Solitude escrita por Lillac


Capítulo 2
Estática


Notas iniciais do capítulo

Eu amo o Leo, obrigada pela atenção.
Espero que gostem!



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Percy abriu os olhos cansados quando a luz do sol penetrou o cômodo. Estava recostado contra a parede oposta às enormes janelas. O vidro coberto de um material plástico escuro dava à luz uma aparência fosca e provia muito pouca iluminação. De toda forma, não fazia muita diferença para ele, que não estivera mesmo dormindo.

O cansaço lentamente transformava-se em exaustão, ele percebeu. Toda a extensão de suas costas estava dolorida, e ele mal conseguia mover o tronco. Os ombros, sobrecarregados, estavam agora a todo momento abaixados. A falta de sono começara a confundir os seus sentidos. Não demoraria muito para que se tornasse completamente inútil, acordado ou não.

Balançou a cabeça, afastando esses pensamentos. Quando tentou respirar fundo, porém, notou que durante a noite havia provavelmente adquirido um resfriado. Grunhindo em frustração, levou um punho coberto pela manga esfarrapada do moletom azul e fungou. Aos poucos, os outros também começaram a acordar.

Quase que imediatamente, enquanto o ambiente era preenchido por resmungos cansados e tosses sôfregas, Rachel aproximou-se. Percy notou, com pesar, que pouco havia dado atenção à melhor amiga nos últimos dois dias, ocupado demais com assuntos mais urgentes. Mas a ruiva não parecia magoada. Ao invés disso, deslizou as costas pela parede até estar sentada ao lado dele, um sorriso quase imperceptível em seus lábios finos e rachados.

O jeans denim azul-claro que houvera outrora sido impecável estava coberto de manchas marrons. Percy reconhecia aquele aspecto: sangue seco. A regata cor de vinho puída e a pele branca salpicada de sardas agora avermelhada e oleosa. Era estranho pensar em Rachel — sempre tão colorida e alegre — naquele cenário cinza e vermelho, mas essa era a realidade agora. Nos primeiros dias, Rachel se aproximava ao nascer do sol com uma garrafinha de água pela metade ou alguma bolacha sem gosto, mas daquela vez não havia nada.

Não havia mais nada para eles.

— Você não conseguiu dormir — ela não perguntou.

— Não — ele não se importou em mentir, franzindo as sobrancelhas — eu fiquei pensando...

— No Grover — ela completou, cuidadosamente.

Seus enormes olhos verdes procuraram por algum indício no rosto de amigo de desconforto ou raiva, mas Percy apenas acenou, cansado demais para completar qualquer pensamento. Rachel assentiu, vagarosamente. Ela compreendia.

Percy sabia, no fundo, que ela mais do que compreendia.

Rachel se culpava.

[...]

No primeiro dia, Percy estivera com Grover e Rachel, matando aula no gramado. Grover havia comprado um gorro novo, com aparelho bluetooth, e estava mostrando para eles como precisavam fazer para ouvir música na aula sem serem pegos, e Rachel, distraidamente, rabiscava em seu caderninho. Enquanto Percy selecionava uma música da playlist do amigo, Annabeth, acompanhada de seus dois minions havia surgido, carregando enormes caixas de papelão.

 — Está oficialmente se mudando para cá, sabidinha? — Percy provocara, subindo uma sobrancelha. — Certeza que o sr. Brunner nem vai notar a diferença.

A garota, no entanto, não pareceu entretida naquele dia. O que era estranho, pois ela sempre tinha uma resposta na ponta da língua. Luke, um pouco atrás, rolou os olhos. Nem Thalia pareceu achar o comentário divertido.

— Não, Perseu — Annabeth retrucou, ajeitando um pouco melhor a caixa que carregava nos braços e já se afastando — a nossa turma está toda na sala, ajudando com o cenário da feira cultural, que, caso vocês tenham esquecido, é daqui há dois dias. Mas eu não posso dizer que estou exatamente surpresa com o fato de vocês estarem aqui, e não nos ajudando.

Ela continuou andando, Luke e Thalia logo atrás, e Percy fez uma careta, mimicando a voz da loira em um tom ao menos dois oitavos mais alto e fino. Rachel e Grover riram, enquanto Percy retirava o gorro e passava uma mão pelo cabelo amassado.

— Mesmo assim — Grover comentou, pegando o gorro que o amigo o estendia — nós deveríamos ajudar.

Percy suspirou, mas concordava. Estendeu uma mão para Rachel, que se segurou nele para se levantar, enquanto Grover apanhava as muletas dela. No verão passado, Rachel e os pais haviam se envolvido em um acidente de helicóptero — o que poderia até ter sido fruto para as provocações dos dois rapazes, se o acidente não houvesse culminado em um pedaço de metal transpassado na lombar da garota, que comprometeu para o resto da vida sua coluna vertebral.

— Ei, nerds, esperem aí! — Percy chamou, andando um pouco mais rápido para alcançar o trio que já havia se afastado.

Annabeth parou de andar, parecendo aborrecida. Porém, antes que ela pudesse abrir a boca para reclamar, Percy tirou uma das caixas da pilha que ela carregava. Ela ergueu as sobrancelhas, como se esperasse que Percy fosse acertá-la com a caixa ou fazer outra coisa tão estúpida quanto, mas ele apenas lhe lançou uma piscadela brincalhona e começou a caminhar ao lado dela. Grover pegou uma das caixas de Luke, também.

Era estranho — caminhar lado a lado com Annabeth sem nenhum comentário maldoso saindo da boca de nenhum deles. Enquanto Grover, Rachel e Thalia conversavam um pouco atrás dele, Percy engoliu em seco. Ele e Annabeth nunca haviam sido próximos, mas se conheciam desde a primeira sério do fundamental. Por um momento, ele se perguntou o porquê deles nunca houverem se dado bem.

Ele nunca encontrou uma resposta para essas perguntas. Não quando sua linha de pensamento foi cortada por um grito estridente e horrorizado, vindo de algum lugar à leste.

[...]

Percy procurou em si alguma coisa para dizer. Queria assegurar Rachel de que a culpa não havia sido dela. Que Grover faria o que fez por qualquer um, que ela não podia se culpar pelas atitudes de outras pessoas. Mas sua garganta fechou. Ele não conseguia dizer nada, não conseguia obrigar a si mesmo a sequer dizer o nome do amigo.

Toda vez que fechava os olhos, um quadro se pintava sozinho em sua mente: ele e Thalia mantendo abertas as colossais portas do auditório — que normalmente eram abertas por controle remoto —, a garota raivosa e desesperadamente tentando manter atrás de si uma Annabeth inconsciente com um talho aberto na têmpora, enquanto Luke e Grover ainda tentavam subir as escadas. Atrás deles, uma onda de morte em forma de dentes sangrentos e olhos opacos os seguia, a cacofonia de grunhidos e gemidos doloridos transformando a cabeça de Percy em um redemoinho.

Percy esperara, por horas a fio, que Grover aparecesse, de algum modo. Ficou plantado na frente das portas fechadas, aguardando. Quando ouviu alguém batendo desesperadamente, seu coração quase saíra pela boca.

Mas, quando ele e Luke abriram-nas, quem os fitou do lado de fora haviam sido um Nico — com os olhos demonstrando mais emoções naquele único momento do que Percy havia visto em toda a sua vida —, e uma Reyna que apoiava com dificuldade uma Hazel desacordada.

A voz de Rachel era apenas um fio frágil de remorso:

— Eu sinto muito.

A única coisa que Percy conseguiu responder foi:

— Eu também.

De repente, não havia mais silencio. Todos haviam acordado. Frank e Piper, os responsáveis do dia, rumaram para a sala de som, afim de averiguar a quantidade de comida que seria distribuída mais tarde, enquanto Will e Luke iam de pessoa em pessoa para verificar feridos ou enfermos. Percy conseguia ver a exaustão no rosto de cada um deles. Perguntou-se quanto tempo demoraria para...

Com um balançar furioso da cabeça, Percy corrigiu-se mentalmente. Não poderia deixar-se pensar daquele modo. Tantos deles já haviam perdido as esperanças. Ao menos alguém precisava continuar acreditando.

Apertou gentilmente um dos joelhos de Rachel e um “até logo” silencioso e ergueu-se. Vasculhou o lugar rapidamente com o olhar, procurando por alguma urgência ou situação que precisaria ser resolvida imediatamente, mas o ambiente todo estava submerso em uma calmaria pacata e assustadora. Percy notou que todos olhavam ao redor, ansiosos, na expectativa de que alguma coisa, qualquer coisa, acontecesse.

Mais do que apenas algumas vezes durante os últimos três dias, Percy sentiu-se estranhamente... isolado. Parecia que o resto do mundo não existia, apenas eles, naquele retângulo abarrotado, e morte, que aguardava do lado de fora ao menor movimento. Suas casas, sua escola, o parque no qual andava de skate aos sábados e a loja subversiva e questionavelmente “alternativa” em uma galeria subterrânea para qual Grover os arrastava para comprar seus CDs de música folk estrangeira... tudo havia queimado, como uma lembrança distante de um sonho passageiro.

— Percy?

Era Annabeth. Ela estava com metade do corpo para fora da sala de som — onde, sem dúvidas, havia passado toda a noite —, e acenava para que ele se aproximasse. Confuso, mas curioso, Percy obedeceu. Ela abriu passagem para que ele entrasse e fechou a porta atrás de si.

Para a sua surpresa, sentado de pernas cruzadas no chão poeirento, estava Leo. Percy sentiu um sorriso involuntário formar-se em seu rosto. Leo era um daqueles caras que todo mundo conhecia, e, ainda assim, não era considerado “popular”. Certa vez, ele havia feito um dos cavalos de papel-manche da apresentação deles do primeiro sobre a guerra de Troia pegar fogo. Havia sido hilário. E assustador.

— Leo?

— Oi, cara — o garoto respondeu, sem olhar para ele. Seu rosto estava sujo e suas mãos machucadas de tanto tempo reforçando a barricada. — Eu... — ele tentou umedecer os lábios, em vão, uma vez que sua boca também estava seca — eu acho que descobri uma coisa boa.

Alguma coisa no peito de Percy se expandiu. Uma sensação que ele até então não sabia que estava sentindo pareceu amenizar-se um pouco. Expectante, Percy curvou-se, até estar de joelhos na frente de Leo, e o incentivou a continuar.

Leo tirou alguma coisa do bolso. Parecia uma caixinha retangular, mas os dedos dele estavam se movendo tão rápido que Percy não conseguiu ver direito.

— A Piper roubou isso do avô dela, uns sete meses atrás. É um rádio portátil. Ele estava quebrado e eu disse que ia concertar, mas acabei esquecendo. Eu só encontrei ontem à noite, no fundo da minha mochila.

Percy não estava entendendo muito bem aonde ele queria chegar com aquilo, mas Annabeth também se sentou no chão, ao lado dele, e Leo continuou:

— É um rádio bem velho, do tipo AM. Normalmente, não serviria para muita coisa. Mas... ondas sonoras do tipo AM são mais instáveis, e também muito mais fáceis de manipular. Eu... — ele respirou fundo uma vez antes de continuar — eu acho que consegui conectar esse rádio com uma estação da polícia.

Percy precisou de um momento para de fato registrar o que Leo havia dito. E então, deu um salto para frente e envolveu o rapaz mais magro em um abraço de urso. Seu coração batia à mil em seu peito, e ele não conseguia formular bem o que estava pensando. Ao seu lado, ele pensou ouvir Annabeth suspirar aliviada, mas era um pouco difícil ouvi-la por cima da própria animação.

Jason e Reyna foram chamados para a sala de som em seguida, semblantes confusos em suas faces. Jason ficou extasiado quando Leo o contou, mas Reyna manteve-se em silêncio. Percy quis perguntar se estava tudo bem, mas não tinha certeza se queria ouvir a resposta.

Leo ligou o aparelho. Em pouco tempo, havia conectado um dos microfones com o rádio.

— Eu não tenho certeza de quanta bateria ainda temos... então...

Um som de estática preencheu o ar, e todos pararam de respirar por um momento. Algo que parecia uma voz distorcida se fez ouvir, mas desapareceu logo em seguida. O sinal parecia fraco, surfando entre uma estação e outra. Leo estendeu o microfone para alguém falar, e Annabeth o pegou.

— Se alguém estiver ouvindo, nós estamos falando do Brooklyn, Nova Iorque. Somos em cerca de cinquenta sobreviventes. Temos pouca água e pouca comida. Estamos procurando por outros sobreviventes.

Ninguém respondeu. O mesmo som de estática continuou. Annabeth repetiu a mensagem mais duas vezes. E então, o aparelho desligou.

— O que? — Leo exclamou, balançando o pequeno rádio. — Não, não...

Percy socou a própria perna, frustrado. Jason deixou-se cair contra a parede, e Reyna permaneceu em silêncio. Leo continuou mexendo no aparelho, desesperado. Estava tão nervoso, que Percy já nem tinha mais certeza se o outro garoto estava de fato prestando atenção no que fazia.

Alguém bateu com força na porta. Annabeth soltou um palavrão, mas abriu-a, dando de cara com um dos Stoll, rosto coberto de suor e írises tremendo nos nas órbitas.

— Travis...?

— É o Ethan — ele murmurou, com a voz tremendo. — Ninguém... ninguém viu ele saindo. Mas de repente ele chegou, batendo na porta e gritando...

Percy sentiu todo o sangue de seu corpo gelar. Jason e Reyna imediatamente ficaram de pé, alertas. Leo, ainda alheio a tudo, soltou um grunhindo de frustração.

— Travis — ela disse, em um tom preocupado — o que... —

Annabeth foi interrompida por um grito de rasgar a garganta, vindo de trás do outro garoto. Rapidamente, empurrou Travis para o lado e saiu andando em direção ao barulho. Percy, Jason e Reyna a seguiram.

Ethan estava deitado no meio do palco do auditório, Will sentado logo ao lado da cabeça dele, e Nico ajoelhado não muito longe. Nenhum dos dois parecia muito bem, mas Percy sentiu seu estômago revirando quando olhou para o mais velho. A camiseta de Ethan havia sido rasgada, afim de expor melhor o ferimento:

Uma enorme mordida ensanguentada e encardida. Percy abriu caminho, e, quando o alcançou, Ethan imediatamente segurou seu braço. Sua mão estava trêmula e suada, aperto frágil, quase sem força. Seu rosto, contorcido em dor, pingava suor. Seu olhar desfocado dizia que ele não tinha muito mais tempo.

— Percy, Per... — ele grunhiu — eu... eu não quero morrer.

Tudo se embaralhou na cabeça de Percy. Ethan o fitava com o olhar mais assustado do mundo, como se pedisse por misericórdia. Como se sua vida estivesse nas mãos dele. Como se Percy pudesse salvá-lo.

Mas não podia.

Percy não era um deus. Não havia nada que pudesse fazer por Ethan agora.

Mas era assim que ele pensava? Era assim que Ethan o via? Era assim...

Que todos os outros o viam?

Percy quis gritar. Era muito. Ele não conseguia fazer nada, mas, mesmo assim, todos esperavam que fizesse. E, se não fizesse, seria o responsável.

Ethan iria morrer, e a culpa era dele.

Algo estalou atrás dele, mas Percy não deu atenção. Não até o barulho de estática preencher todo o auditório e uma voz ressoar imponente:

Quem fala é a Sargento La Rue, do exército americano. Todas as bases da polícia militar da cidade estão fora de alcance. Eu estou mandando essa mensagem para qualquer um que possa me escutar. Tenho uma equipe, abrigo e mantimentos. Se estiver ouvindo essa mensagem, responda.

Leo saiu de dentro da sala de som com um sorriso satisfeito no rosto. Que imediatamente desapareceu. O aperto no braço de Percy se desfez, a mão de Ethan caiu inerte ao lado do joelho do rapaz. No silêncio mórbido e absoluto, a mensagem começou a se repetir:

Quem fala é a Sargento La Rue, do exército americano. Todas as bases da polícia militar da cidade estão fora de alcance...

Muito lentamente, as pálpebras de Ethan se abririam. Com as veias saltando nas órbitas, ele grunhiu.

A mensagem continuou ressoando na cabeça de Percy, enquanto o fim de mundo fechava uma mão em seu joelho, e se erguia faminto. 


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Notas finais do capítulo

Espero que tenham gostado, comentários são sempre apreciados. Até a próxima!



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