortos a mostra a cada coisa que minha mãe dizia ou lhe mostrava. Ela sabia mais ou menos quem minha mãe havia sido na sua juventude.

“A sua casa é linda, que nem a sra.”

Um risinho modesto escapa dos lábios tingidos de vermelho de Narcisa. Ela passou a mão nos cabelos soltos. Deslizou os dedos entre eles. Ainda estavam úmidos, iria hoje se pentear só. Senti cheiro de alecrim. Alecrim é para as visitas invejosas.

“São seus olhos. Vão almoçar, tudo bem? Fique a vontade, estarei no meu quarto caso precise de algo.”

Sentamo-nos à mesa. Nos servimos — tirei uma posta generosa do peixe para Tati. Ela comeu com arroz, somente. Eu comi salada, pouco peixe, muito molho. Precisava perder peso, por isso aquele almoço bonito e saudável. Mastiguei aquele monte de folhas, tomate, cenoura, beterraba, muito devagar. O molho não ajudou a tornar a salada mais comível. Me sentia uma lagarta.

“Sua casa é linda. Parece de novela.”

Linda. Limpa. Não pise. Não toque. Não corra aqui dentro. Não suje.

“Obrigada.”

Eu perguntei se ela queria comer algo mais, e timidamente ela disse que sim, que queria. Fui até a geladeira e, como eu esperava, havia uma gelatina feita para a visitante. Gelatina de uva bem consistente, posta em tacinhas delicadas. Peguei uma e levei para Tati. Eram 4 taças, nenhuma era para mim.

Tati comeu com gosto, elogiando o sabor de tudo que provou. Eu agradeci, sem jeito. Era tudo feito pela Cleide, a silenciosa moça que fazia tudo dentro de casa, e que deixava tudo pronto e ia embora antes de que todo mundo voltasse.

Minha barriga ainda estava vazia, eu queria saborear todas aquelas taças de uma vez, porém sabia que as pernas de aranha iriam apertar meu rosto e me punir pelo meu crime. Agora eu era bailarina, e Narcisa disse que minha alimentação deveria ser mais comedida possível.

Levei Tati até o meu quarto, subindo as escadas e virando a direita. Era pequeno, confortável,  pintado com cores quentes entre amarelo e laranja, com muitos vasos de flores artificiais e miniaturas de bichinhos. Um enorme retrato ocupava a parede lateral, com meu irmão e meus pais, e Tati perguntou quem era aquele garoto.

“Meu irmão, Cássio.”

“Onde ele tá?”

“Na faculdade.”

Começamos a nossa maquete. Tati trouxe uma caixa de sapato que serviria de base para a maquete. Era muito fina mas estávamos confiantes de que em cima de uma placa de isopor ela ficaria firme. Cortando, colando, garrafas de plástico, jornal, revistas velhas. Nossos dedos ficaram cheios de cola de papel e de isopor. Tinha pedaços de jornal grudados no meu cabelo e no de Tati.

Fiz os peixinhos com esmero. Cortei as barbatanas com precisão cirúrgica, fiz o corpo de jornal com cola e pedi para Tati pintá-los com as cores das carpas. Não haviam carpas no lago da cidade mas eu as conhecia por serem os peixes favoritos da minha mãe.

Era uma tarde de verão, portanto estava quente mesmo com as janelas as abertas. Não fazia vento, então suávamos muito devido o ventilador também estar desligado. Meu cabelo grudava no meu pescoço, e minhas mãos ficavam úmidas toda vez que eu jogava meu cabelo de um lado para o outro na tentativa de apaziguar o calor. Mamãe apareceu, bateu na porta e colocou sua cabeça dentro do quarto. Seu cabelo estava todo preso num coque minucioso projetado para o lado.

“Tati você quer alguma coisa? Um suco? Um chocolate gelado?”

“Um chocolate!”

“Vou trazer com alguns biscoitos caseiros. Gosta de biscoito de banana?”

“Nunca comi, sra.”

“Você vai amar.”

“Mãe, eu quero também.”

Ela me olhou por alguns instantes. Aquelas jóias azuis brilhantes que não diziam nada sobre si, sobre o que sentia ou pensava. Ela sumiu e a porta se fechou.

Minha barriga roncava um pouco naquele momento. Voltei a montar mais peixinhos até que Narcisa voltou com um copo cheio de achocolatado geladinho, trincando até, e um prato com seis biscoitos. Cada um deles tinha o tamanho da palma da mão dela. Estavam quentinhos, soltando fumaça. O cheiro de canela fez minha barriga roncar um pouco mais e a minha boca se encher de saliva.

“Espero que goste, querida.”

Suas joias azuis um pouco encolhidas, fechadinhas, enquanto ela entregou para uma Tati sorridente seu lanche com igual sorriso aberto, de pura simpatia.

Quando ela saiu, peguei com muita culpa um pedaço de um biscoito. Pedi para Tati não dizer nada. Ela deu pouca importância, erguendo os ombros e voltando a beber o seu chocolate.

Terminamos nossa maquete, e ficou espetacular. Nota máxima, na certa. Me senti muito orgulhosa, bati nas mãos de Tati, já nos sentíamos vitoriosas. Tati sorria muito, tão feliz quanto eu. Ela pediu para usar o nosso telefone, e eu a levei até a sala de estar. Narcisa estava lá, lendo um livro, totalmente esticada no sofá vermelho. A sala cheirava a cigarro e a alecrim queimado.

“Ela quer ligar p’ra mãe dela, para vir buscar.” Disse eu.

“Oh.”

Ela se ergueu, fechando o livro e o colocando no sofá. Sentada, olhando para nós, gesticulou para que nos sentássemos ao seu lado.

“Aonde você mora?”

Tati respondeu. Era em um bairro longe do nosso, que eu via constantemente nos noticiários policiais. As sobrancelhas de Narcisa se arquearam levemente e seus lábios curvaram um pouco. Foi tudo muito rápido, mas aquela sua reação significava que ela já havia imaginado algo como aquilo.

“Eu chamarei um táxi p’ra você. Está um pouco tarde, pode ser arriscado sua mãe vir aqui.”

Tati se virou para mim, com uma feição aflita. Ela sussurrou “mas-eu-não-tenho-dinheiro” no que ela pensou não ser tão alto para que Narcisa ouvisse, todavia ela escutou. Ela riu, se levantou e passou as mãos com carinho que nunca vi no cabelo de palha de Tati.

“Eu vou pagar, não se preocupe. Só quero que você volte em segurança.”

Narcisa ligou para um conhecido taxista que constantemente fazia corridas para a nossa família, e ele não demorou para chegar. Neste ínterim, minha mãe serviu mais uma taça de gelatina a Tati, e perguntou sobre o que ela gostava de fazer, o que queria ser, com quem ela morava.

“Eu quero ser jogadora de futebol. Que nem a Marta.”

“Moro com minha mãe, minha avó e meus dois irmãos.”

Mas e o seu pai? Perguntou minha mãe.

“Ah… ele morreu quando eu era pequena. Um menino foi roubar ele, e ele reagiu. Tomou tiro.”

Minha mãe crispou os lábios, naquelas expressões rápidas que eu aprendi a perceber — pois diziam muito mais sobre o que ela pensava do que qualquer coisa que ela fosse falar a seguir. Tomou então as mãos de Tati nas suas e afagou seus dedinhos bronzeados, e assim falou para ela:

“Você vai ser maior que a Marta, ok?”

Tati foi embora com um sorriso gigantesco.

Eu fui para a cozinha assim que ela se foi, para lavar a louça antes que Narcisa pedisse para que eu o fizesse. Lavei tudo com cuidado, me certificando de que estava com cheiro de sabão. Quando fui pegar um copo de água, ela apareceu na porta da cozinha. Seus olhos de joias me encaravam com certa raiva, um pouco estreitados. Trazia um cigarro apagado nos dedos. Sentia um peso enorme em mim, e mesmo que ainda estivesse bastante abafado, as minhas mãos começaram a suar frio.

“Eu não quero mais essa menina aqui.”

“Mas por que?”

“Viu onde ela mora? Eu não quero gente assim aqui dentro.”

Engoli seco.

“E vá logo tomar um banho. Você está imunda que nem ela.”

Ela sumiu, voltou para a sala. Subi rapidamente as escadas,  o ambiente estava tomado pelo cheiro de alecrim e cigarro. Entrei em meu quarto, deitei na minha cama e abracei meu travesseiro. Nossa maquete estava em cima da minha penteadeira. Olhei para ela, para as árvores de plástico verde, para o lago feito de tinta. Olhei para as milhares de carpas que fiz, presas com palitinhos. Senti vontade de destruir tudo aquilo e jogar fora no lixo.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Alecrim é uma erva bem popular para combater energias negativas, incluída a inveja de terceiros.