Pátria Amada escrita por Goldfield


Capítulo 1
I: O Papa é Pop


Notas iniciais do capítulo

O conto original, do qual resultou a história, é de 2017, portanto a “procura por Queirós” iniciada no primeiro capítulo não foi uma alfinetada intencional à atuação situação política brasileira, embora tenha mais tarde se encaixado como uma luva.

Trilha sonora: https://www.youtube.com/watch?v=33l4gnLSrUM



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PÁTRIA AMADA

I

O Papa é Pop

O cigarro tornou à boca e ele deu mais uma tragada. O Queirós odiava fedor de nicotina, mas estava sendo uma noite longa demais para que ele se importasse.

Virou-se para o quarto bagunçado, as caixas de papelão tão apinhadas que pareciam desafiar-se quanto a qual Torre de Babel atingiria o teto primeiro. Ele estaria sossegado em casa se o dia houvesse se resumido ao caso da manhã, quando lacraram a maldita gráfica imprimindo panfletos subversivos. "Estamos na América, queremos ser americanos". O slogan remetia aos republicanos dos tempos da monarquia, mas fora reapropriado pela oposição. Bem, os Kirchner bateriam palmas. Aumentavam os boatos de que eles estavam financiando a guerrilha, talvez com ajuda uruguaia. Ou ao menos assim dizia o SNI...

— Oliveira, olhe isto aqui.

A voz de Queirós virou quase um resmungo, a rouquidão natural intensificada pelo mau humor. Ele abriu outra das caixas. As capas brilhantes de CDs reluziram sob a lâmpada no teto.

Estendeu a cabeça para dar uma olhada preliminar. Não reconheceu nenhum dos desenhos, artistas ou muito menos os álbuns.

A maldita subversão andara ocupada. Bem diziam que o DOPS não podia estar em todos os lugares, mas todo aquele material ser gravado bem embaixo de seus narizes...

Tudo começara duas horas atrás. Uma vizinha do imóvel ligara afoita alegando que, já há várias noites, luzes fortes piscavam na casa no meio da madrugada. Para completar, tocava agora música profana no último volume. Debochando da tragédia envolvendo Sua Santidade, o Papa João Paulo II. Em anos e anos, nunca vira a esquerda jogar tão baixo. Era certo que o regime atirara todos os cachorros sobre ela depois que a Vanguarda Popular Revolucionária assassinou João Paulo em 80, mas zombar da morte dele em si... Não era possível, eles estavam provocando!

— Você conhece as teorias, né? – Queirós pegou outra caixa nos braços. – De que o próprio regime apagou o Papa? Todo aquele lance da abertura...

Um punho de Oliveira se fechou. Eles estariam em péssimos lençóis se algum superior os ouvisse discutindo aquela patacoada. Deviam saber que, não importava o lado, tudo que se movesse era um alvo. Não que uma fagulha de dúvida jamais houvesse sido acesa dentro de si, mas...

— Deixe de graça, e vá ver se restou alguma coisa no guarda-roupa! – Oliveira apontou o móvel, lançando com a outra mão algumas cinzas do cigarro ao assoalho.

Queirós grunhiu. O parceiro reaproximou-se da cama, averiguando uma das caixas abertas anteriormente. Rever o que nunca fora antes visto. O CD com a gravura dos seios nus de uma mulher, em constrangedor destaque, e os presumíveis artistas com cabeções em corpos pigmeus diante da mesma, esbanjavam afronta a cada centímetro. "Mamonas Assassinas". Só podia ser terrorismo em forma de música.

A cabeça de Oliveira latejou só de pensar na quantidade de envolvidos na produção daquela peça. Sem contar os "músicos", havia os responsáveis pela gravação, edição, capa, distribuição... Verdadeira rede de subversão esvaindo-se pelos dedos que o DOPS julgara fechados. Quanto mais batiam, mais duros ficavam os inimigos.

Ainda percorrendo as caixas, os olhos do agente perderam-se em nomes de ilustres desconhecidos, mas que já odiava com todas as forças. Um verdadeiro planeta inexplorado nos CDs e DVDs sobre aquela cama. "Racionais", algo que só devia remeter à tal práxis marxista. "Legião Urbana" com certeza incentivava a guerrilha nas cidades. "Sepultura" só podia ser uma condenação prestes a ser conclamada publicamente de para onde aqueles subversivos guiariam o país.

— Queirós? – Oliveira virou-se para trás, estranhando o prolongado silêncio do colega.

Viu-se sozinho no quarto, a lâmpada oscilando por um segundo. Uma das folhas da porta do guarda-roupa balançava para lá e para cá sem ter sido empurrada por ninguém, e a única ventania ali presente soprava dentro da cabeça de Oliveira. Chegou perto do móvel, verificando o interior. Mais nenhuma caixa, e nem sinal de Queirós.

Sem mais nem menos, o fundo do guarda-roupa brilhou em azul. Estalos elétricos tomaram o ar, em parte contidos pela madeira isolante. A superfície antes opaca converteu-se num espelho, mas que não refletia a imagem embasbacada de Oliveira. Apenas o quarto. Guarda-roupa e cama nas mesmas posições, com a diferença de que a versão refletida desta última não estava coberta pelas caixas.

Na mesma parede onde de seu lado havia um pôster comemorativo do Tetracampeonato em 98, Oliveira viu, do outro, algo como um panfleto político...

"Ditadura nunca mais!".

Raios e espasmos de luz continuaram a provir do guarda-roupa. Aumentaram. O ar foi tomado pelo cheiro do ozônio.

Estremecimento do corpo, pelos eriçados.

O cigarro do agente veio ao chão.


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