Resgate-me escrita por Alice Alamo


Capítulo 1
Capítulo Único




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Não havia mais sentido. Sabe quando você acorda simplesmente desejando que o mundo não existisse? Que você não existisse? Bem, eu sei… O despertador podia continuar tocando por mais duas horas seguidas que fosse, eu não ia me levantar, o som nem mesmo me incomodava mais. Era apenas um barulho, um que não me dava forças para soltar o travesseiro ou perceber que precisava mesmo me erguer. Na minha mente, eu sabia: tinha aula, obrigações, tantas tarefas para aquele longo dia, mas nada, absolutamente nada, era o suficiente para que as mãos afastassem a coberta. A importância das coisas tinha desaparecido, como se eu não fosse mais capaz de entender o porquê me preocupava com elas antes.

As batidas na minha porta foram o ultimato. Meus pais deveriam ter acordado com o meu despertador, achando que eu apenas não o ouvia por ter dormido tarde de novo, como se ainda fosse uma adolescente. Revirei os olhos antes de fechá-los com força, desejei do fundo da minha alma não existir, pelo menos naquele dia, só naquele dia… Era tão difícil assim o mundo parar por algumas horas até que eu reecontrasse meu centro?

“Vamos, vamos, levante-se”. O maldito mantra era repetido em voz alta até que novamente as batidas na porta se faziam presentes. Levantei num pulo, joguei a coberta para longe e me pus de pé antes que a coragem, ou seja o que fosse, desaparecesse. O primeiro passo já me fez querer sentar de novo, mas não podia. Sentar me faria deitar, deitar me faria dormir ou encarar algum ponto perdido do quarto por horas e horas sem mover um único músculo, fingindo que a vida lá fora não acontecia.

Calcei os chinelos e fui direto para o banho. Havia uma vã esperança, não sei porquê, de que a água levasse pelo ralo meu desânimo, o que não acontecia. Dentro do roupão, eu encarava meu reflexo pálido sem o reconhecer. Escovava os dentes enquanto buscava naquela imagem perdida algum traço que me fosse familiar. As olheiras estavam escuras, meus pais falariam sobre isso mais uma vez se eu não as escondesse bem com a maquiagem, como se eu fosse a culpada e não a insônia; meu cabelo estava sem corte, mas parecia tão superficial me preocupar com isso… Antes, seria a primeira coisa que eu consertaria em mim, nunca tinha deixado nem pontas duplas aparecerem, mas era como se agora não fizesse o menor sentido cuidar de um detalhe como aquele. Meus lábios estavam machucados, eu havia desenvolvido o mau hábito de arrancar a pele ressecada deles e isso criava pequenas feridas que sangravam e ardiam toda vez que escovava os dentes.

Já havia uma roupa passada e dobrada sobre minha cama, uma tentativa da minha mãe de garantir que eu me vestiria bem e não com os “trapos” que vinha usando nas últimas semanas. Não a contrariei, isso demandava muita energia e eu já estava com preguiça só de colocar aquela calça e os tênis caros.

Meu irmão mais novo corria pela casa, o riso dele repercutia pelas paredes e, sinceramente, eu só massageava as têmporas querendo que ele ficasse quieto. E não… não me entenda mal, eu amava meu irmão e sabia que ele não tinha culpa alguma do meu mau humor, mas como ele podia ser tão feliz o tempo todo??

Segurei a mochila pela alça, sem a colocar nas costas. Meu pai passou por mim e beijou meu rosto antes de se despedir, ele entrava mais cedo no trabalho, e minha mãe aguardava a mim e a meu irmão para tomar café da manhã. Os olhos azuis dela tão cheios de vida me encaravam com preocupação, escaneavam-me reparando no cabelo mal penteado e na maquiagem que eu não tive vontade de usar. Ela suspirou, sorriu de repente como se quisesse me dar ânimo e me empurrou a caneca com chocolate quente.

A comida me embrulhava o estômago. Não havia fome, não havia vontade, e isso era assustador vindo logo de mim, alguém que comia tudo e qualquer coisa que visse pela frente. Eu sentia falta do meu apetite, do prazer de comer minhas comidas favoritas; agora, tudo parecia ter o mesmo gosto, a mesma textura arenosa a arranhar minha língua e descer à força pelo esôfago. Bebi o chocolate quente na tentativa de disfarçar meu mal estar, os olhos de minha mãe acompanhavam cada gesto, e repeti a mim mesma para engolir logo tudo a fim de por fim à cena.

Meu irmão balançava as pernas, agitado, olhava-me com animação, esperando que eu mostrasse que o tinha visto. Isso era tão cansativo… Suspirei, minha mão pesava, mas dei um jeito de a levar até os cabelos dele e bagunçá-los sem muita energia.

— Você está bem para dirigir, Ino? — minha mãe perguntou ao me dar a mochila de meu irmão.

— Por que não estaria? — indaguei, pegando as chaves do carro. — Vou deixar ele na escola e ir para a faculdade. Devo demorar para voltar hoje.

Ela concordou, os braços cruzados e os olhos buscando uma resposta para algo que ela não entendia. Coloquei meu irmão no banco de trás, travei seu cinto e fechei os olhos ignorando a música que ele cantava segurando seus bonecos. Respirei fundo ao dar partida no carro. Odiava dirigir, era uma tortura, e a música infantil fervia meu cérebro. Como e por que ele podia estar tão feliz? Qual o maldito motivo para toda manhã ele estar tão feliz?

O alívio quando cheguei à escola dele foi imediato, a canção parou, e eu o levei até o portão. Ele se virou para mim com os braços abertos e o sorriso enorme, e me senti a pior pessoa do mundo por, por um breve momento, querer recusá-lo. Afastei os pensamentos e me abaixei depressa, como se isso me livrasse da culpa, abracei-o com força, beijando cada cantinho do rosto dele e o ouvindo rir. Esperei que entrasse pelos portões e me levantar do chão exigiu mais forças do que o usual.

Sentada no banco do carro, permaneci alguns minutos sem o ligar. Eu devia ligá-lo. Tinha aula em meia hora, precisava dirigir, mas a inércia me impedia. Olhei para o volante e desejei poder segurá-lo, mas não dava, meu corpo não respondia, eu só queria ficar parada, fechar os olhos e continuar ali, esquecida do mundo mesmo sem uma razão para isso.

Meu celular vibrou, eu sabia quem era… Queria atender, precisava atender, mas o toque fez meus olhos arderem, e as lágrimas quentes escorreram num claro atestado de culpa. Não quis mais atender. Para quê? Para repetir o que ele já sabia? Para repetir que de novo não estava conseguindo? Ele cansaria. Uma hora ou outra, ele cansaria…

Eu não era mais a mesma do ensino médio, não era nem a sombra da garota que ele havia conhecido e por quem tinha se apaixonado e, num momento, ele veria isso também, se desapegaria de mim e escolheria seguir com a vida sem a mim para atrasá-lo. E isso era tão assustador! Tão angustiante!! Eu não queria o afastar, queria gritar para que ficasse do meu lado, deitar com ele e pedir que me abraçasse enquanto o mundo todo podia se explodir! Mas, ao mesmo tempo, não era justo, não com ele… ele se cansaria, enxergaria em mim a âncora que o mantinha sempre preso. Nada de festas, nada de família, só a mim e a vida que escorria por entre meus dedos.

O celular ainda tocava e eu o segurei com força. Precisei repetir quatro vezes em pensamento e mais cinco em voz alta o comando para atender logo e quase que a ligação caiu…

— Bom dia.

A voz dele era calma, serena, trazia uma tranquilidade que me fez relaxar o corpo no banco do carro enquanto respirava fundo.

— Bom dia, Gaara — respondi, rouca, a voz vacilando e entregando meu estado por mais que eu tivesse tentado disfarçá-lo.

— Onde você está? — ele perguntou depois de uma pausa, como se eu não soubesse o motivo.

— Na escola do Rin.

— Me espere, tudo bem?

Engoli em seco, a garganta fechando enquanto o choro rompia. A respiração calma dele no outro lado da linha me fazia pressionar o mão contra a boca para que pelo menos os soluços ele não ouvisse, ele não merecia isso, não havia motivo para eu chorar, então por que parecia incontrolável? Por que meu peito explodia naquele pranto sem explicação? Porque parecia que as lágrimas me sufocavam e que eu precisava tirá-las de mim??

— De que cor o céu está hoje? — ele perguntou de repente, e ouvi a movimentação também, ele estava andando.

— O céu? — Ri, sem humor. — Cinza.

— Você nem olhou, assim não vale — brincou. — De que cor está o céu, Ino?

Balancei a cabeça em negação, mas meus olhos me traíram e se ergueram para buscar a resposta.

— Azul e branco. Vai chover.

— Droga, eu esqueci o guarda-chuva em casa — ele resmungou. — Vai demorar para chover?

— Como que eu vou saber? — perguntei, cansada, ainda que aquela conversa tosca me fizesse bem de alguma forma inexplicável.

— Você sempre sabe, Ino, sempre acerta. Acho que muito tempo trabalhando com sua mãe na floricultura te deu esse dom, eu sempre acabo molhado quando você diz que vai chover — ele comentou divertido, e eu o ouvi falando com outra pessoa um pouco mais em voz baixa depois.

— Já ouviu falar em previsão do tempo, Gaara? Funciona bem...

— Você sabe que me mudei de um estado que fazia muito calor, não chovia tanto como aqui — ele tentou se justificar, ainda calmo.

— Isso não explica por que não checa a previsão do tempo, amor.

— Para que previsão se eu tenho você? Sabe que acerta mais que eles, não é?

A voz dele era mansa, parecia uma carícia ouvi-lo, eu não precisava nem mesmo saber sobre o que ele falava, bastava fechar os olhos e deixá-lo me contar sobre o dia, sobre a maldita cor do céu, sobre como as aulas dele eram, sobre o trânsito, qualquer coisa desde que ele se mantivesse ali… comigo. Até que finalmente chegasse…

Eu era a pior… a culpa voltava com força quando o via descer do táxi a alguns metros e então se apressar até meu carro. Queria dizer que não, que isso não era comum, mas mentiria… Gaara se aproximava com um sorriso gentil, os cabelos vermelhos úmidos naquele frio e o cachecol que eu tinha lhe dado há dois ou três anos mal colocado. Ele apoiou a mão na maçaneta, esperando eu destravar o carro, mas não quis.

Queria! Mas o choro voltou… eu o havia feito sair da faculdade, mais uma vez, mais uma aula perdida para me resgatar do nada! Não havia perigo, não havia justificativa alguma para contar a mim mesma a fim de diminuir ao peso dos meus ombros. Era um capricho, estava sendo um obstáculo na vida dele por puro capricho.

— Ino, me deixa entrar — ele pediu, apoiado na porta.

Fechei os olhos, a mão já na maçaneta. Eu precisava daquele resgate, mas não sabia por que. Do que ele estava me salvando?

Abri a porta, e ele foi rápido em me abraçar. O perfume dele era doce, o que eu havia comprado, a roupa estava gelada pelo vento, mas os braços dele pareciam acolher tão bem o meu desespero que foi fácil desmontar de vez na esperança que ele me ajudasse a recolher os cacos. Demorei a soltá-lo, me sentia um parasita a buscar nele todo o conforto de que precisava, e ele ainda não parecia ligar! Como ele podia não se importar? Por quê?

Ele dirigiu até o apartamento dele, os dedos entrelaçados aos meus enquanto me guiava ao elevador e depois ao quarto. Ele se deitou atrás de mim, envolveu minha cintura com firmeza, beijou minha cabeça e me manteve perto. Girei, escondendo meu rosto na curva do seu pescoço e chorando em silêncio enquanto ele me apertava mais forte. Os dedos dele acariciavam meus cabelos, os lábios doce alternavam entre minha testa e minha bochecha de tempos em tempos, e meu coração pareceu estancar a hemorragia conforme Gaara me prometia que tudo ficaria bem.

— Eu não to bem — sussurrei, e admitir isso fez o choro voltar com força, a voz mais alta do que a dele ao tentar me acalmar. — Desculpa, por favor, me desculpa, eu não sei por que, mas eu não to bem…

Ele suspirou, me abraçou, eu sentia o coração dele acelerado na minha mão. O corpo dele era quente, como um porto seguro, e eu me agarrei a ele como ao oxigênio para respirar.

— Você precisa de ajuda, Ino — ele sussurrou, com cuidado, como se eu fosse um cristal frágil e suas palavras pedras a quebrá-lo. — Me deixa te ajudar…

E lá íamos nós de novo… o meu choro não era capaz de abafar as palavras dele, e eu já conhecia o discurso de cor. Ele me falava da irmã, Temari era um psicóloga maravilhosa e muito boa no que fazia, e Gaara tentava de novo me fazer aceitar ir em uma consulta.

Os lábios dele tocaram o meu rosto, e as pontas dos dedos secaram minhas lágrimas não importava quantas vezes elas voltassem a cair. Ele me olhava com carinho, e só Deus sabe o quão grata eu era por não ver pena nos olhos verdes. Senti meus lábios tremerem, a vontade de pedir para que ele nunca me deixasse ali: na ponta da língua; e ele sorriu, calmo, segurando o meu rosto com as duas mãos antes de me beijar de forma demorada, sem se importar com minha aparência patética.

— Não vou a lugar algum sem você, não se preocupe… — ele garantiu, doce, e os braços me puxaram de novo para si, afastando parte dos sentimentos ruins que meu peito parecia abrigar. — Descanse, durma um pouco, vou ficar aqui com você. Você não conseguiu dormir muito, não é?

— Me desculpe…

— Sh… — Ele acariciou o meu cabelo. — Tudo bem, não se preocupe… Temari vai vir aqui mais tarde. Pode conversar com ela aqui em casa? Eu busco Rin, não se preocupe.

Não, era o que eu queria falar, mas parte de mim gritava que sim, uma parte pequena, enterrada bem no fundo da minha mente, como se trancafiada. “Sim”, repeti mentalmente, várias e várias vezes, mas a palavra não tomava forma na minha boca, não vinha até ela, e meus lábios permaneceram cerrados enquanto os olhos voltavam a lacrimejar. Eu queria ajuda! Eu precisava de ajuda! Mas o pedido por socorro parecia não vir, não valer a pena, como se nem mesmo isso importasse e só me restasse esperar me afogar naquela angústia sem explicação.

— Ino, por favor… — Gaara pediu, baixinho, as mãos me segurando e me dando segurança para o olhar e somente acenar com a cabeça. Ele suspirou aliviado, sem nem ao menos conseguir disfarçar, o sorriso voltou à face e ele me beijou o rosto com cuidado antes de me acomodar em seu peito. — Obrigado.

Era eu quem deveria agradecer, mas não fiz. Meu corpo estava inerte, minha mente parecia cansada demais embora eu não tivesse feito nada para justificar tal falta de energia. Fechei os olhos, Gaara falava algo baixinho, desembaraçava meu cabelo com calma, e eu mergulhava lentamente no sono fingindo que o mundo inteiro não existia. Quando acordasse, ainda não desejaria me levantar, a inércia continuaria a me fazer refém, mas Gaara estaria comigo, ele conseguiria, como sempre, me resgatar para seus braços…

Ele estava certo… eu precisava de ajuda e, dessa vez, não a recusaria, uma parte de mim tinha certeza de que, se o fizesse, não haveria mais volta, eu afundaria, tão fundo que nem mesmo Gaara poderia me resgatar mais… E isso me assustava, olhar para o abismo ficava ainda mais aterrorizante quando ele parecia te olhar de volta com os braços estendidos prontos para te receber.

— Eu te amo tanto… — Ouvi Gaara sussurrar e engoli a vontade de questioná-lo como ele ainda conseguia. Toquei seus lábios com os meus, de leve, e, pela primeira vez no dia, sorri.

— Também te amo.

Ele sorriu e arrumou a coberta em mim enquanto coração, braços, lábios e palavras construíam um forte ao meu redor.

— Durma um pouco, descanse, eu vou estar aqui quando você acordar — garantiu. Meu corpo pareceu atender às suas palavras e minha mente se rendeu à certeza com que ele repetiu a última parte. — Eu sempre vou estar aqui para você...


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