A Pele do Espírito escrita por uzubebel


Capítulo 14
Capítulo 13




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Lorena

 

Depois de Alice voltar para casa, pela manhã cedinho, eu voltei à minha busca pelos ingredientes que Tâmi tinha me passado. Terra e fogo, é isso que vai manter Isméria longe, o Espírito do rio tinha dito. Mas isso era só um resumo. Beeeem resumido. O mais fácil era andar sempre com a pedra turquesa que ela tinha me dado, tanto tempo atrás, no bolso ou colada ao meu corpo. O que uma pedrinha colorida podia fazer de útil, eu não sabia, mas Tâmi tinha insistido e me feito prometer que andaria com ela sempre, onde fosse. Ela também tinha me mandado secar a água do mar para tirar o sal (que teoricamente era terra), queimar raízes para conseguir cinzas de cheiro horrível, modelar braseiros de argila vermelha da cor do fogo e coletar um monte de ervas. Eu levei três dias para fazer quase tudo e encontrar alecrim, funcho e sândalo pela ilha, mas ainda faltava um ingrediente... Uma planta da qual eu nunca tinha ouvido falar o nome.

Eu não era uma grande conhecedora do assunto. Na verdade, tinha aprendido a usar algumas ervas de ver Dorothea cozinhar, mas nada além disso. O que quer que fosse a planta que faltava, eu duvidava de que fosse usada como tempero. Na verdade, pelo nome, eu já tinha quase certeza de que era venenosa. Sanseviéria, era o nome que Tâmi tinha dado praquilo.

Com esse nome estranho, eu ia precisar da ajuda de alguém que soubesse muito sobre plantas. Nós tínhamos uma herbolária na ilha, Cloé, uma das mulheres mais velhas daqui – mais velha que Dorothea. Ela tinha aprendido sobre as plantas com sua mãe, que tinha aprendido com sua avó, que tinha atravessado o mar junto com os ancestrais e trazido seu conhecimento do continente, assim como várias plantas. Por isso, havia mudas, folhas e sementes que só Cloé possuía, de várias plantas que não cresciam na ilha. Além disso, sua avó tinha aprendido aos poucos sobre as plantas locais, e repassado suas descobertas para a família. Agora, Cloé era a dona de todo esse conhecimento, e tentava repassá-lo para a neta aos gritos. Eu sabia, tinha visto a menina, da mesma idade que eu, nas vezes que visitara a casa de Cloé. Dorothea tinha pedido, muitos anos antes, que a velha rabugenta tentasse concertar minhas memórias com suas plantas e rituais. Hoje eu entendia a ironia disso tudo: o que quer que Byakko tivesse feito com as minhas memórias, provavelmente não podia ser desfeito por mãos humanas. Não usando ervas e extratos de planta de gosto horrível, pelo menos.

Trinquei os dentes e chutei o baú ao lado da minha cama, com raiva. O que quer que ele tivesse feito, eu nunca ia conseguir desfazer sozinha... Eu não duvidava de que ele tivesse usado a magia dos Espíritos para mexer na minha cabeça. E eu não duvidava de que Byakko fosse poderoso o suficiente para fazer algo que não poderia ser desfeito por outro Espírito qualquer...

Ai...

Senti meus dedos latejarem depois do impacto e me sentei na cama, suspirando. Não adiantava, eu não ia esquecer... Não ia conseguir ignorar isso nunca. Byakko tinha deixado um buraco na minha cabeça ao roubar as minhas memórias, e se esforçado para preencher esse vazio pelos últimos três anos... Não importava para onde eu olhava, no mundo exterior ou na minha própria mente: ele estava sempre em algum lugar.

Empurrei o baú pesado para o outro lado do quarto, tirando-o de cima da tábua solta do assoalho, e fiquei encarando o chão. Eu precisava da ajuda de Cloé para conseguir tudo o que precisava para afastar Isméria da minha casa, de Dorothea e dos meus amigos. E, para isso, eu precisava de algo para trocar. A única coisa de valor que eu tinha era a pérola que Ed tinha me dado de aniversário, e eu a tinha guardado lá em baixo, junto com todas as coisas sobre Byakko que eu tinha enterrado. Claro que eu não tinha pensado muito a respeito na hora. O assoalho era onde eu guardava meus tesouros antes do solstício, mas, naquela noite, eu só tinha visto um buraco onde pudesse jogar no escuro tudo o que me lembrava Byakko. E, agora, aqui estava eu, precisando abrir essa tábua pra pegar a pérola, mas sem querer ver tudo aquilo que eu estava tentando ignorar.

Grunhi, tentando desatar o nó na minha garganta. Depois, me sentei no chão e me inclinei para enfiar meus dedos pelo buraco na lateral da tábua solta e puxá-la. Não estava tão escuro lá em baixo quanto eu gostaria, porque era dia e a luz passava pelas frestas entre as pedras que faziam a fundação da casa. Vi aquele monte de papel jogado lá no fundo, mas não conseguia ler nada. Pelo menos isso... Enfiei o braço no buraco sem olhar demais, e tateei até encontrar a caixinha onde tinha guardado a pérola que Ed tinha me dado. Pronto. Tinha sido rápido. Estava tudo bem. Só precisava trazer ela pra cima. Mas, na hora, de me levantar, eu me desequilibrei e meu braço apoiado no assoalho escorregou. Bati com a orelha no chão e gemi de dor, enquanto meu outro braço se contorcia no vazio abaixo da casa. Foi então que eu senti meus dedos fechados, segurando a caixinha, esbarrarem em alguma coisa. Uma superfície lisa, fria e polida que eu conhecia bem, de tanto segurá-la por baixo das minhas roupas...

Fechei os olhos na hora que reconheci o amuleto, com medo de ouvir de novo, na minha mente, os rugidos do solstício ou a voz de Byakko. Mas não aconteceu nada. A única coisa na minha cabeça era o som da minha própria respiração pesada. Minhas mãos ficaram frias. Eu não entendia mais como o amuleto funcionava: era pra eu chamar Byakko com ele, então no solstício fui eu quem ouviu ele, e agora eu não ouvia mais nada. Por que eu tinha ouvido ele somente no solstício? O amuleto estava quebrado, por acaso?

Não, isso não importava. Porque eu não ia voltar a usá-lo. Eu não precisava disso...

Comecei a sentir meu braço pendurado formigando, então o puxei de volta para cima e me levantei. Encarei a caixinha de madeira na minha mão e a sacudi. Ouvir a pérola batendo lá dentro me tranquilizou imediatamente. Isso. Faltava pouco pra terminar isso tudo. E então eu poderia voltar a dormir direito à noite... Esfreguei meus olhos, tentando afastar o cansaço. Enfiei a caixinha no meu bolso, fechei a porta do quarto quando saí e fui correndo para o centro da vila.

Geralmente, era lá que a maioria dos negócios eram feitos, na base da troca mesmo. Era o lugar certo para encontrar quem oferecia o que você precisava, quando precisava. Por isso, as trilhas costumavam estar sempre cheias de gente, seja passando ou negociando. Eu nem me lembrava de quantas vezes tinha vindo aqui com Dorothea, para trocar pão por peixe fresco com os pescadores, potes de barro por lâminas para limpar a carne com o ferreiro, e temperos por xarope com outras mulheres. E, se não havia ninguém procurando o que você tinha para trocar, era comum anunciar, à plenos pulmões, sua oferta. A casa de Cloé ficava lá, bem no meio da aglomeração, por ser uma das mais antigas da ilha. O que era ótimo para ela, considerando sua idade: Cloé não conseguia mais sair andando pra todo lado – apesar de conseguir gritar tanto quanto sempre – então as pessoas iam direto até sua janela para pedir o que queriam.

Mas, quando cheguei ao centro da vila, o lugar estava vazio e silencioso, exceto pelo barulho ritmado do ferreiro fazendo seu trabalho. As trilhas que passavam por lá estavam vazias, as janelas das casas estavam fechadas, o lugar parecia abandonado. Já haviam se passado quatro dias desde o solstício, não era pra vila estar assim, ainda... Ed e Alice até tinham conseguido sair de casa para me ajudar, dois dias atrás. Até a noite passada, as coisas pareciam estar se normalizando. Mas agora...?

A casa de Cloé ficava ao lado da do ferreiro, e também estava fechada. Eu nunca tinha visto suas janelas trancadas antes, nem mesmo durante a noite. Ela estava sempre preparada para atender uma emergência e alguém doente, então nunca fechava hora nenhuma. O que estava acontecendo com essa vila, afinal?

Bati três vezes na janela de Cloé, esperando que ela atendesse, mas ninguém respondeu. Bufei. Eu não tinha tempo pra esse drama todo do pessoal. Pelo amor dos Espíritos, eu não aguentava mais essa falação sobre o solstício e o medo de todos. Já estava passando da hora de todo mundo de recompor! Bati de novo na janela, dessa vez mais forte, só pra ter certeza de que Cloé tinha me ouvido dessa vez. Eu não duvidava de que a velhota estivesse começando a ficar surda com a idade. Isso explicaria porque ela grita tanto.

Cruzei os braços na altura do peito e esperei, ouvindo o martelo do ferreiro batendo no metal com força.

Tinha ficado tão chocada com a ausência de pessoas por aqui hoje, que nem tinha parado para pensar em que horas eram. Koch, o ferreiro, começava a trabalhar sempre depois do almoço, e continuava na frente de sua fornalha durante a noite, madrugada a dentro, tomando daquela bebida fermentada que só ele sabia fazer. Mas ainda era de manhã, bem cedo, e eu conseguia ouvi-lo trabalhar desde que tinha chegado. Estiquei o pescoço para espiar sua oficina, uma varanda abafada ao lado da casa de Cloé, e o encarei. Koch era um homem de meia idade com braços grossos e pernas finas, diferente dos pescadores, para os quais fazia anzóis de todos os tipos e tamanhos. Seu filho o ajudava na oficina enquanto aprendia a fazer o trabalho também, e estava ao seu lado, atiçando o fogo da fornalha. Koch estava trabalhando em algo enorme e pontudo, coisa que eu nunca tinha visto antes. Ele podia ser o ferreiro, mas sua matéria-prima vinha do continente, nos navios dos mercadores. E, justamente por isso, todo mundo sabia que ele nunca usava mais que o necessário para fazer o que quer que fosse. Certeza que faria anzóis e arpões ocos, se soubesse como. Arrancar uma faca um pouco maior das mãos dele era quase como tentar arrancar uma pérola de uma ostra; eu sabia, Dorothea já tinha tentado. Mas aquela era a maior faca que eu já tinha visto na vida, tinha o tamanho do meu antebraço, e ficava mais larga à cada martelada que Koch dava. Eu não sabia quem tinha encomendado aquilo, mas devia ter custado muitas pérolas. Adiantadas, ainda por cima.

— Preciso de mais calor, anda! Ou vou perder todo esse ferro! — Koch brigou com seu filho, Ceneu.

O garoto jogou mais madeira na fornalha e ventilou as chamas, que passaram do vermelho ao amarelo até ficarem quase brancas. Depois ele caiu para trás, sentado no chão, enxugando o suor que escorria em baldes de seu rosto.

— Pai, você tem certeza do que está fazendo? Nós nunca vendemos nada parecido antes...

Koch grunhiu, sem perder o ritmo de suas marteladas.

— Nunca pensei que gastaria quase todo meu metal fazendo armas... Ainda mais nessa ilha!

Ceneu levantou a cabeça para encarar o pai.

— Quem encomendou isso? E com tanta pressa?

Koch cuspiu no chão, tirando o gosto ruim da fumaça da boca, antes de responder:

— Essa aqui? — Ele martelou o ferro outra vez. — Essa é de Lemuel. Mas tenho mais um monte para terminar. Essa noite ainda, vê se pode! Eu, fazendo armas, logo cedo... Essa ilha está ficando maluca. Primeiro os barulhos no solstício, e ontem a noite de novo... Só pode ser mal agouro!

Ouvi um ruído ao meu lado e dei um pulo de susto. A porta da casa de Cloé rangeu e começou a se abrir. A neta dela, Vera, me encarou por trás da porta entreaberta. Ela tinha a mesma idade que eu, e a mesma altura, mas andava sempre muito encolhida, olhando para baixo, tinha a voz mansa e falava sempre baixo demais, quase sussurrando. Ao contrário de Cloé, uma velha baixinha, larga, que pisava forte no chão e gritava com todo mundo.

— Oi, Lorena. Desculpa... — Ela desviou o olhar. — Minha avó não quer ver ninguém hoje. Você precisa ir embora.

Sacudi a cabeça.

— Que?!

Vera começou a fechar a porta, mas eu me joguei para frente e a segurei com força.

— Não, não, não. Você não tá entendendo, eu preciso de uma planta!

Ela me encarou de volta, mas ficou calada.

— Eu tenho como pagar, juro. Só me consegue a planta e eu vou embora, Vera — Me encolhi, levantei as sobrancelhas e tentei sorrir, suplicando. — Por favor...?

— Por que está demorando tanto, Vera?! — Ouvi Cloé gritar de dentro da casa. — Mande saírem daqui logo! Já disse que não vamos nos envolver nessa loucura!

Vera se encolheu à cada grito da voz fanha de Cloé, um mais alto que o outro. Eu já tinha ouvido ela falando alto, mas desse jeito? A velha estava mesmo de mal humor...

— Pessoas se armando, tramando alguma coisa... Não! Nós não vamos participar dessa loucura! Se for Lemuel, diga que não vou nessa maldita reunião de jeito nenhum! Fazer venenos... Humpf. Que insulto!

Vera esperou a avó se cansar de falar para responder.

— Não é ele, vó. É Lorena. Ela quer falar com você. Disse que precisa de alguma coisa.

— Alguma coisa o quê? Desembucha!

Vera se virou para mim.

— Sanseviéria — cochichei para ela.

A neta levantou uma sobrancelha, como se não tivesse entendido o nome direito, mas se virou para dentro outra vez, para responder à avó:

— Ela disse que precisa de... Sanseviéria.

Ouvi algo dentro da casa cair com um baque seco, como o de madeira. Depois, ouvi os passos pesados de Cloé vindo na nossa direção. Ela empurrou Vera para o lado, abriu mais a porta e botou sua cabeça para fora.

— O que você quer com Espada-dos-Espíritos? — Cloé sussurrou.

Ah, então era essa a planta de nome estranho.

— E-eu...

Cloé apontou seu dedo pra minha cara.

— Olha aqui, garota, se foi Lemuel quem mandou você aqui para pedir isso, diga a ele que...

Levantei as mãos, como se me rendesse.

— Não, não, eu não vim por causa dele. Eu só preciso da planta. É pra mim mesmo.

A velha se inclinou na minha direção até que eu sentisse seu bafo de ervas secas. Engoli em seco e prendi a respiração discretamente.

— Precisa pra quê...?

— Pras minhas memórias... — menti, deixando o fôlego que me restava escapar.

Cloé recuou como se tivesse levado um tapa. Eu respirei, aliviada.

— Sua cabeça não tem concerto — ela guinchou. — Eu tentei de tudo!

É, eu ainda me lembrava do gosto e do cheiro de tudo o que ela tinha tentado...

— De onde você tirou essa ideia de que Espada-dos-Espíritos é a solução?

— Eu tive um sonho — menti outra vez, depois sorri, tentando não parecer tão óbvia. — Os Espíritos me contaram.

Bom, só um Espírito tinha me contado...

— Contaram no meu sonho — concluí.

Cloé me olhou de cima a baixo, me analisando. Tentei não deixar meu sorriso falso vacilar nem um minuto. Eu precisava dessa porcaria de planta...

— Tá certo — ela respondeu, finalmente. Depois, se virou para dentro, para a neta encolhida atrás dela. — Vera, pegue algumas folhas de Espada-dos-Espíritos pra mim, por favor. Você sabe onde fica.

Depois que Vera se enfiou dentro da casa e desapareceu de nossas vistas, Cloé voltou a se virar para mim. Ela estreitou os olhos para mim.

— Se eu descobrir que isso é coisa do Lemuel... — Ela chiou.

Sacudi a cabeça.

— Não, não, eu juro...

Ela bufou.

— Já falei pra ele que não vamos nos envolver nessa cruzada maluca...

Abri a boca para perguntar o que Lemuel estava aprontando de tão terrível, mas vi Vera voltando na hora com a planta na mão. Não, Cloé era mal-humorada e ranzinza. A última coisa de que eu precisava era fazer alguma pergunta impertinente para ela, e Cloé decidir que não ia me dar planta nenhuma, porque sim. Ou melhor, porque não. Ah!

Vera me estendeu as folhas em sua mão, mas sua avó a segurou pelo braço. Cloé me encarou com as sobrancelhas levantadas e pigarreou.

— E o que você vai me dar em troca?

Ah, é.

Meti a mão no bolso e tirei a caixinha de madeira lá de dentro. A velha encarou a caixinha com a cara amarrada, sem acreditar que algo tão pequeno pudesse valer seu tempo. Então, eu a abri. E os olhos de Cloé brilharam na mesma hora. Ela estendeu seus dedos gorduchos para a pérola e eu fechei a tampa na hora, com um estalo.

Foi a minha vez de pigarrear.

Cloé franziu as sobrancelhas, bufou e corou.

— Bah, entregue pra ela, Vera! — Gritou, voltando ao seu eu de sempre. Ela se virou e entrou de novo na casa, me deixando sozinha com a neta outra vez. — E não se esqueça de pegar o pagamento!

Vera suspirou, soltando os braços e os ombros. Parecia bem menos tensa agora que Cloé tinha ido embora. Ela estendeu as folhas chatas, duras e pontudas para mim, cortadas em diagonal na base, ainda cheirando a seiva. Todos os pedaços tinham o comprimento de um dedo, e metade disso na largura, que era exatamente a medida da caixa, onde a pérola ficava rolando e batendo nas paredes.

— Toma.

Eu tirei a pérola da caixa e acenei pra ela colocar as folhas lá dentro. Ela o fez, e depois entreguei a pérola em suas mãos.

— Obrigada — agradeci.

Ela deu de ombros.

— Desculpa... Qualquer coisa.

— Nah, tudo bem. Ela continua azeda, e daí?

Vera riu.

Enfiei a caixa com Sanseviéria no bolso.

— Agora, eu preciso mesmo ir...

Ela assentiu e, de repente, seu riso sumiu.

— Se for voltar pra casa, evite a clareira, tá bom?

Levantei uma sobrancelha.

— Por quê?

— Lemuel estava juntando umas pessoas lá. Pelo que minha avó disse, boa coisa não é...

— Vera, por que está demorando tanto?! — Cloé voltou a gritar de dentro da casa, fazendo sua neta se encolher.

— T-tchau — gaguejou antes de fechar a porta na minha cara.

Suspirei. Isso não importava. Só importava que eu finalmente tinha tudo o que Tâmi tinha listado, e eu estava com pressa para terminar tudo. Vera tinha acabado de me avisar para evitar a clareira, que era o caminho mais curto até a casa de Dorothea, mas eu estava com pressa. O que de mais poderia estar acontecendo lá de tão errado, né? Além do mais, eu queria saber o que estava acontecendo de tão séria para deixar o humor de Cloé ainda pior. Parecia algo importante.

É, eu ia passar pela clareira de qualquer jeito.

Quando cheguei perto da clareira, comecei a ouvir vozes. Não uma ou duas, mas um burburinho alto, desordenado, como nas noites de festival. E, se estava parecendo os festivais, era porque pelo menos metade da vila estava lá, discutindo alguma coisa. Eu nunca tinha visto tanta gente junta na clareira antes, num dia que não fosse solstício, nascimento ou velório de alguém. Considerando que não tinha nenhuma mulher prestes a dar à luz na ilha, fiz uma lista mental das pessoas mais velhas e com maior chance de morrer. Desisti dela quando coloquei Cloé em primeiro lugar e lembrei que a velhota estava gritando tão alto como sempre, e eu tinha acabado de vê-la.

Eu achava que sabia o responsável por isso, afinal, Vera tinha me alertado sobre a clareira – e sobre Lemuel. Mesmo assim, eu não tinha ideia de como ele conseguira reunir tanta gente assim lá, e nem do porquê. Só sabia que a irritação de Cloé com isso tudo só tinha me deixado mais curiosa ainda para saber o que estava acontecendo.

Segui na trilha até emergir na clareira. Ou quase. O lugar estava cheio, e todo mundo lá estava colado no anel de árvores, buscando um lugar na sombra para ficar. Assim, ao invés de sair das árvores para o descampado, eu dei de cara com uma parede densa de gente, todos cochichando entre si sobre alguma coisa. Exceto por uma pessoa, à frente do semicírculo de pessoas. Forcei minha passagem, tendo que me abaixar para passar entre as pessoas, até chegar na frente, e me deparar com um homem de trinta e poucos anos, grande, mas de cabeça quadrada e pequena, bem no centro da aglomeração. Era Lemuel, com certeza, assim como Vera tinha me avisado. Levantei a cabeça e me ajeitei. O que, raios, estava acontecendo?

— Vocês não acreditam em mim? — Lemuel falou para toda a multidão, que se calou. Ele passou os olhos por todos, enquanto respirava fundo. — Quem mais ouviu os ruídos ontem à noite, de novo?!

Olhei ao redor. Várias pessoas levantaram a mão, devagar, olhando para aqueles ao seu lado que também tinham se manifestado. Olhando rapidamente, todos eles moravam perto da clareira, do centro da vila, e da Praia Velha... Ouviram ruídos, de novo.

Oh, não... Byakko.

Ele balançou a cabeça.

— Foi a mesma coisa que todos ouvimos no solstício? — Ele perguntou aos que levantaram à mão. Eles olharam de uns pros outros e relutaram por um momento, mas finalmente assentiram.

— Foi... parecido — Ouvi alguém perto de mim sussurrar.

— E parecia humano? — Lemuel perguntou.

Todos balançaram suas cabeças.

— Então parecia ser o quê?

— Parecia um monstro! — Alguém na multidão, com uma voz familiar, gritou.

Segui a direção do som e das cabeças se virando, e encontrei o pai de Alice na outra ponta do semicírculo, com Alice segurando em seu braço. O que quer que tivesse acontecido ontem, ela tinha ouvido, eu tinha certeza. Ela morava perto o suficiente para isso. E minha amiga estava com o mesmo olhar assustado de antes de passar a noite comigo, dias atrás...

Vi, ao redor, a maioria das pessoas concordarem, com um aceno de cabeça. Quem quer que tivesse espalhado esse boato de haver um monstro na praia e no templo, tinha feito direito...

Não, não, não... Vocês estão enganados!, sacudi a cabeça, em silêncio.

— Então acho que todos concordam comigo de que existe alguma coisa perigosa na nossa ilha, e que precisamos fazer alguma coisa a respeito — Lemuel continuou.

— E o que você acha que a gente devia fazer? — Alguém na multidão perguntou.

Lemuel se virou para a pessoa no centro do semicírculo e estreitou os olhos.

— Eu sei o que eu não vou fazer. Não vou ficar sentado esperando algo pior acontecer. Ou aquela coisa pegar um dos meus filhos...

As pessoas ao redor assentiram e cochicharam entre si.

Lemuel continuou:

— Nós precisamos ir até o templo onde esse monstro de esconde, e atacar primeiro!

Não!

Empurrei as pessoas que tinham me rodeado aos poucos, distribuindo cotoveladas, e dei um passo para fora da multidão, quase caindo no chão. De repente, todos me encararam. Engoli em seco e soltei o ar de dentro de mim. Essa não era a hora pra desistir de falar...

— Vocês enlouqueceram?! — Gritei, na frente de todos. — Vocês querem invadir o templo de um Espírito? O lugar é sagrado! O que vocês acham que o Espírito fará se desrespeitarmos a casa em que ele vive? Querem mesmo ser amaldiçoados de verdade?

Eu podia estar com raiva de Byakko. Pelos Espíritos, como eu estava chateada com ele e com o que ele tinha feito... Tinha passado os últimos dias me virando sozinha, fingindo que ele não existia, tentando esquecê-lo – e falhando miseravelmente. Mas não significava que queria aquelas pessoas malucas e assustadas invadindo sua casa. Ou, pior, atacando-o. Ele preferiria aceitar a culpa para si e abaixar a cabeça, a revidar e ferir alguém. A ironia era eu estar defendendo o lugar com os mesmos argumentos que Alice tinha usado pra me fazer devolver o amuleto que eu tinha roubado. O amuleto que tinha me feito conhecer ele...

Um grande burburinho começou. Eu tinha certeza de que Lemuel não tinha exposto essa possibilidade antes. Um Espírito Não tão compreensivo com certeza revidaria essa invasão ao seu espaço de maneira violenta ou mesmo cruel. Templos eram sagrados, afinal de contas, e as pessoas precisavam se lembrar disso. Byakko nunca faria isso, nunca machucaria ninguém, mas eles não poderiam adivinhar. Só eu sabia disso... Ninguém seria amaldiçoado de verdade, mas eu precisava que eles acreditassem nisso. Pelo menos para manter todo mundo afastado.

Lemuel torceu os lábios e chiou:

— Que Espírito? — Ele encheu o peito para continuar retrucando e se virou para a multidão como se eu nem existisse — Quando nossos tataravôs chegaram aqui, não tinha ninguém aqui, nem nada além de ruínas naquela praia. Que Espírito insistiria em viver numa ilha deserta, sem humanos o cultuando? Esse tal Espírito já deve ter ido embora há muito tempo, igual a muitos outros que já abandonaram esse mundo. O que quer que esteja vivendo naquele templo, não é um Espírito...

Os cochichos cresceram, todos, de repente, concordando enfaticamente com Lemuel.

Mordi minha boca por dentro. Como ele estava errado...

— É isso que você pensa dos Espíritos? Que só estão interessados na nossa adoração?

Lemuel olhou pra mim de canto de olho, depois se virou na minha direção. Ele abaixou as mãos que tinha usado pra gesticular enquanto falava com todo mundo e me encarou de cima abaixo.

— É exatamente o que eu faria se tivesse o poder dos Espíritos. — Ele respondeu.

Não me segurei e cuspi no chão aos pés dele. Sua cabecinha ficou vermelha de raiva e o vi cerrar os punhos.

— Você me dá nojo! — Completei.

Eu sabia que Lemuel era um cara ignorante que não ia deixar barato, mas não consegui me segurar. Quem ele pensava que era? E o que pensava que sabia sobre os Espíritos?! Eu sabia que ele ia avançar em mim por isso, mas não podia ficar calada.

Então, ele deu uma passada larga na minha direção, mas parou a poucos centímetros de mim. Pisquei, sem saber porque ele tinha parado.  Foi quando senti uma mão pousar no meu ombro e me virei para ver quem era. Dorothea estava atrás de mim, encarando Lemuel com um olhar feroz. De onde na multidão ela tinha saído, eu não sabia.

— O que vai fazer, Lemuel? Bater numa menina ou bater numa velha? — Ela desafiou, encarando o homem com as sobrancelhas erguidas.

Lemuel chiou, olhando ao redor, para o grupo reunido para ouvi-lo e que tinha parado pra acompanhar a cena. Bater na gente não despertaria a simpatia de ninguém, nem mesmo daquelas pessoas que tinham parado para ouví-lo. Então, ele pôs o rabo entre as pernas e nos deu as costas, voltando a propagar seu discurso de ódio para aqueles que estavam interessados. Não, assustados, eu diria... Me virei para Alice e encontrei seu olhar assustado me encarando de volta.

A mão de Dorothea desceu do meu ombro e me puxou pelo braço, me forçando a olhar para ela.

— Vamos embora daqui — ela disse.

Dorothea encarou as pessoas no nosso caminho até que elas abrissem um espaço para passarmos, resmungando. Depois, ela me puxou para fora da multidão. Ao redor, as pessoas continuavam assentindo para tudo o que aquele homem dizia, como se estivessem hipnotizadas. Trinquei os dentes.

— Mas...

Dorothea me encarou com aquele olhar de “sem mas” que toda mãe tinha.

— Vamos.

Depois de nos afastarmos um pouco, subindo a trilha de volta para casa, ela continuou:

— Sinto muito, querida, mas não há nada que você possa fazer.... Estão todos loucos. E não quero você envolvida nisso. Eles não têm ideia do que estão fazendo, mas vão aprender a não brincar com a Morte...

Parei de repente, surpresa com as palavras que ela usara. Talvez fosse só uma coincidência, coisa da minha cabeça, mas não pude deixar de perguntar:

— O que quer dizer com isso?

Ela parou, olhou para trás e me encarou de volta.

— Dizer com o quê?

Engoli em seco. Devia ter sido coisa da minha cabeça. Estava tão preocupada com Byakko que estava até delirando, pensando que ouvia sobre ele em toda conversa por aí... Ela provavelmente não tinha usado “Morte”, com “m” maiúsculo... Não mesmo. Sacudi a cabeça.

— Não, não é nada...


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