Reboot escrita por Dolmayan


Capítulo 2
E lá vamos nós de novo


Notas iniciais do capítulo

O ser humano fode as coisas.



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— Se esta palestra tivesse acontecido há alguns anos, ela não teria o tema que tem. Vocês estariam aqui ouvindo alguém falar sobre como a inteligência artificial será danosa, sobre seus riscos, sobre o que fazer para evitar um cenário apocalíptico sobre o homem sendo substituído pelas máquinas.

Havia cerca de trezentas pessoas no auditório. Nenhuma delas teve de pagar para estar ali. Exceto com contribuições científicas e com suas próprias palestras. Aquela, por acaso, era a apresentação mais especial e mais antecipada do evento. Ninguém realmente conhecia a pesquisadora que lhes falava no púlpito, o que tirou um pouco do brilho da revelação. Dos que a assistiam, todos sabiam que haveria um salto de inovação diante de seus olhos, em proporções raramente vistas. Mas ninguém sabia que aquela palestra definiria a humanidade para sempre.

Alguns anos depois, haveria uma discussão sobre reiniciar a contagem dos anos a partir de 2044. Por enquanto, grande parte das pessoas presentes estava olhando disfarçadamente para seus celulares, planejando o resto dos dias em Atlanta ou fazendo os últimos ajustes em suas próprias apresentações.

— Hoje, e isso é, pelo menos nas áreas desenvolvidas do mundo, temos veículos que se movem de forma autônoma, sem que seu passageiro precise sequer lhe dizer a rota. E seria inútil especificar uma rota, já que o computador dos nossos carros já sabe exatamente qual caminho percorrer para evitar congestionamentos, muito melhor do que nós poderíamos tentar. Quando acordamos, não precisamos fazer comida. O homo sapiens arcaico vivia em constante medo da ausência de comida, e muitos morriam de fome. Hoje, ela está pronta no momento que acordamos. O computador integrado à sua casa sabe qual o horário do seu despertador e sabe inclusive que horas você deve sair de casa para chegar ao trabalho, então pode começar a fazer seu café e seu pão antes mesmo de você acordar. Tudo que desejamos está ao nosso alcance, ao ponto que não precisamos desejar mais. E ainda assim, temos problemas grandes demais para serem resolvidos pelo intelecto humano sozinho.

Escondido nos bastidores, um homem em seus trinta e poucos anos, quarto ou quinto pós doutorado - ou seria sexto? - assistia a palestra através do transmissor em tempo real. Os bastidores sequer ficavam em Atlanta. Para uma melhor performance, Andrew fez questão de estar distante de qualquer computador que o colocasse em conexão direta com a apresentadora da palestra. Uma pequena câmera aguardava para transmitir sua mensagem para os trezentos espectadores diretos. Outras tantas se preparavam para exibir a imagem para o resto do mundo.

 

— Em algum ponto da evolução humana, nós, Homo sapiens sapiens nos diferenciamos das demais espécies de hominídeos da forma mais elegante possível. Nós estamos aqui, senhores, porque acreditamos em deus.

Houve silêncio e então murmúrios. Pesquisadores tombando para o lado e fazendo comentários à pessoa da próxima cadeira. Algumas pessoas querendo sair dali. Outras olhando para o celular, sequer perceberam o motivo do silêncio da apresentadora, ou o murmúrio dos espectadores. Ela, uma moça jovem demais para o nível de sua pesquisa, sorriu com a reação que causou. Aproveitou a pausa para tomar um gole de água de uma garrafa deixada ali para ela. Fez questão que a câmera captasse essa ação. Longe dali, Andrew sorria orgulhoso.

— Se olharmos para as primeiras construções complexas que o ser humano ergueu - ela gesticulou para o centro do palco, e um  holograma em leve tom azulado, mas majoritariamente colorido, surgiu, reproduzindo o formato 3D de uma construção em pedra -, todas elas, sem exceção - ela mudou a imagem para uma outra, também construída em pedra, e outra em seguida, ligeiramente mais complexa -, uma atrás da outra, por milênios - e outras tantas surgiram, com o nível arquitetônico evoluindo com a passagem do tempo -, todas elas são templos, tumbas, locais de sacrifício. Nós dedicamos e sacrificamos nossas vidas e as vidas de outros seres viventes em nome dos deuses. Nós nos reinventamos e superamos todas as demais espécies do planeta porque fomos capazes de acreditar em deuses. Os deuses cuidavam de nós. Os deuses olhavam por nós. Os deuses nos uniam. Se você acredita nos mesmos deuses que eu, eu confio em você, porque não há ser ruim sob os olhos e o cuidado dos meus deuses. Civilizações prosperaram em torno da fé.

Andrew tinha lágrimas nos olhos. Uma moça correu lhe buscar um papel para secá-las. Outra trouxe mais maquiagem para seu rosto.

— Mas em que momento nossas maiores conquistas deixaram de ser grandes obras de gigantescas proporções dedicadas a deuses - ela mostrou a Catedral de Notre Dame no holograma -, e passaram a ser grandes monumentos ao ser humano?

Na imagem, a catedral fora substituída por um prédio colméia, uma das mais aclamadas obras do desenvolvimento moderno. Auto-sustentável, com sistema de inteligência artificial integrado em cada parte da construção, ainda tratava-se de um protótipo. A primeira estava sendo construída em Dubai naquele ano.

— Ainda hoje, se você tomar seu avião para Roma, e tenho certeza que alguns de vocês o farão ao final do evento, podem ir visitar este templo construído em 120 D.C. Dois mil anos atrás, alguém pensou que seria absolutamente essencial e válido transportar dezesseis colunas de sessenta toneladas do Egito até Roma só para adorar aos deuses. Tantos morriam de fome, de sede, de doenças facilmente tratáveis, e iam rezar pela misericórdia dos deuses nesses templos que eram os marcos do avanço cognitivo humano. Hoje, como disse Nietzsche mais de cento e cinquenta anos atrás, deus está morto. Nós, seres humanos, somos nossos próprios deuses. Nós tratamos nossas doenças e construímos megaconstruções em nome do nosso próprio avanço. Porém, há um limite físico para nós. E é por isso que hoje nossas casas, nossos carros, nossos empregos, e até mesmo a vida de nossos filhos está entregue à diversas inteligências artificiais que fazem o que não podemos fazer, e atingem uma organização que não podemos atingir. Está nos seus celulares, nos seus óculos, nos seus relógios, nos chips de avaliação física sob suas peles.

Ninguém estava desconfortável com isso. Esse nível de controle era essencial para a manutenção do modo de vida moderno. Há muito, os seres humanos abdicaram de suas privacidades em nome da terceirização do controle de suas vidas. Ninguém percebeu isso acontecendo, ou sequer se importou. Era apenas natural. A platéia, no entanto, estava começando a perder o foco, abstraindo-se em seus celulares e postando comentários em redes sociais. Talvez, se soubessem o que estava por vir, teriam usado essas mensagens de uma forma melhor.

— Mas havia um nível de desenvolvimento que o ser humano ainda não havia alcançado. Podemos fazer algoritmos que produzem música, que produzem carros muito mais velozes e eficientes que qualquer humano seria capaz de produzir, podemos pedir que um robô aprenda a andar por si próprio, podemos fazê-lo criar video games. Mas não podemos criar um robô com inteligência artificial que ouça música porque lhe agrada. Que goste de dirigir um carro veloz. Que deseje participar de uma maratona ou que se vicie num vídeo game em especial. O impacto de tal inteligência seria absoluto. A consciência por si só não é essencial para um organismo funcionar de forma autônoma, e há divergências científicas a respeito do livre arbítrio humano, mas, sem dúvida, com uma IA com um nível de inteligência consciente e dotado de morais, o ser humano pode atingir feitos jamais pensados em tempo recorde! Um android que passe o teste de Turing em ampla escala pode se preocupar com o planeta Terra e trabalhar de forma flexível e colaborativa para salvar as abelhas da extinção, e junto delas, salvar os seres humanos. Sem uma IA capaz de tomar decisões com base moral, os cálculos mais precisos nos garantem cerca de cinquenta anos de existência humana antes que nossa passagem pelo planeta se encerre devido à extinção das abelhas.

Naquele momento, Andrew sentiu que o mundo inteiro havia se desviado de seus celulares por um segundo. Era um feito extraordinário a se fazer. O problema com as abelhas havia assolado o homem por gerações e gerações. Agora nos víamos à beira de um colapso inevitável, e os cientistas do mundo todo trabalhavam em conjunto para sanar as consequências da extinção das abelhas. Um terço de toda alimentação humana era diretamente provindo da polinização das mesmas. Outros dois terços vinham indiretamente. O setor que mais havia ganho com tudo isso fora o de aromas e texturas alimentícias. Substitutos para plantas extintas já estavam à venda no mercado, mas eram caros e grande parte da população mundial não tinha acesso.

O fato é que restavam pouquíssimas abelhas no mundo, e nem todo o poder da IA até o momento havia sido capaz de resolver o problema. 2044 era um marco na história humana, porque ninguém jamais poderia imaginar que estaríamos no topo do desenvolvimento tecnológico e à beira da extinção ao mesmo tempo.

— Assim como um dia o homem não poupou esforços para criar a maior obra de engenharia e arquitetura de seu tempo e de muitas centenas de anos depois, em nome de deuses, assim como o Pantheon foi um marco para a evolução cognitiva para o homem em sua tentativa de se aproximar dos deuses, um android com IA desse nível seria o marco moderno da capacidade humana. E pela primeira vez, quando não são os deuses que buscamos, mas a nós mesmos, é que nos aproximamos mais do que nunca dos deuses. Muito prazer, eu sou Thea, android criada por Andrew Eagle, a serviço da humanidade.

O que se sucedeu no instante seguinte foi o caos. Andrew preparou-se para entrar em cena, mas se interrompeu. Havia algo de errado na platéia. O mundo assistia em choque o anúncio mais importante do milênio, seguido do maior retrocesso, ao mesmo tempo. Thea claramente notou que algo ruim aconteceria. A android assistiu um rapaz se erguer de sua poltrona, sem chamar a atenção de ninguém mais. Foi só quando ele tirou uma arma do casaco que o resto dos cientistas se abaixaram. A mira foi claramente sobre a IA.

Andrew xingou, do outro lado do país, e tentou entrar em contato com o auditório. No entanto, seu telefone começou a tocar, impedindo que o usasse para fazer a conexão como era esperado. O número era desconhecido. Enquanto atendia e tentava avisar quem quer que fosse que estava muito ocupado, os seguranças do evento entraram no salão e saltaram sobre o rapaz. Alguns tiros foram dados, mas nenhum deles na direção da IA ou dos demais participantes.

“Doutor Andrew Eagle,” disse a voz do outro lado, “precisamos que se mantenha onde está. Nossa equipe irá buscá-lo. Sentimos muito pela IA

A televisão mostrou o rapaz se debatendo e tentando chegar a um pequeno fio que saía de seu casaco. Quando conseguiu, uma grande labareda tomou conta de todo o salão. Em seguida, a transmissão se encerrou.

 

 

 


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Notas finais do capítulo

“Oitenta baixas registradas. Número deve su- [...]. Equipe vermelha, favor con[...] os parentes. Equipe [...] assistência à equipe de relações. Conter vazamentos das [....]”



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