Através das barreiras do tempo escrita por Celso Innocente


Capítulo 27
Um anjo entre as crianças


Notas iniciais do capítulo

Desculpe a demora em postar este capítulo. Estava viajando para aproveitar as férias de final de ano. Como diz os americanos: férias de verão.



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E como os outros seis meninos eram maiores de doze anos de idade, por si mesmos, dispensaram meu maninho da atividade mais pesada: carregar as gavetas de aço. Me liberando automaticamente da tal promessa em ajuda-lo.

 

Um anjo entre as crianças.

 

Quanto ao meu novo trabalho, percebi logo de início, que contaria sempre com a indesejável ajuda de alguns companheiros da fábrica.

Por que indesejável ajuda?

Tais funcionários tinham seus vencimentos com base na produção diária, que a partir de então estava sendo apontada “honestamente” por mim. Eles me ajudavam na classificação, colocando a produção de qualidade nas caixas de transporte e as de má qualidade… também. Portanto, quando me ajudavam, eu ficava por perto observando e descartando aquelas defeituosas que seus olhos não conseguiam ver.

            — Assim você está roubando a empresa e principalmente os compradores — protestei contra tais atitudes de Paulo Antônio.

            — Ladrão é o pai de seus filhos! — ironizou ele.

            — Não tenho filhos! — “Menti”, mesmo porque ele não sabia disso. E nem acreditaria no contrário.

            — Pois então que seja o filho de seus pais!

            — Eu não estou roubando ninguém! Você é que está tentando.

            — E o passarinho… — desviou o assunto ele. — já tá começando a empenar?

            — Por que você quer saber?

            — Saber se já tá na hora dele voar!

            — Ainda não é a minha hora! Só tenho onze anos!

            — Brinca muito com ele?

            — Por quê? Você quer brincar?

            — Chatinho você! Não? — protestou ele.

            — Chatão você! Não? — Ironizei do mesmo modo. — O senhor é um homem casado, tem filhos. Por acaso faz brincadeiras idiotas também com seus filhos?

            — Respeite meus filhos!

            — Eu com certeza respeito! Resta saber se o senhor respeita.

            — Só estou brincando contigo, menino. Eu te respeito.

            — Então prove. Por favor, não faça mais brincadeiras de erotismo comigo e nem com outras crianças. Certos adultos falam bobagens o dia todo e depois acham que as crianças são mal-educadas por repetirem o que eles falam.

            — Só perguntei se o passarinho tá empenando! Não fiz nenhuma maldade! Talvez seja mesmo uma curiosidade.

            — Tudo bem! Quando eu tiver treze anos, talvez.

            Cada um deles tinha uma característica diferente, mas nenhum era confiante o bastante para poder ajudar-me em minha tarefa diária que não requeria ajudas.

            João Batista, outro dos trigêmeos, irmão de Paulo Antônio, era sim uma pessoa boa, brincalhona e que estava entre os que nos respeitava como pessoas, porém não era confiante em me ajudar, pois simplesmente pegava as garrafas da mesa e colocava nas caixas, mesmo que elas estivessem quebradas. Imagine os pequenos defeitos!

            Marcelo não me ajudava, apenas ficava olhando e reclamava de cada uma delas que eu jogava de volta para a reciclagem, alegando:

            — Pode jogar fora à vontade. Mesmo que você quebrar a metade de minha produção, ainda assim ganho quatro vezes mais do que você.

            — Pode ser — ironizei. — Quem lhe garante que quando eu tiver a sua idade, não ganharei quatro vezes mais do que você?

            — Duvido! — ironizou ele. — Fracote como você é, o máximo que conseguirá nesta fábrica é classificar a produção dos demais e jogar parte de seu árduo trabalho fora.

            — Só jogo fora o que amadores não souberam fazer com qualidade!

            — Pode quebrar! Dinheiro não me falta.

            Enfiou a mão no bolso e me mostrou um monte de cédulas de Cruzeiros Novos. Quantidade que talvez eu demoraria um ano para ganhar na empresa. Por isso, não por inveja, mas nervoso, quebrei de uma só vez mais de vinte de suas garrafas boas. Ele se calou e se afastou.

Me arrependi de minha péssima atitude, pois não estava apenas protestando contra ele, prejudiquei também seus dois outros parceiros de tal produção, já que para fazer uma garrafa, se contava com a ajuda direta de quatro funcionários, dos quais apenas um (a criança) não era comissionado.

            Outro perigo desses ajudantes desnecessários, era o de que, sem que eu percebesse, seus dedos poderiam correr até a caneta e planilha, apontando produção inexistente.

            E quando Fabrício chegou pela primeira vez a este setor, depois que Regis fora transferido, já chegou abraçando o maninho fortemente, insinuando:

            — Ei frangotinho, me abandonou de vez, não foi? Mas eu não vou abandonar você.

            Regis se esforçou para escapar daquele abraço indesejado, reclamando:

            — Me largue em paz! Estou trabalhando!

            — Que isso, frangotinho! — insistiu tal homem, segurando firme no pescoço do maninho. — Você é meu e ninguém tasca.

            — Cara, se você insistir em mexer com meu irmão, vou te quebrar uma garrafa na cara! — protestei.

            — Ai frangote! — tornou a ironizar, soltando Regis. — Está com ciúmes?

            — Estou com ciúmes de sua mulher, que não vi ela hoje!

            — Pode deixar que vou recomendar você a ela — ironizou ele.

            Não tinha jeito. Era só um molecão mesmo. Não tinha um pingo de juízo. Porém, eu detestava suas brincadeiras de agarramentos contra meu maninho.

©®©

Na próxima segunda-feira em que voltava a trabalhar no horário da tarde, em nosso setor teríamos então a presença do primeiro homem adulto a trabalhar conosco.

            Ele já trabalhava na fábrica, porém no setor de carregamento e como já tinha quase sessenta anos de idade, estava um pouco cansado para tal atividade pesada, por isso fora transferido para trabalhar conosco e que também estaria isento de transportar as gavetas de aço pesadas.

            Outra de sua característica profissional, seria a de que, gostava de trabalhar apenas no horário da tarde, portanto teria negociado com o menino José Lucas, o que invejei, pois este só trabalharia no horário da manhã, que com certeza era bem melhor.

            Este homem pardo, de barbas ralas brancas, caminhava um pouco arcado, talvez devido ao tempo em que trabalhou no outro setor, responsável por armazenar garrafas em caixas ou sacas.

            Talvez fosse mesmo uma boa ideia, um adulto responsável no meio de nós crianças e pré-adolescentes, pois nossa pouca idade, fazia da gente sermos “um pouco” irresponsáveis? Nem tanto! Cumpríamos nossas obrigações. Mas convenhamos que… em um tom de brincadeiras.

            Um adulto… nos corrigiria.

            E o melhor: na classificação de separação entre adultos bons dos de má influência, ele com certeza estava na primeira parte.

Ele mesmo se apresentou a nós, dizendo de um jeito calmo e cordial:

— A partir de agora vocês terão que tolerar este velho entre vocês garotos. Não precisarão me ensinar, pois já aprendi tudo na semana passada, com a outra turminha que também tiveram que me tolerar.

— O senhor vai brigar com a gente? — perguntou-lhe com certo sorriso, Adriano.

— Com vocês, com certeza não! — riu calmamente o senhor. — Talvez eu tenha que brigar com outras pessoas.

— Como assim? — estranhou o mesmo menino.

— Adoro um bichinho chamado criança!

— Oh owh! — espantou-se o menino, imaginando “mais um safado”.

— Se vocês deixarem — continuou tal homem. — Os terei como galinha choca tem os seus. Ai de quem vir fazer gracejos com vocês.

— Ninguém faz gracejos com a gente — negou Osmair. — Quer dizer… às vezes sim com Regis e Arthur.

— Pois é! — continuou o idoso. — Na outra turma tem vários.

— Não se preocupe, senhor Pedro — Pedi. — Ninguém mexe com a gente aqui.

Ele me olhou com atenção e especulou ansioso:

— Você me conhece?

— Sim! O senhor trabalhava lá no pátio de carga.

— Você conversava comigo lá?

— Não! Eu nem ia até lá! A não ser às vezes, pra levar garrafas.

— Como sabe o meu nome?

Dei de ombros como quem diz “o que importa”?

— Espero que não fiquem bravos comigo por trabalhar um pouco mais devagar do que vocês — continuou ele. — É que as pernas desse velho já não são tão espertas quanto a de vocês, tão serelepes.

— Não se preocupe não, senhor Pedro — alegou o maninho Regis. — Pode trabalhar bem devagarinho. Quando estiver cansado pode sentar aqui na última mesa e deixar que a gente cuide do trabalho.

E então, aquele senhor (que eu já conhecia muito bem), caminhando devagar, passara não só a trabalhar conosco, mas ser o nosso guardião e todos nós o respeitávamos e tínhamos um carinho especial por ele.

Nos dias que se seguiram, os meninos começaram a conhecer de verdade quem era aquele bom velhinho.

Isso mesmo, bom, mas que para o grupo de arteiros ele seria considerado chato, pois tinha um pequeno defeito: adorava conversar e contar estórias de todo tipo. Ótimo! Quem não gosta de ouvir estórias? Porém ele tinha uma agravante: se esquecia que já teria contado e repetia uma… duas… várias vezes a mesma coisa.

Os meninos nunca o repreendia com desdém, salvo alguns que, ajudavam a contar tais aventuras e ele insinuava:

— Como você sabe dessa estória?

— Tem um certo vovô que trabalha com a gente — ironizava o garoto. — Que já nos contou ela umas dez vezes! Perdi a conta.

— Ãh! — ficava meio chateado o bom homem. — Então contarei outra.

E assim, por estarem enjoados de ouvir suas estórias, os meninos, nos períodos de folga sumiam todos do setor, ficando apenas eu, que, como trabalhava na área de classificação, nunca terminava meu trabalho antes ou junto aos demais. Com isto, estava condenado em ouvi-lo sempre. Porém, como aprendi a ser um menino educado, não me importava e, apesar de trabalhando, o ouvia com muita atenção.

Geralmente eu levava à fábrica uma garrafinha de 300 mililitro de café, que mamãe sempre preparava para mim e o maninho Regis, a qual eu deixava sobre a estufa no final (inverso) do corredor, próximo à área de produção, para mantê-lo sempre quente.

O problema era que nós, donos da preciosidade, nunca conseguíamos degusta-lo, pois, adultos atrevidos sempre roubavam, deixando apenas a garrafinha vazia no local.

O senhor Pedro ficava mais revoltado do que nós mesmos, por isso um dia ele mesmo pediu que escondesse minha garrafinha cheia em outro ponto, tomou de outra semelhante, encheu de óleo diesel queimado e deixou sobre tal ponto para os larápios.

Não adiantou muito. Quero dizer… não adiantou nada! Os safados tomaram tragos daquele óleo ruim, porém, nos dias que se seguiram, aprenderam a cheirar primeiro e depois sim, continuaram roubando minha delícia, que mamãe nos mandava.

E por ser seu principal ouvinte e companheiro, o senhor Pedro passava a sempre me dar pedaços da mistura de seu jantar, para que eu degustasse com ele, antes mesmo do horário tradicional.

— Você é o meu melhor amigo desta fábrica — alegou ele emocionado.

— Que isso, senhor Pedro! — aleguei. — Todos aqui gostam muito do senhor.

— Todos somem de perto de mim! Você é o único que ouve minhas estórias sem fazer gracejos.

— Eles não somem de perto do senhor! São meninos serelepes. Não veem a hora de uma folguinha no trabalho para correrem por aí em busca de atividades dignas de moleques. Antes do senhor vir trabalhar com a gente eles já faziam a mesma coisa.

— Você é o meu melhor amigo neste local — insistiu ele. — Outro que sinto que também gosta desse velho é o Regis.

— Só porque ele é o meu irmão, o senhor diz isso!

— Não! Ele conversa comigo com certo carinho na voz.

— Claro! Ele e eu somos os mais novos da turminha. Iremos fazer doze anos de idade. Os demais já estão com pelo menos treze.

— Pra mim eu tenho vocês dois como sendo dois netinhos. Vocês deixam?

— Também!? — insinuei eufórico.

— Como assim? — Não entendeu ele. — Não considero outros! Quer dizer… gosto dos outros, mas vocês dois me parecem especiais.

— É que nós dois já adotamos um casal de vovôs simpáticos em nossa vida. Mas sempre cabe mais um vovozinho amoroso em nosso coração.

— Obrigado! Desculpe esse velho chato ficar repetindo as mesmas coisas. Acho que a minha memória está começando a pifar.

— Não se preocupe com isso, senhor Pedro. Adoro ouvir suas estórias. Mesmo sendo repetidas. Os demais meninos também gostam do senhor. São só pré-adolescentes e gostam de viverem livres. Por isso somem nos momentos de folga.

Ainda eram cinco horas da tarde, ele destampou sua marmitinha do jantar, tomou de um pedaço de carne e me entregou dizendo:

— Experimente. Vai gostar.

Degustei-a devagar.

— Sabe o que é?

— Tem gosto de carne de porco — arrisquei. — Só está um pouco mais forte, talvez seja o tempero que a… vovó colocou.

— Não foi minha mulher quem fez! — negou ele. — Eu mesmo temperei e preparei.

— Ficou gostosa.

— Mas não é de porco! Consegue adivinhar?

Pensei um pouco e… (fingindo) acenando negativo com a cabeça, aleguei:

— Arriscaria capivara, mas nunca comi tal carne.

— É carne de tatú peba — riu ele.

Fiz uma pequena careta de nojo (de verdade) e corrigi:

— Tatú galinha, senhor Pedro. Ninguém come carne de tatú peba.

— Come sim! Esta aqui é de tatú peba!

— Tatú galinha as pessoas comem — insisti, em tal mundo de repeteco[1]. — Tatú peba come até carne humana nos cemitérios. Por isso ninguém às come.

— Este aqui veio do sítio, longe do cemitério, portanto nunca comeu carne humana, ou seja, antes dele nos comer, nós humanos comemos ele — riu o velhinho.

— Mas ele também come carniça!

— Este nunca comeu e jamais comerá, porque já estamos comendo ele. Não precisa ficar com nojo! Não ficou saborosa?

— Sim! Mas… é que… mesmo tatú galinha, uma vez no sítio, papai matou um e… como mamãe achou que seria carne estranha, deu pra dona Cida vizinha, que deve ter adorado.

— Claro que adorou! É uma delícia a carne do tatú galinha. Só que este aqui também é uma delícia.

 

[1] Lembra de nossa conversa do início de tudo, cinquenta anos no futuro?


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Notas finais do capítulo

Convido-os a ler minhas outras estórias aqui no Nyah!
Recomendo:
https://fanfiction.com.br/historia/544819/Anjo_da_Cara_Suja_-_betada/



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