Detroit: Origens escrita por AlphaVox


Capítulo 3
Escapatória


Notas iniciais do capítulo

E mais um capítulo chega! Tenham uma boa leitura :)



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Sala de visitas 8 da prisão, 24 de junho de 2026, 02:57

 

Em um primeiro momento, os policias algemaram Sam e o levaram na direção da ala de transferência de prisioneiros, para colocá-lo (na verdade, jogar ele no porta-malas do carro teria sido uma versão mais adequada) no porta-malas e seguir aonde quer que Kamski o quisesse levar. Mas o milionário simplesmente levantou a mão e disse:

— Ele vai comigo.

Amanda fez cara de quem tinha engolido um sapo, ou de quem tinha chupado limão azedo. Sam percebeu que ela só não soltara um palavrão para manter a própria compostura na frente dos policias, o que o fez soltar uma risadinha que rapidamente transformou em um acesso de tosse falso.

Tudo bem, ele ainda estava algemado e com aquele macacão ridículo que parecia mais um membro perdido dos Teletubbies, mas ainda assim... um lugar no banco do passageiro para ele era uma novidade impressionante.

— Ele é um prisioneiro perigoso, senhor. Não deve ficar sozinho com ele. – retrucou um dos policias, com uma expressão séria no rosto.

Kamski riu.

— Não estou sozinho. – Kamski estalou os dedos, e quatro guardas surgiram de uma sala anexa do corredor, como se esperassem o sinal. Eram estranhamente todos iguais: cabelo castanho curto, olhos azuis brilhantes, altos e musculosos. Tinham uma sincronia perfeita, a marcha dura de seus pés fazia um barulho idêntico enquanto batiam as botas contra o chão de gesso do corredor da prisão. Então Sam reparou no triângulo azul neon brilhante estampado em suas blusas, e na faixa colada em seus braços. E em suas expressões vazias.

Androides.

Um dos policias que o segurava afrouxou o pulso, hesitando, claramente desconfortável. Ele se virou para Kamski, os olhos castanhos brilhando com uma mistura de medo e incredulidade:

— Achei que não existiam androides policiais.

— Bem – falou Kamski –, ainda não existem androides que façam a investigação da polícia, claro. Mas imagino que a função de guarda pode muito bem ser ocupada por um androide. Esse tipo de trabalho perigoso é perfeito para máquinas como essa.

O guarda humano que segurava Sam engoliu em seco. Sam conhecia aquele olhar: era a cara de alguém que estava prestes a perder o emprego para uma máquina. A máscara de policial durão caiu, e apesar de ele ter chamado Sam de idiota (tudo bem, muitas vezes ele era verdadeiramente idiota, mas não precisava ter jogado isso na cara dele), Sam sentiu pena do policial. Sentia pena de todos os pobres coitados que não tinham feito nada além de amar o próprio trabalho e ainda assim foram substituídos por plástico ambulante.

Lógico, um plástico ambulante muito fascinante e realista. Mas mesmo assim, só uma máquina.

— Entendo, senhor – o policial disse com uma voz baixa.

Os policiais o soltaram, ainda inseguros e com as armas preparadas para ver se Sam tentaria alguma coisa contra eles ou contra o milionário, que encarava a cena com divertimento nos olhos, a expressão de alguém que via uma série de televisão enquanto comia pipoca. Sam logicamente não fez nada: que chance tinha de escapar contra três policias, quatro androides, um gênio rico e uma mulher séria? “Não que os dois últimos fossem um problema”, pensou ele, “não sou tão ruim assim”.

Para a sua imensa surpresa e gratidão, os androides não o pegaram pelos braços como os policias. Simplesmente entraram em uma formação quadrada perfeita, dois na frente de Sam e dois atrás. Ao dar um passo para a frente, os androides o acompanharam perfeitamente, mantendo guarda de cada movimento de Sam.

Sam teve que resistir muito para não começar a dançar no meio da prisão só para ver se os androides o acompanhariam.

— Muito bem – diz Kamski – siga-me.

Sam seguiu Kamski na direção da porta de entrada, atravessando o corredor úmido e gelado e indo para a sala de entrada principal, onde ficava uma delegacia anexa. Para o desgosto de todos ali (menos os androides, Sam imaginava), a delegacia estava terrivelmente quente, mesmo com o ventilador e com as janelas de vidro abertas para uma ruela comum da parte pobre de Detroit. Dali, Sam conseguia ver apenas o que os postes de luz conseguiam iluminar na noite abafada: o asfalto mal colocado, ervas daninhas crescendo nos jardins, e a calçada cheia de lixo. As casas do outro lado da rua eram todas sujas, pequenas e caindo aos pedaços, algumas em ruínas.

— O que é isso? – trovejou uma voz grossa e irritada.

As únicas pessoas na delegacia, ironicamente, eram Hank Anderson e Jeffrey Fowler, a dupla da polícia mais famosa da cidade e responsável pela captura de Sam em sua tentativa de sair dali. Ao verem Kamski e Amanda, os dois pararam, totalmente embasbacados pela situação.

— Sam Wright vai viver em custódia na CyberLife. – diz Amanda. Sua voz era calma, firme e determinada, mas era possível ver certo desgosto por trás de seu tom.

Fowler, ainda chocado, foi para a trás da mesa de arquivos, rapidamente checando prateleiras e deixando o lugar de pernas para o ar, até identificar o arquivo de Sam. Seus olhos dançaram pelo papel:

— Um criminoso?

— Creio que tudo aqui está dentro da lei, detetives, não há nada sobre o que se preocupar – diz Kamski – Toda a segurança foi provida para manter o Wright na linha. Mas às vezes, tem que admitir que o conhecimento dele é muito importante para ficar preso no meio do Alasca, não?

— Conhecimento e arrogância – murmurou Anderson, apoiado na borda da mesa.

— Enfim, sairemos agora. Boa noite, detetives. Boa noite, umm – ele olhou para os três policias atrás de Sam –, resto.

Kamski caminhou para a porta de entrada, seguido de Amanda. Sam caminhou atrás, com os dois androides escoltando a frente e dois escoltando suas costas. Os policias ficaram parados entre o corredor e a sala de delegacia principal, apenas acompanhando o grupo que saía com um olhar desaprovador. Anderson parecia decepcionado, Fowler, furioso.

Lógico que Sam não resistiu.

Por trás do ombro, ele deu um aceno com a mão direita para eles, sorrindo, murmurando com os lábios “até mais, otários!”. Ele se virou na direção do carro de Kamski a tempo de ver o dedo do meio de Fowler na direção dele.

***

Sam não via o centro de Detroit havia meses. Não sabia se isso era algo bom ou não, mas ele não desgrudou os olhos da janela do carro ao passarem pelo Hart Plaza, pela galeria de arte, e pelos lindos prédios envidraçados que iluminavam a noite com luzes coloridas. As pessoas passavam com sacolas de compras de todos os tamanhos e cores, a música alta que saía das lojas e das vitrines tentadoras preenchia o ar com o som pulsante de cidade grande, e os carros corriam pelos lados em uma corrida sem prêmio.

E claro, androides por todo lado.

Sam nunca tinha visto tantos androides caminhando pela cidade: ou vendendo nas lojas, ou acompanhados de algum humano com suas famílias. Aquelas raras máquinas que Sam teve a oportunidade de conhecer ou eram reféns de algum roubo que um criminoso fazia para ganhar algum dinheiro extra, ou diversão de rua qualquer. Não era incomum os grupos criminais de Detroit, após se divertirem quebrando ou batendo em um deles (sem falar em outras coisas piores), desmembrarem um androide e vender biocomponentes (e placas, e fios, e o sistema, e... mais um monte de coisa que Sam não ligava) no mercado negro por um preço mais barato, mas que dava uma bela grana.

Fora assim que ele tinha descoberto seu interesse por tecnologia: mexendo em circuitos de androides que tinham sidos jogados no lixão ao lado de sua casa, religando computadores velhos, e reprogramando softwares até descobrir seu talento como um hacker para partir para coisas mais sérias. Uma transferência de banco era uma delas. E quando o dinheiro apareceu magicamente na conta de casa, sua mãe estava tão drogada em rubrite que nem percebeu o que tinha acontecido, só dado graças a Deus que tinha mais dinheiro para ela conseguir mais.

Se tinha uma pessoa de quem Sam sentia falta era a sua mãe. Não a mulher que se envolveu em bebedeiras e que chegava em casa tarde, com homens que sumiam no dia seguinte: não, Sam sentia falta da mulher determinada, forte e orgulhosa que um dia ela fora. Que cuidara dele até os seis anos até perder o emprego e ser obrigada a achar outros meios de conseguir dinheiro... meios que ela se recusava a mostrar para um inocente Sam de sete anos e meio, que ia para uma escola suja de uma das partes mais pobres e perigosas de Detroit. Uma parte que nunca tinha ouvido falar de androides ou tecnologia similar, uma parte que morria de fome e que precisava se sentir feliz pelo fato da casa ter um teto. E lógico, que crescia cada vez mais com a onda de desemprego.

E fora com dez anos que chamara atenção de uma simples gangue de rua. E com doze que chamara a atenção de um dos grupos de bandidos mais famosos de toda a cidade.

Com treze ele fugira de casa.

— Admirando a vista? – Kamski arrancou Sam de seus pensamentos, olhando bem nos olhos dele enquanto derramava um copo de uísque na garganta.

— Faz certo tempo que não venho aqui – diz ele, dando de ombros.

Dentro do carro estava um frescor agradável, com o ar-condicionado silencioso ligado e os ventiladores a todo vapor. Como todos os carros mais modernos de Detroit (e mais comuns entre as pessoas ricas), aquele era um típico carro autônomo, então ninguém estava no volante. Dentro do carro, que era maior do que uma limusine, havia uma sala com três cadeiras acolchoadas, uma mesa ornamentada, e uma televisão.

Lógico, adaptada para um prisioneiro perigoso com uma guarda de quatro androides que podiam facilmente derrubar um time inteiro armado, e que no momento, se postava ao lado de Sam.  

Mas ele estava ocupado demais babando pela janela do que prestar atenção nas quatro versões masculinas da Barbie.

Kamski pareceu entender, dando um aceno mínimo com a cabeça.

— Já colocou as mãos no software de um carro autônomo? – perguntou o milionário.

— Apenas placas, o hardware. O software já tinha sido deletado. Então não sei como os códigos funcionam. Por que?

— Nada, estava curioso – retrucou Kamski – Imaginei o que os criminosos fariam se tivessem um programa tão complexo como um desses carros.

— Como assim? – Sam nem sabia porque estava caindo na conversa daquele mimadinho. Mas do jeito que ele falava parecia fazer com que tudo soasse interessante, então Sam decidiu continuar com o jogo.

— Esses carros tem o poder de analisar a ficha de qualquer pessoa em questão de milésimos de segundos. O poder de computação que uma belezinha dessas tem é tremenda: conseguem processar tudo o que há de disponível sobre qualquer um nesse intervalo de tempo, desde de uma pesquisa avançada na internet até relatórios policias. Acho isso muito fascinante.

— Isso é um carro – retrucou Sam – para que adicionar essas coisas?

— Bom, suponha que um carro autônomo se envolva em um acidente com um carro não-autônomo, e não é possível salvar todos os envolvidos. Esses carros conseguem analisar a ficha de cada pessoa para ver qual é a mais importante para sobreviver ao acidente.

Aqueles carros faziam isso? Sam ficou dividido entre a vontade de admirar a capacidade de processamento de um software daqueles, e de vomitar. Como uma máquina podia decidir o peso de uma vida?

— Uma vida é uma vida – disse Sam. Por mais que odiasse muitos tipos de pessoas, Sam já vira o suficiente de tortura para saber o quanto rótulos como pobreza, status e saúde não significavam nada em frente à morte.

— Acredita mesmo nisso? – diz Kamski – Então me diga: se matar uma pessoa significasse a vida de mais duas... o que você faria?

— Eu... ahm... – aquilo o deixou sem palavras. Havia muitas respostas para aquela pergunta, e nenhuma soava certa. Sam não tinha tido muitas oportunidades para discutir filosofia em sua vida – mataria, se fosse assim. Seriam duas vidas pelo peso de uma.

— Ah, mas e se a pessoa morta fosse um amigo ou parente? Ou um médico que pode inventar a cura de uma doença e salvar milhares de pessoas? E se as duas pessoas salvas fossem dois assassinos?

Sam ficou quieto, engolindo milhares de possibilidades de repostas e oferecendo um silêncio desconfortável. Amanda, ao lado de Kamski, observava a cena com interesse e um sorriso misterioso, que lhe provocou um calafrio na espinha.

— Eu... não sei nada sobre essas merdas filosóficas aí. – Aquilo soou tanto como uma desculpa para a sua falta de resposta que até mesmo Sam se xingou por dentro. Por não ter levantado o queixo e ter falado qualquer coisa, só para desafiar Kamski. Sam gostava de ser o irreverente, estava acostumado a ser o melhor e sempre ter as respostas.

O milionário apenas riu baixinho.

Sam olhou para os lados: os bonecos Barbie (Sam decidiu chamá-los assim. Era uma realidade) não tinham se mexido desde que o carro tinha começado a andar. E não mudaram a expressão em nenhuma parte da conversa. Não tinham nem checado a janela.

Sam sabia que eram apenas máquinas, computadores que sabiam andar. Mas ele tinha que admitir que era extremamente perturbador ter uma coisa que parecia tanto com um ser humano com reações tão neutras. Era realmente muito... extraordinário. Se não fossem pelos uniformes e pelo LED na testa... podiam se passar por pessoas de verdade.

Quando ele achou que Kamski e Amanda não estavam olhando para ele, ou distraídos olhando pela janela, Sam estalou os dedos na frente do androide ao seu lado:

— Alô? Ó de casa!

Nada. Nem um piscada de olho, nem um susto, nada.

Então o androide disse, com uma voz monótona:

— Samuel Wright, considerado um criminoso e no momento, sob custódia. Não tenho autorização para responder qualquer tipo de tentativa de comunicação que não faça parte do protocolo.

Por instinto, Sam se encolheu no estofado de couro da cadeira. Aquilo atraiu o olhar de Kamski.

— Não seja tão impaciente. – diz o milionário, recostando-se confortavelmente na poltrona – Já chegaremos na CyberLife.


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Notas finais do capítulo

Espero que tenham gostado! Até o próximo capítulo!



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