Eu sou você. Nós somos ele escrita por Angelina Dourado


Capítulo 1
Éden


Notas iniciais do capítulo

Olá pessoal! Estou muito animada para apresentar essa nova história, há muito tempo já estava planejando ela e esse enredo pra lá de doido, mas sou muito fã de histórias com situações inusitadas e agora finalmente estou escrevendo uma! Espero que se divirtam lendo tanto quanto estou ao escrevê-la.
Vai ser bem mais curta que meu outro romance, Ode aos desafortunados, creio que vai ter uns 12 capítulos, dá pra se dizer que vai ser uma novela.
Espero que gostem do resultado, uma boa leitura! ^-^



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‘’Amaldiçoado é você pela terra, que abriu a boca para receber da tua mão o sangue do teu irmão. ’’

Gênesis 4:11

 

Como poderia descrever a vida? Milhares de células trabalhando e se multiplicando de forma incansável e repetida? O ar adentrando nos pulmões e levando-o ao sague? Quem sabe o pulsar do coração, arrojado, vivo e quente. Podemos dizer que a carne é viva, mas e quanto á sua existência? Do que seria a razão para que o corpo esteja vivo? Aquilo que torna toda criatura mais que uma mera máquina feita de ossos e pele.  Pois o corpo vivo somente almeja permanecer vivo, mas o que lhe confere um sentido é o indivíduo a habitá-lo.

           A mente, a alma, a consciência, a verdade, seja como prefira nomear tal essência. Onde se cria um espírito, uma jornada, uma ideia, uma lembrança, um pesadelo e um refúgio. O mais sagrado e delicado dos tesouros, um presente da vida, o mistério de seus pensamentos e a originalidade incumbida a cada ser a possuí-la. Tantas palavras escolhidas a dedo a serem compartilhadas, os pequenos fragmentos de toda a complexidade de cada consciência, seu interior e totalidade sendo um eterno segredo oculto a ser desvendado somente pelos próprios donos. Algo único, individual e irremediavelmente precioso ao ser humano.

 Algo tão abstrato e ao mesmo tempo tão palpável, que sua própria existência pode parecer uma grande loucura. Estamos realmente aqui? Tudo o que sentimos e vemos realmente existe? Ou talvez só façam parte de alguma loucura incumbida pela própria consciência, algo acima de nossa própria compreensão. Pois toda realidade que vemos e sentimos está guardada na própria cabeça, sendo ela quem dita quem e o que somos. Sendo assim, como há uma certeza de que nosso pensamento é a realidade?

Não há certeza, mas ainda trata-se de um dom de uma vida incumbida com a verdadeira existência. Uma essência a ser atribuída de maneira solitária a cada pessoa.

Mas não para Adam Figueira dos Santos, como era conhecido e visto pelo mundo á fora. Por que seu corpo era único, mas sua essência não era.

Interiormente o único corpo dividia-se em duas mentes distintas, duas almas em um só corpo, duas consciências compartilhadas. Um pegara o nome de Abel, por não querer ser o assassino.  O outro escolhera chamar-se Caim, por não querer ser o morto. Uma forma deveras simbólica de se nomearem, criando ao menos para eles uma barreira para a própria individualidade negada ao nascimento. Pois que forma melhor para descrevê-los se não pela referência á lenda do primeiro par de irmãos da humanidade? De certa forma seus pais haviam acertado nomeando aquele corpo em alusão á primeira pessoa segundo os trechos bíblicos, apesar deles sequer imaginarem o eterno impasse dentro daquela cabeça.

‘’Banco’’

‘’livraria’’

As pessoas passavam em sua frente por vezes lançando olhares de repreensão, visto que estavam parados diante da porta do shopping sem mover um único músculo, como um objeto simplesmente esquecido no meio do nada. O que exteriormente parecia ser somente uma pessoa estranha e sem noção, na cabeça daquele homem ocorria uma divergência entre as duas consciências que o habitava.

Era o tipo de situação que eles tentavam ao máximo evitar, pois não é como se cada um pudesse sair para um canto e ignorar o outro durante uma discussão. Mas mais que a mágoa entre eles, o mais angustiante em tais momentos é o de não conseguirem controlar o próprio corpo. Os membros travavam como se feitos de gesso, confusos quanto a qual dos sinais que as duas mentes comandavam deveriam obedecer, acabando por não fazerem a vontade nem de um nem de outro. Se não tivessem o mesmo objetivo, não poderiam alcançar os próprios.

‘’O Segurança Está Nos Encarando. Vamos Ao Banco Logo!’’

‘’vai querer burlar nosso trato sagrado? o almoço já foi sua escolha, e você sabe muito bem que não gosto de prato feito, mas não reclamo quando pede. agora é minha escolha!’’

‘’ Primeiramente, Está Reclamando Agora. Mas Essa Situação É Uma Exceção, Não Temos Um Real Na Carteira! Sequer Podemos Ir À Livraria Dessa Forma. ‘’

‘’temos cartão de crédito. ’’

‘’Estourando Os Limites!’’

— Algum problema, senhor? – Um homem alto e robusto, vestindo o uniforme de segurança do estabelecimento os abordou, com o cenho franzido e de braços cruzados em sua direção. A porta automática ameaçava fechar-se a cada pouco, mas recuava repetidamente assim que seus sensores passavam próximos de Adam, estando naquele loop há vários minutos pela indecisão dos dois egos.

’está bem, você venceu. por enquanto.’’ A voz de Abel ecoou de forma consternada, mas trazendo de volta o controle do corpo á eles.

— Desculpe-me, já estou de saída. – Formularam juntos a frase, em seguida ambos fizeram o corpo avançar sem que olhassem para a expressão confusa do segurança diante da atitude estranha. As pessoas geralmente os achavam – na realidade somente a figura de Adam na visão delas – esquisitos, porém isso já não era nenhuma novidade para eles, pois possuíam consciência disso desde sempre. Eles tentavam de todas as formas parecerem uma única pessoa completamente normal, contudo, por mais cuidadosos que fossem, ainda assim cometiam deslizes vez ou outra.

Em todos aqueles anos o mais próximo que haviam conseguido com Adam foi um homem quieto, por evitarem muitas conversas, onde ás vezes era considerado tímido e em outras antipático. Além de extremamente avoado e distraído devido à concentração debilitada pelas duas consciências sempre conversando silenciosamente entre si. Tinha uma postura sempre dura e pouco natural, de gestos mecânicos que foram treinados repetidamente, com uma mesma rotina que nos olhares alheios poderia ser considerado quase compulsivo, mas foi a forma que encontraram para conseguirem alguma organização sincronizada entre eles. Havia dias em que ficavam insatisfeitos e sentindo-se completos fracassos por não conseguirem agir de forma normal, mas nos momentos otimistas até conseguiam pensar que de gente excêntrica no mundo não era somente eles afinal.

Se a figura que fizeram de Adam fosse do agrado deles ou não, ao menos era o suficiente para não serem levados á um hospício.

Era raro acontecer de somente um tomar todo o comando enquanto se moviam, só ocorria se o outro consentisse. Todavia, desde que tivessem um mesmo objetivo – coisa que treinaram muito para se tornar um hábito – ambos sincronizavam os movimentos de maneira coordenada e natural, sem precisarem pensar muito sobre o que deveriam fazer. Suas mentes eram separadas, mas ainda compartilhadas, por isso sabiam exatamente tudo o que o outro pensava, sentia e pretendia fazer, tornando o movimento quase tão inconsciente quanto de qualquer outra pessoa.

Andaram até o caixa eletrônico sem se comunicarem um com o outro, cada um imerso nos próprios pensamentos. Sabiam sim o que o outro estava imaginando, se prestassem atenção podiam compreender todos os detalhes, mas na maior parte do tempo ignoravam o que cada um pensava em particular. Era uma situação estranha, mas que gostavam de comparar a uma pessoa lendo um livro enquanto há uma televisão no mesmo cômodo. Sabe-se que o aparelho está ligado e se percebe pelo canto dos olhos a luz vinda de sua tela e o som por trás, mas se estiver mais concentrado na leitura do que no programa, tudo que remete á ele não passa de apenas um zumbido em segundo plano. Às vezes era difícil se concentrar na tal ‘’leitura’’, claro, mas acabaram se acostumando com a situação dado que não possuíam outra alternativa.

Sacaram o dinheiro do caixa, único momento da caminhada em que discutiram brevemente quanto realmente precisavam, em seguida, rumaram até a livraria. E apesar de possuir maior facilidade para se concentrar, Caim não conseguiu ignorar por muito tempo os pensamentos gritantes de ansiedade vindos de Abel, sempre tomado pelas alegrias mais simples do cotidiano como os livros populares que lia.

‘’Já Não Faz Sete Anos Que Lê Essa Mesma Série?’’

‘’sim, com quatorze livros no total. ’’

‘’Infelizmente Lembro-me Muito Bem Deles. Este Será O Último?’’

‘’espero que não. ‘’ Ao ouvir aquilo Caim fez com que Adam revirasse os olhos, um dos diversos movimentos que se sobressaiam sem que travassem por completo como antes. Ás vezes por serem gestos simples, eles podiam externar certos movimentos por conta própria, como expressões faciais, o riso ou o choro. Haviam apelidado tais fenômenos como ‘’Gestos dominantes’’, que dependiam somente da vontade de um para que se realizassem.

Abel prontamente tomou parte do controle ao vislumbrar o livro desejado dentre a prateleira de destaques, pegando um exemplar de forma afoita como se não houvesse ainda dezenas de unidades disponíveis. Apesar de não ter feito planos de pegar algo para si, Caim acabou se rendendo ao passarem pelos livros de teoria científica, decidindo por levar para si mais um exemplar de Carl Sagan. Gostos distintos, mas que querendo ou não um acabaria sabendo sobre a leitura do outro. Geralmente combinavam o tempo em que cada um faria as coisas de seu próprio gosto, pois o que era interessante para um poderia ser um tédio ao outro. Contudo, ás vezes acabavam apreciando um pouco dos passatempos um do outro.

Mesmo detestando a narrativa melosa e arrastada dos romances de Abel, Caim tinha curiosidade em saber que fim teria aquelas histórias repletas de intrigas familiares e escândalos novelescos. Enquanto Abel apesar de entediar-se a maior parte do tempo com os livros de não ficção de Caim, apreciava alguns pensamentos e ideias que chamavam a sua atenção durante as leituras, por vezes tinha até vontade de compartilhá-los nas redes sociais.

Era dessa forma que levavam aquela vida estranha. Cedendo, discutindo com calma e aprendendo a lidar com o temperamento de cada um, pois sabiam que caso não resolvessem seus impasses não havia como se separarem de qualquer forma. Lamentar-se de tal condição ou almejar por uma separação impossível era um pensamento quase que proibido entre eles, pois conheciam a toxidade que aquelas ideias tinham em seus amagos, por isso simplesmente aceitavam a forma que vieram ao mundo para não se ferirem e se tornarem amargos e soturnos como já haviam sido outrora. Assim, apesar da situação complicada e excêntrica, davam-se bem.

A maior parte das vezes.

‘’Por Deus, Você Me Tira Do Sério. Fale Com Ela Ou Supere De Uma Vez’’ A voz interna de Caim denotava uma impaciência ao ter de sentir o coração acelerar-se e as mãos ficarem trêmulas por culpa do outro. Há quanto tempo ele tinha uma queda pela mulher que trabalhava como caixa da livraria? Dois? Três meses? Abel sequer havia tido coragem de perguntar o nome dela!

’quatro meses para ser exato, e o nome é apenas um mero detalhe... se bem que se os funcionários usassem crachá não seria nada mal. ‘’ Abel interrompeu o pensamento do outro antes que este se concluísse. ‘’e sim, hoje irei falar com ela, me sinto confiante!’’

‘’Ah Claro, Com Certeza Irá Falar. ’’

‘’ eu posso sentir sua ironia caim, o farei se afogar nela quando a chamar para sair.’’

‘’Gosto Quando Desperta Esse Seu Lado Caótico. ‘’

Andaram em direção ao caixa que não estava com a fila grande, apenas duas pessoas a serem atendidas antes deles. Era uma livraria antiga, com cheiro de livro velho e mofado, mas com um ar nostálgico e aconchegante pelas prateleiras de madeira escura e do carpete verde e macio. Abel olhava de soslaio para a mulher que atendia os clientes, observando com fascínio seus belos traços, encantado com uma mecha de cabelo escuro que escapara do coque alto e dançava sob seu rosto. Consequentemente Caim também olhava para o mesmo ponto, mas não focando sua atenção para a mulher, mas para alguns diários dispostos no balcão como últimos do estoque, lembrando-se de uma breve discussão que ambos tiveram dias atrás.

Abel havia tido a ideia de cada um escrever um diário com os próprios pensamentos, sem a interferência do outro, como uma maneira artificial de simular a consciência deles de forma individual. Para que dessa forma pudessem provar de uma vez por todas ao mundo a verdade que se escondia dentro daquela cabeça; além de terem ao menos alguma coisa próxima de uma mente solitária. Caim achou tal ideia absurda e muito arriscada, por mais que Abel tentasse defender seu ponto o outro se recusava a ouvi-lo. Assim, para que não tornassem aquela discussão numa verdadeira briga, Abel preferiu não estender o assunto, deixando a ideia de lado desde então.

— Por que está pensando nisso? – Abel indagou em voz alta por distração, logo sentindo os dentes a machucar o lábio inferior por repreensão do outro ego. A senhora na frente dele o encarou por cima dos ombros, por sorte não compreendendo o que disse e virando novamente para frente como se nada fosse.

‘’desculpe, mas notei que estava relembrando minha ideia. ’’

‘’ Continua Sendo Uma Ideia Estúpida. ’’

‘’sei que acha inútil e perigoso tentarmos explicar nossa situação para os outros, mas podemos ao menos tentar fazer isso por nós antes de tomarmos qualquer outra decisão. ’’ as ideias de Abel fluíam por cima de Caim de forma que quase o afogava, tão excitado que ele estava com a mera possibilidade de mudança. Caim sabia que tinha de tomar cuidado para que não se inebriasse pelas emoções do outro, ou não poderia decidir de forma racional. ‘’vamos, será ótimo ter ao menos uma coisa parecida com uma cabeça sozinha! ‘’

‘’ Só Fique Quieto Um Instante Abel, Ou Não Irei Decidir. ‘’ Alertou e no mesmo segundo Abel calou-se o máximo que uma consciência era capaz. A fila andou ainda mais, tornaram-se os próximos. O coração de Adam saltou e um arrepio lhe subiu pelo corpo, culpa do ego apaixonado enquanto o outro somente encarava as capas duras em preto dos cadernos.

— Dá sessenta e cinco com noventa. – A atendente disse enquanto mascava um chiclete sem muita discrição. O corpo de Adam travou mais uma vez naquele único dia, brevemente desta vez.

‘’ mudei de ideia, fala você com ela. pergunta o nome. não consigo, não hoje. droga, droga, droga, droga... ‘’

— Coloque esses dois junto. – Caim tomou a voz repousando por cima dos livros os últimos diários da promoção. Realizou o pagamento e saiu andando de forma tranquila enquanto o outro o enchia de lamentos na cabeça em que compartilhavam.

Saíram do estabelecimento sem dizer nada diretamente um para o outro, com Caim absorto em suas dúvidas e Abel somente se lamuriando pela falta de coragem. Pegaram o carro no estacionamento, o corpo comandado não parecendo nada mais que uma pessoa qualquer para o mundo afora.

‘’Covarde’’. Caim proferiu por fim.

‘’ao menos o fiz mudar de ideia’’ Dirigiam de volta para casa no momento em que o céu estava sendo tomado pelas cores do crepúsculo, com as luzes dos carros iluminando a estrada como dezenas de faróis em alto mar.

‘’Não O Fez. Aceito Escrever O Diário, Mas Não Prosseguiremos Com O Resto Do Seu Plano Idiota. ‘’

’ veremos. ’’ O tom de Abel era de desafio, mas Caim sentia que ele somente estava feliz com a nova experiência.

Calaram-se, pois não desejavam travar um impasse diante do trânsito de final de tarde, tudo aquilo já estava literalmente dando dor de cabeça á eles. Havia muito tempo para conversarem, sem necessidade de marcarem visita.

 


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Notas finais do capítulo

Espero que as coisas não tenham ficado muito confusas, tentei de várias formas fazer esses dois funcionarem em conjunto. Deixei isso nas notas da história, mas caso não tenham lido já aviso que a condição de Caim e Abel não existe, é tudo completamente fictício, mesmo que se assemelhe em alguns pontos com qualquer outro transtorno já afirmo para que não ocorra essa confusão.
Não posso dizer ao certo quando virão os próximos capítulos, mas como não serão muitos já digo que tenho planos de terminar a história ainda nesse semestre.
Se gostarem deixem um comentário e nos vemos no próximo capítulo!



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