Através das barreiras do tempo escrita por Celso Innocente


Capítulo 5
Perambulando




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— Ei, vovó! — fiquei deveras zangado. — Tomo banho todos os dias!

— Quantas horas têm seus dias? Quarenta e oito?

Imaginei o que ela queria dizer.

— Quantos dias não troca de cueca?

— Troquei hoje!

— Onde? Na escola?

Me lembrei que, oficialmente teria dormido na casa dela.

 

Perambulando.

 

E o safadinho do outro eu… tivera a ousadia de ir dormir sem tomar um banho! E olha que o chuveiro da casa da vovó, com água tratada pela prefeitura é muito mais prático do que o de nossa casa, à base de balde com bico de regador.

Fui para o chuveiro, onde me deliciei por pelo menos vinte minutos, sendo então interrompido por ela, que abriu a porta com uma toalha na mão.

Assustei-me por sua ousadia em interferir em minha privacidade, protegendo meus genitais com ambas as mãos, protestando:

— Ei vovó! Eu estou pelado!

— Claro que está! — riu ela, colocando a toalha pendurada em um prego na parede. — Mas é que em sua mala de turista não veio uma toalha pra secar seu pintinho, que agora deve estar limpinho. Isto se esfregou direito. Com bucha e sabão.

— Eu tomo banho direito!

— É bom mesmo! Senão eu darei banho em você!

— Pode ir agora? Pra que eu possa me enxugar? É que eu não gosto que me vejam pelado!

— Bela coisa! — riu ela se retirando.

Me enxuguei muito bem e vesti, embora sem a cueca, o mesmo uniforme escolar que estava usando antes.

Segui para a varanda dos fundos da residência, levando comigo a toalha e a cueca “suja”.

— Vovó, onde eu penduro a toalha?

Sem dizer, ela fez gestos apontando para um varal improvisado sob o telhado daquela varanda.

Pendurei a toalha e seguindo para o tanque, lavei esfregando bastante a cueca samba canção com água e sabão, pois a mesma estava de fato até amarelada de secar águas de rio em meu próprio corpo.

— Que bom! — riu vovó. — Aprender a lavar pelo menos as roupas íntimas ajudam bastante. Só não sei como você vai dormir agora! Pelado!?

— Não, vovó! Até a hora de dormir a cueca já secou!

— Não sei não!

— Onde está o vovô?

— Onde está o vovô? — repetiu ela, achando que eu deveria saber. Como eu saberia?

E como eu não respondia minha própria pergunta, ela mesmo completou:

— Enquanto os netinhos não podem trabalhar pra ajudar os vovôs, ele mesmo, embora já cansado, precisa continuar labutando.

— Labutando… — Achei engraçado a palavra, que, embora com minha mente avançada não conhecia. — E a que horas ele chega do… labutando?

— A que horas ele chegou do trabalho ontem, Regis?

— Como vou saber?

— Quem é que estava no portão na hora que ele chegou?

Só poderia ser eu! Ou… o outro eu.

— É que… eu nem sei que horas era!

— Pouco depois das seis horas.

E então, como teria acontecido no dia anterior, ainda nem era seis e meia daquela tarde, quando vovô, cansado, sujo, de chapéu de palha, com seu embornal de lado, adentrava ao portão de sua casa.

Quanta saudade! Fazia pelo menos trinta e cinco anos que não o via, desde o seu falecimento, já velhinho, no início do ano de um mil novecentos e oitenta e dois.

Mas ali não! Ele, embora magro como sempre foi, estava forte, saudável e animado.

Corri a seu encontro e o abracei fortemente, dizendo:

— Quantas saudades, vovô! Fazia tanto tempo que não via o senhor!

— É! — riu ele, correspondendo com carinho o abraço recebido. — Desde hoje de manhã. E pelo jeito vai dormir aqui novamente.

— Eu posso?! — perguntei, deixando-o.

— Claro! Desde que os seus pais concordem, você pode até morar conosco! Você quer?

— Bem!… É que… eu vou ficar com saudades de minha mãe!

— Lá já tem um monte de crianças! Aqui só tem o Pedrinho! E depois, você pode ir visita-los uma vez por mês.

— Uma vez por mês!? — estranhei sua metáfora. —Puxa! Não é tão longe!

Ele acabou de entrar, seguindo direto para o banho.

É®Ê

Já estávamos jantando, sentados à mesa da copa, quando o outro menino, branco, de cabelos castanhos, de seus doze anos de idade entrou.

— Ei Regis, você vai dormir aqui hoje de novo? — perguntou ele em tom forte.

— A gente acabou de adotar ele pra fazer companhia pra você — riu meu avô.

— Então eu vou dormir em casa — foi incisivo o outro menino.

— Por quê? — interferiu vovó. — Não gosta de seu primo?

— Claro que gosto de meu priminho lindo! — ironizou ele me abraçando por trás da cadeira de madeira rústica. — É que, como nunca durmo em minha casa, vou aproveitar que ele está com vocês e vou dormir com minha mãe.

— Concordo com você! — riu vovô. — Às vezes é preciso ter um homem em casa. Lá só têm mulheres!

— Ele não é homem, vovô! — protestei com intuito de ironizar meu primo. — É só um menininho indefeso.

— Sou muito macho! — protestou ele.

Na verdade, macho mesmo era minha tia, a mãe dele e de outras três meninas. Ela, não suportando mais ser feita de lixo, separou do marido quando eu ainda nem sabia o que é ser gente e desde então a vida tem sido muito dura para ela, trabalhando pesado em um curtume para criar sozinha os filhos. E olha que esta época é diferente daquela em que acabei de chegar, onde o pai separado da esposa que não der pensão de pelo menos trinta por cento do que ganha para sua cria, vai parar atrás das grades. Porém, nesta de minha tia, seu marido sumiu e no máximo o que faz, é de vez em quando dar algum presentinho para mimar os filhos, para que estes o imaginem um ótimo pai.

É®Ê

Na hora de dormir recolhi minha cueca no varal da varanda, percebendo que a danada ainda estava úmida.

— E agora? — cobrou-me vovó. — Vai dormir como?

— Durmo com ela assim mesmo — balancei os ombros. — Já está quase seca!

— E pega um resfriado nas partes proibidas.

— Por que acha que são partes proibidas?

— Estão sempre escondidas.

— Nada a ver!

— É melhor dormir com a calça da escola mesmo.

— É que ela, além de muito curta é um pouco apertada.

Ela enfiou algumas brasas em seu antigo ferro de engomar, apanhou minha cueca de tecido fino (não fino de ser chique, mas sim, de pouca espessura mesmo) e em cima da cama passou aquele ferro sobre ela, fazendo levantar um pouco de vapor devido a umidade da mesma.

Em poucos segundos ela já estava praticamente seca.

Me entregou, dizendo:

— Pronto! Pode usar agora.

Ela se retirou do quarto e eu me despi completamente, vestindo apenas aquele acessório quente, porém, apesar de estranho para minha época, até que muito confortável.

Ao chegar na sala de estar, vovô comentou com sarcasmo:

— Não tá cozinhando a salsicha e os ovinhos de codorna não, não é?

— Não, vovô! — entrei na dele. — Só está fazendo uma pequena sauna pra aquecê-los.

— Você se lembra de quando eu ia ao sítio e você corria o dia inteiro pelado atrás das galinhas?

— Não me lembro, mas minha mãe e minha madrinha sempre fala que eu fazia isso.

— Pois então! Você, sempre peladinho fazia da galinhas sua tropa de boiadas. Por que não dorme pelado agora?

— É que agora eu já sou grande! Não gosto de ficar pelado!

— Oh, grande! Já deve estar com uns sete anos!

— Nove! Quase dez!

As seis horas da manhã, quando acordei, percebi a luz da cozinha acesa.

©©©

Levantei-me, fui ao banheiro que estava fechado, então segui para a cozinha onde encontrei vovó acabando de preparar o café da manhã, em velho coador de pano e principalmente o almoço, para que vovô retornasse às suas obrigações de homem da casa, trabalhando pesado na lavoura.

O cheiro estava muito bom, principalmente do café, que vinha de grãos do próprio quintal, sendo torrado e moído por ela mesmo em velho torrador em fogo à lenha, improvisado no quintal.

— Bença vovó! — cumprimentei-a com carinho.

— Deus te abençoe! Dormiu bem?

— Como se estivesse em minha própria cama.

— Por que levantou tão cedo?

Balancei o ombro esquerdo complementando:

— Gosto de levantar cedo! Levanto todos os dias as seis horas.

— Então seu relógio de ontem atrasou bastante.

— É que… — Cara, tenho que ter cuidado com o que falo. — Acho que estava cansado. E não levantei tão tarde! Falei até tchau pro vovô.

— Sim! Encolhido na cama. Já escovou os dentes?

Fiz micagem e não respondi. Ela teria feito tal pergunta sabendo que eu não teria escovado e o porquê de não ter feito.

— Escovou os dentes ontem depois do jantar? — insistiu ela.

— Sim!

— Com qual escova?

— Esta! — franzindo os lábios mostrei-lhe o dedo indicador da mão direita. — Não é muito boa, mas quebra um galho.

Ela abriu a porta de sua linda cristaleira toda de vidro fino da copa e me entregou uma escova novinha, dizendo:

— Pra sua sorte eu tenho uma de reserva. Pode usá-la.

— Puxa! Obrigado vovó! Já estava ficando com a boca um pouco fedida.

Vovô desocupou o banheiro e chegou à cozinha, cumprimentando-me:

— Bom dia, Pedrinho!

— Regis, vovô! — corrigi-o.

— Ah! Você se parece o Pedrinho!

— Acha! Olha a cor de meus cabelos!

— Verdade! Parece uma mecha de algodão!

— Não é tão branco!

— Quer ir trabalhar comigo na roça hoje? — brincou ele.

— Eu quero! — animei.

— Quer nada! — negou prontamente vovó. — Tem uma escola esperando por você!

— Eu não vou na escola hoje! Vou faltar!

— Vai faltar nada! — olhou-me com cara de palavra única. — Lugar de criança é na escola.

Ah se ela soubesse!

Quer dizer… ela não era tão ignorante.

— Um passarinho contou no meu ouvido que você já faltou ontem. Espero que ele tenha se enganado.

— Garanto pra senhora que seu passarinho fofoqueiro se enganou sim – Aleguei rindo.

Como eu não vou mesmo na escola e nem posso ir para casa durante tal período, deveria mesmo era ir com vovô conhecer seu trabalho na lavoura. O problema era que uniforme escolar, com camisa branca na lavoura, poderia até encardir de tal forma que nenhuma esfregação em tanque de concreto pudesse remover.

Segui para o banheiro, onde, depois das necessidades fisiológicas, escovei muito bem os dentes, indo a seguir para o quarto em que dormira, vestindo o uniforme escolar e, como bom menino, arrumando muito bem a cama em que dormi.

Retornei à cozinha, onde tomei café com leite e um grande pedaço de pão caseiro lambrecado de manteiga original em lata.

Vovô seguiu para seu trabalho, me deixando no portão, de onde fiquei com muita vontade de ir consigo, o observando até desaparecer ao longe, lá na esquina do grupo escolar.

E agora? O que fazer o dia todo?

No período da manhã foi até fácil. No fundo de seu quintal existe diversas ruazinhas asfaltadas, construídas com estilo de ruas verdadeiras em miniatura por meu primo Pedrinho e seus diversos carrinhos de ferro (presente de seu pai exemplar).

Minha mente nem tanto, mas como meu corpo é de uma criança de nove anos, acho que brincar faz parte de minhas necessidades da idade e por isso, assim sozinho, passei a maior parte daquela manhã naquele quintal, inclusive subindo nos pés de frutas: jabuticabas, goiabas, caqui, limão galego (lógico que não subi nos pés de cítricos), diversas laranjeiras…

Porém, assim mesmo estava deveras aborrecido. Precisava arrumar um jeito de poder conviver normalmente naquele lugar. De que me adiantava estar ali, se tinha que dividir os carinhos do bom conviver com meu outro eu, inclusive entrando em situação embaraçosa por contradizer o que “ele” teria dito anteriormente.

 No horário das aulas, como aluno exemplar, saí normalmente da casa de vovó, encontrando meu outro eu na entrada do portão da escola.

— Nem adianta vir! — protestou ele. — Hoje vou dormir novamente na minha casa!

— Vai uma pinoia! Um dia cada um.

— Quero ver quem manda! — foi incisivo o malvadinho. — Quem é o intruso aqui?

— Quem garante que não é você!?

— Eu hem! Cai fora!

— Aliás! — lembrei-me de algo. — Que porquisse! Não gosta de tomar banho não, meu!

— Êêêh! Tomo banho todos os dias!

— Não é o que parece! Pelo menos não foi o que a vovó falou!

— Culpa sua! — protestou ele. — Quem me fez ir na casa da vovó sem levar roupas, toalhas, escova de dente…

— Quer dizer que não escovou os dentes também!?

— Com que escova?

— Eu também não levei escova! — assoprei forte em sua cara para sentir o odor do creme dental Kolynos que eu acabara de usar em minha boca. — E pra tomar banho não precisa de roupas! Eu tomo banho pelado!

— Tchau! Vou pra aula. De tarde vou pra minha casa, dormir na minha cama!

— Não! De tarde você vai comigo na casa da vovó.

— Juntos! — estranhou ele. — E seu segredo?!

— Tá na hora de começar a revelar meu segredo, para que eu tenha uma vida normal no seu mundo atrasado.

— Se acha meu mundo atrasado, por que você quis vir aqui?

— É atrasado, mas adoro ele. Tchau!

Quatro horas perambulando pelas ruas sem ter o que fazer seria de novo uma eternidade.

Saí um pouco sem destino, caminhando como quem vai voltar para casa, sabendo que não poderia chegar.

Um quilômetro antes, parei em uma antiga casa, em um bairro vizinho ao da casa de meus pais. Bati palmas no portão e em menos de um minuto a porta da sala se abriu, ao qual uma senhora de seus quarenta anos de idade, com jeito muito calma disse:

— Regis… Entre!

 


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