Solitude escrita por Lillac


Capítulo 4
Percy e as latas de ervilhas.


Notas iniciais do capítulo

Para começo de conversa, eu não cozinho, então eu não faço ideia se realmente vendem ervilhas em lata, hushasa. Se algum de vocês souber, por favor não seja muito crítico com a minha clara total ignorância com o mundo culinário XD.
Quanto ao capítulo: o que é uma história sem um pouquinho de mistério, não é mesmo?
E, no que não é mais novidade para ninguém: Annabeth Chase rouba a cena mais uma vez.



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Para seu mérito, Percy não foi o único pego de surpresa. À bem da verdade, todos, com exceção de Reyna, pareciam aturdidos. Clarisse La Rue havia estudado com eles, em certo ponto. Mas então, Percy era apenas um pirralho do fundamental — um dos vários que detestava a grandalhona do time de basquete que ser divertia puxando o cabelo das garotas mais novas (e a irritante barbicha da qual Grover nunca conseguia livrar-se por completo).

Percy lembrava-se dela, com o sorriso de dentes tortos e olhar cruel, risada espalhafatosa e socos fortes em mesas do refeitório, e não conseguia associar aquelas memórias com a voz séria e grave que saia das caixinhas de som.

Mais do que isso, não conseguia entender como Frank — o adorável, tímido e sempre gentil, Frank Zhang — parecia de algum modo conhece-la.

Onde você está? Com quem você está? Você está bem? Está ferido?

— Eu estou bem. — Frank respondeu primeiro, parecendo achar aquela pergunta a mais urgente, e Percy pensou ouvir um suspiro aliviado do outro lado da linha, embora fosse difícil dizer com certeza. — Estou no auditório da escola, no terceiro andar. Alguns amigos e outros alunos estão aqui também.

Percy estaria mentindo se dissesse que não estava impressionado com a súbita seriedade Frank. Nunca ouvira o garoto falando com tanta firmeza assim antes, e não esperava aquilo também (principalmente, não do garoto que gaguejava seus poemas nas apresentações culturais).

Quantos?

— Cerca de cinquenta — informou.

Clarisse ficou em silêncio. Percy soube exatamente o porquê. A escola tinha quase dois mil alunos. Aquela redução assombrosa no número era com certeza o suficiente para assustar até uma mulher como Clarisse. Vendo que precisava continuar, Frank emendou:

— Temos feridos e pessoas incapazes de se locomover muito, também. Mas a maioria de nós está bem. Mas...

Mas?

— Nosso estoque de comida acabou. Percy e os outros acham que o resto da comida da escola está estragada, e, mesmo se não estivesse, não podemos mais sair lá fora.

Clarisse ficou em silêncio do outro lado da linha. Por um momento, Percy temeu que ela fosse simplesmente decidir que não valia o esforço e manda-los ao inferno, mas então ela respondeu:

Tentei acessar o sistema de câmeras externas da escola pelo satélite, mas parece que estão todas fora de funcionamento. Sem uma visão de fora, não posso ter certeza de como abordar a situação.

Frank ficou em silêncio, então Reyna se inclinou e perguntou:

— O que você quer que a gente faça?

Reyna? Céus, eu fico feliz que você está aí também — Clarisse deu uma risada nervosa. — Na verdade, não é muito. Preciso que alguém vá até uma janela e veja como está a situação do outro lado dos portões. Dependendo da quantidade de mortos-vivos, eu vou estabelecer uma força tarefa.

Antes mesmo que ela terminasse a frase, Jason já havia corrido para fora. Eles só precisaram aguardar alguns segundos até que ele retornasse, afobado:

— Algumas dezenas — disse — pelo menos, no portão oeste. Eu vi alguns outros perambulando pela praça do outro lado da rua, mas não são mais que uma dúzia.

Eu poderia trabalhar com um pouco mais de informações, mas não quero que vocês saiam de onde estão para checar os outros portões, entendido? — Clarisse respondeu. — Sabem me dizer quantos de vocês exatamente não conseguem andar?

— Rachel, Póllux e Gwen — Percy contou — três.

Três — Clarisse repetiu — não é tão ruim. Tudo bem, agora eu quero que vocês escutem muito atentamente. 

Como que puxados por um fio invisível, todos os adolescentes se inclinaram na direção de onde vinha a voz.

Esses desgraçados não conseguem ver bem durante a noite, o que nos dá uma vantagem. Antes do pôr-do-sol, eu preciso que todos vocês já estejam com tudo empacotado e prontos para partir. Eu e os outros soldados vamos chegar um pouco depois, mas não vamos ter tempo para imprevistos. Se eu ainda me lembro bem, essas drogas de portas precisam de duas pessoas para serem abertas manualmente, então certifiquem-se de que sejam duas que consigam alcançar o resto de vocês quando todo mundo já tiver passado — ela instruiu — nós vamos chegar, subir o prédio, tirar vocês daí, e pronto. Sem desvios e sem atrasados, entendido? — Sem precisar que ninguém respondesse, ela concluiu: — Não preciso dizer que alguém precisa ficar com esse rádio em todos os momentos, certo? Se é a nossa única forma de comunicação, tomem todo o cuidado com ele.

— Eu acho que você gostaria de saber que, ao menos até quatro dias atrás, a maior concentração de mortos-vivos era no setor leste — Nico informou.

Droga — Clarisse resmungou — é a escada com o acesso mais rápido ao auditório. Mas tudo bem, eu vou pensar em algo. Preciso ir agora para organizar a tropa e os veículos. Me digam se qualquer coisa acontecer, certo? — Ela deu uma pausa, mas por fim, acrescentou: — Fico feliz que esteja bem, Frank.

A ligação foi cortada, e ninguém soube bem o que dizer. Cabisbaixo, Frank devolveu o microfone à Leo, que, mesmo em toda a sua distração e falta de tato, havia notado que alguma coisa estava estranha ali.

— Clarisse é minha meia-irmã — Frank admitiu, com um suspiro —, mas nós nunca nos demos bem. Ela sempre me chamou de bastardo e dizia que Ares nunca ia me ver como um filho legítimo.

Percy achou que meio que entendia a hesitação dele. Era Clarisse. Embora Frank não tivesse nada a ver com ela, podia pensar em pelo menos meia dúzia de outros estudantes que não pestanejariam antes de despejar nele toda a frustração acumulada que sentiam pela ex-veterana.

Piper tentou ajudar:

— O fim do mundo faz coisas com as pessoas, né? Até a Drew parou de pegar no pé esses dias.

Frank conseguiu esboçar um sinal de um sorriso.

— Ela só está com medo de te perder — Jason garantiu. — Mas não precisa, porque ela não vai.

Ele bagunçou o pouco o cabelo do outro garoto, e Percy se permitiu sorrir. Mas uma sensação incômoda dentro de si lhe disse que talvez fosse melhor de Jason não saísse fazendo promessas assim por aí. Eles não haviam sido capazes de proteger Ethan. Ou treinador Hedge.

Ou Grover.

Percy não queria ter mais nenhuma outra promessa quebrada pairando sobre a sua cabeça.

— Bem, o que estamos esperando? — Leo resolveu mudar de assunto — Vamos espalhar as notícias boas. Eu aposto que aquela galera lá fora poderia usar um pouco de otimismo agora.

Os outros adolescentes riram, e Piper foi a primeira a falar:

— Rachel e eu vamos avisar os outros. Quanto antes começarmos, melhor. Não falta muito para anoitecer.

Ela ajudou a ruiva a descer da mesa, e elas deixaram a sala de som juntas.

— Hazel e eu podemos ajudar Will a fazer alguns últimos curativos. Sabe, garantir que todos estejam bem o suficiente para conseguirem andar? — Nico sugeriu.

— Ótimo — Jason concordou —, então eu posso ir com a Reyna checar o estado da barricada e preparar alguma coisa que possa derrubá-la rapidamente quando os soldados chegarem, para não atrapalhar.

Quando os dois também saíram da sala, Leo, Annabeth e Percy trocaram um olhar cauteloso. Como se alguém o houvesse cutucado nas costelas, Leo saltou de sua cadeira e gesticulou com a mão que ainda segurava o rádio.

— Eu vou, hã... checar o sinal do rádio nas outras partes do auditório, para, hm... garantir... é.

E, antes que a sua frase pudesse ao menos fazer sentido, ele já havia saído também. Repentinamente sozinhos, Percy estalou a língua, sem saber o que dizer (e ainda bastante consciente do fato de que suas mãos estavam grudadas).

— Então suponho que sejamos eu, você, e esse estoque de comida, hã? — Annabeth riu.

— É.

Eles se agacharam, e começaram a trabalhar, dividindo a comida em porções iguais, que cada um dos sobreviventes pudesse carregar sem ser sobrecarregado. Um silêncio estalou-se entre eles, mas Percy notou, pelo canto do olho, o quão absorvida Annabeth estava em uma tarefa tão simples. Era nítido que ela estava tentando tirar sua mente do acontecimento. Ele não a culpava.

Mas uma parte de seu cérebro o advertiu: se Annabeth Chase, que era, bem, ela, não estava conseguindo lidar com aquilo, como os outros conseguiriam? Seria um fardo grande demais para ser carregado?

Não. Não ia pensar assim. Clarisse e seus soldados estavam a caminho. Depois daquela noite, ninguém mais precisava morrer.

Ou melhor, ninguém mais precisava matar.

— Eu estive pensando — ele tentou puxar assunto —, qual a primeira coisa que você quer fazer quando saímos daqui?

Annabeth parou o que estava fazendo para olhá-lo:

— Eu estou ouvindo o que eu acho que estou ouvindo?

— Eu não sei — ele sorriu —, o que você está ouvindo?

— O grande e popular Percy Jackson me chamando para um encontro? — Annabeth soltou uma risadinha vitoriosa — Quem diria. Tudo o que você precisa é um fim do mundo para fazer um garoto te notar.

— EI! — Ele riu. — Primeiro: eu não sou popular. Segundo: Quem falou em encontro? E terceiro: o que você quer dizer com “notar”?

Era difícil dizer, mas ele achou que Annabeth ficou um pouco envergonhada. Voltando o olhar rapidamente para as latas de conserva, ela respondeu:

— Tudo o que eu quero é um banho. Longo.

Justo, Percy pensou.

— É, eu acho que eu também — disse. E, sentindo-se um pouco mais corajoso do que o comum, acrescentou: — Mas não se preocupa, sabidinha, mesmo parecendo que foi atropelada por um caminhão de lixo, você até que é bonitinha.

— Ah, é? — Annabeth empurrou o ombro dele com uma mão — eu não posso dizer o mesmo de você.

Eles ficaram em silêncio por um momento, apenas olhando um para o outro, e Percy sentiu alguma coisa no estômago que definitivamente não era fome — mas ele não era brega o suficiente para dizer “borboletas”. Não estava mentindo. Annabeth era bonita. Vestida à moda apocalíptica ou não.

Ele limpou a garganta:

— Ao menos, seria bom trocar essas roupas sujas de san...

Ele quase mordeu a própria língua. Deuses, como podia ser tão estúpido? Annabeth havia acabado de esmagar a cabeça de Ethan em uma poça. Sangue deveria ser a última palavra que ela queria ouvir.

Quando ela arregalou os olhos, Percy teve certeza que ia começar a tremer de novo. Ao invés disso, ela inclinou-se, até estar com o nariz quase encostado no dele, e exclamou:

— Sangue! É isso!

—... isso?

— Travis disse que ninguém viu Ethan saindo daqui, não foi?

— Certo, mas...

— Então não tem nada que comprove que ele saiu!

— Ouviram ele batendo na porta — Percy a lembrou. — E, a mordida...

— Travis disse que ele bateu na porta, sim — Annabeth franziu o cenho, cérebro trabalhando à mil — mas nós dois sabemos que só uma pessoa não consegue abri-la. Então mesmo se ele houvesse saído, precisaria de outra pessoa para abrir a porta.

— Ok, faz sentido. Mas quem?

— Eu não sei. Travis disse que ninguém viu ele saindo, então só pode ter sido à noite, quando só você, eu, e os outros estamos acordados. Leo ficou aqui, comigo, então não pode ter sido ele. Bem, não teria sido ele de qualquer modo, mas estou sendo assertiva.

É, Percy duvidava que o garoto que passara três dias consertando uma barricada e mais dois mexendo com ondas sonoras de um rádio da década de 70 estivesse interessado em ajudar os mortos-vivos a colocarem todo o seu trabalho em risco.

— Não tinha ninguém mais acordado? — Percy tentou ajuda-la.

Annabeth gesticulou com uma mão.

— Reyna, Jason, Piper... nossos amigos — ela concluiu —, mas, honestamente, se não podemos confiar neles, então não podemos esperar dar mais nenhum passo.

— Certo — ele concordou — nenhum deles então.

— Nenhum deles.

— Então... — ele coçou a parte de trás da cabeça. — Alguém que estava acordado na hora, e que não seja de inteira confiança. Quem você acha que pode ser?

— Não tenho ideia — admitiu —, mas precisamos descobrir antes de Clarisse chegar. É perigoso demais levar alguém assim com a gente.

— Eu concordo. Mas ainda não entendi onde a parte do “sangue” entra nesse seu raciocínio.

Annabeth olhou para as próprias mãos por um momento, parecendo hesitante.

— Você vai achar que eu estou louca.

— Não vai mudar muita coisa — riu.

— Você é impossível — ela suspirou. E, em uma voz mais baixa e cautelosa, sussurrou: — eu não acho que Ethan foi mordido na noite passada.

Percy franziu o cenho.

— Mas ele chegou aqui no segundo dia — lembrou. — Você está dizendo que...

— Que ele foi mordido antes de entrar aqui, sim — ela o interrompeu — estou dizendo que acho que qualquer um nesse auditório pode ter sido mordido antes de entrar aqui, e apenas não ter dito.

Percy sentiu um calafrio percorrendo sua espinha.

— Então nós precisamos... —

— Não podemos fazer nada. Causaria pânico. E essa é a última coisa que precisamos, com uma possível chance de salvação chegando em poucas horas.

— E o que nós fazemos, então? — Percy sentia-se frustrado. — Esperamos?

— Não. — Annabeth pôs-se de pé de repente. — Nós estudamos.

Estudamos? É O QUE?

— Eu preciso falar com a Rachel — disse, como se houvesse tido uma epifania, e todas as respostas estivessem na ponta de sua língua.

Ela se preparou para ir, mas antes, olhou-o por um instante.

— Você pode terminar isso?

— Posso, mas...

Percy titubeou, palavras ficando presas na garganta quando ela se inclinou e deixou um beijo rápido, mas carinhoso, na sua bochecha.

No segundo seguinte, ela havia desaparecido pela porta. Percy foi deixado sozinho, com seus pontos de interrogação e latas de ervilhas em conserva.

Ele nem gostava de ervilhas.

[...]

Quando terminou de organizar as porções, Percy levantou-se, esticando as pernas e estalando as costas. Quase ao mesmo tempo, ouviu um burburinho do lado de fora. Saiu, temendo pela pior das hipóteses, mas deu de cara apenas com um grupo de estudantes tentando destravar a fechadura emperrada.

— Algum problema? — Perguntou quando se aproximou o suficiente.

— Todos! — Uma garota respondeu, suando frio.

Enquanto os outros adolescentes gemiam com o esforço de desemperrar a porta, Percy aguardou que a garota continuasse.

Talvez houvesse sido melhor não ter esperado.

— A porta emperrou, e Jason e Reyna ainda estão lá fora!


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Notas finais do capítulo

Curiosidade: quando eu primeiramente escrevi esse capítulo, eu tinha colocado "milho em conserva", ao invés de ervilhas. E aí eu lembrei que nos livros, o Percy sente gosto de pipoca quando come ambrosia. E fiquei "WTF" por uns dois minutos.
Enfim, espero que tenham gostado, comentários são sempre apreciados! Até a próxima.



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