Através das barreiras do tempo escrita por Celso Innocente


Capítulo 19
Machinho encardidinho


Notas iniciais do capítulo

Neste capítulo há duas notas de rodapés.



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A seguir uma máscara de pano branca.

— Pode usar.

— Vai me transformar em médico? — insinuei rindo.

— Quem sabe! Qual é o nome de seu pai?

— Antônio Albuquerque dos Anjos.

— Então você é um anjinho?

— Às vezes dizem que sou capetinha! Mas não sou!

— Me acompanhe.

 

Machinho, encardidinho.

 

Segui com ele por um longo corredor que nos levava à ala de INPS[1], onde ele perguntou à primeira enfermeira que encontrou, depois me levou a um dos quartos, o qual de longe avistei papai deitado, com os olhos cerrados e uma agulha de soro ligada em sua artéria do braço esquerdo.

O homem fez gesto para que eu me aproximasse do leito, o que fiz cautelosamente.

Ao estar próximo, papai abriu os olhos, sentiu pequena surpresa, deu pequeno sorriso e especulou com a voz cansada:

— Quem é esse doutorzinho pequeno que veio me curar?

— Sou eu, papai! — dei leve sorriso. — Seu machinho perigoso.

— E como eles deixaram tal machinho entrar aqui?

— Pela porta ué! — Ri. — Por onde mais?

— Esse peraltinha aí está lá fora faz um tempão — interferiu o homem. — Não queria ir embora, então me vi obrigado a trazê-lo aqui.

— E o que você veio fazer aqui, Regis?

— O que eu vim fazer aqui, papai? Vender uma dúzia de bananas é que não é! Lhe garanto!

— Ouça! Geralmente em hospitais não se pode entrar crianças! E como você é meu machinho inteligente, sabe muito bem o porquê!

— O senhor não está com saudades da gente?

— Claro! Mas não justifica corrermos o risco de tê-lo que interná-lo também!

— Estou todo encapado, papai! Até pareço o menino de plástico. Nenhuma bactéria conseguirá atravessar tais barreiras.

— Tá até engraçado assim! — riu de leve ele.

Ameacei tirar a máscara com intuito de beijar o rosto de meu pai, porém fui imediatamente interrompido pelo provedor, protestando:

— Nada disso, garoto! E se quiser pode até dar um pequeno abraço em seu pai, pois já estamos indo.

— Só ficamos um minuto! — fui incisivo.

— Com certeza já matou a saudade — virou-se para papai. — Senhor Antônio, avise esse jovenzinho aqui, para que não volte.

— Isso mesmo, Regis…

— Arthur, papai. Lembra?

— Pois é! Logo eu voltarei pra casa. Enquanto isso me espere por lá.

— Sim! E o senhor vai mesmo seguir as recomendações médicas. Não vai?

— Quais?

— Bebida alcoólica nunca mais! Ou esse fígado aí o levará ao cemitério.

— Como sabe? Você conversou com o médico?

— Não! Mas eu sei tudo! Não sou tão criança assim!

É®Ê

Pouco antes das onze horas da manhã seguinte, domingo, papai, depois de andar desde à Santa Casa, adentrou nossa sala como sendo um estranho, sem que ninguém, apesar de minhas constantes insistências de união familiar, lhes pelo menos perguntasse alguma coisa sobre sua saúde.

É®Ê

Mesmo depois do final das férias escolares, meu irmão José decidiu continuar trabalhando naquela olaria.

Começávamos muito cedo e por volta das onze horas deixávamos o serviço por conta de um banho e eles irem para sua obrigação principal: estudar.

Em uma destas tardes, por volta de quatro horas, os céus se fecharam e o dia praticamente se transformou em noite. Como eu era o único funcionário disponível da equipe, daquele trabalho sem trégua, corri para a olaria com intuito de proteger nossa produção do dia, empilhando-os e cobrindo com telhas.

            Chegando ao local, percebi que os demais companheiros já estavam praticamente terminando suas obrigações.

            Sozinho, apressado comecei a trabalhar, antes que as fortes chuvas começassem e então seria tarde demais.

            O Casal de vovôs do coração, terminando seu trabalho, correram me ajudar e em menos de cinco minutos havíamos terminado, junto com o barulho de água que começava a cair das nuvens negras.

            Enquanto eles correram para a casa de sua filha, eu corri me proteger dentro do forno de tijolos, que estava com a parte subterrânea cheia e a parte superior esperando para receber mais.

            Me acomodei ali no canto, já que devido o vento, pelo corredor ainda entrava um pouco de chuva,

            Não se passou dez segundos e eu tive uma surpresa inesperada: Mauro, usando uma capa plástica, tentando se proteger melhor, adentrou ao local e ao me ver, fingiu surpresa, dizendo:

            — Olha só quem está aqui!

            Se aproximou colocando as duas mãos sobre as quinas da parede, me deixando preso entre seu corpo.

            — O que você quer aqui? — especulei apavorado.

            — Conversar com menino bonitinho — riu ele.

            — Pare com isso!

            — Não se pode achar uma criança bonita?

            — Não do jeito que você acha!

            — Calma, só quero ser seu amigo!

            — Não sou o Regis! — protestei.

            — Claro que não! É o irmãozinho fera dele! Mas é mais bonito!

— Não sou o bonito que você quer! Me deixe em paz, por favor!

— Calma! Só quero conversar! Não fiz nada com seu irmão!

— Ele sabe o que você fez. Você sabe. E eu sei muito mais do que você imagina! Se estivéssemos no lugar de onde eu realmente sou, eu denunciaria você pra polícia e você seria preso.

— Ai que medo!

— Nunca mais chegue perto de meu irmão!

— Não conte pros meus pais e eu não chego perto dele.

— Já sabe que eu não contarei pros seus pais! Não por você! Mas por consideração à eles que são de boa índole.

— Boa índole! — ironizou o rapaz. — O que é isso?

— Aquilo que eles têm, mas não você! Deveria ter, pois nasceu do mesmo laço.

Ele soltou a parede e me deixando, pediu:

— Sejamos amigos?

— Prefiro não.

— Pô! Você é encardidinho, garoto! Isso é o que o faz bonito!

— Não me chame de bonito! — protestei forte.

— É só um elogio! Sem maldade.

— Sejamos neutro! Não sou seu amigo nem inimigo. Assim também será com Regis!

— Não pode decidir por seu irmão!

— Não se aproxime dele! Ele tem medo de você. O menino é puro e almeja ser padre.

— Padre? Por isso ele não fica… sabe como, né?

— Não! — neguei com raiva. — Ele não fica, porque você não é mulher e ele só tem dez anos! Pra ele o que você fez é pecado.

— E daí! Meu sobrinho tem oito e fica!

— Seu safado! — rangi os dentes. — Você mexe também com seu sobrinho pequeno?

— Claro que não! — negou ele. — Não mexo com ninguém!

— Não quero mais falar contigo! Me deixe ir embora enquanto somos apenas neutro e também a chuva já parou.

Voltei para casa ainda mais arrasado, pois nestes cinquenta anos eis uma coisa que eu nunca soube; o rapaz que mexia com meu eu era ainda pior, mexendo inclusive com o próprio sobrinho, ou poderia ser até com os dois sobrinhos, pois ali existia também outro menininho, um ano mais velho do que Regis.

Quando os dois irmãos chegaram da escola, por volta das dezessete horas, eles, principalmente José, que era mais responsável estava apavorado, imaginando que a chuva da tarde teria destruído toda a nossa produção diária.

Uma coisa que ele não sabia, era que apesar de minha aparência de irresponsabilidade (devido a pouca idade), eu sempre fora muito ao contrário disso e que mesmo que eu não tivesse corrido até lá, os bons velhinhos teriam cuidado disto para eles dois.

— Maninho, você não irá mais trabalhar naquela olaria — disse à Regis.

— Por que não? — estranhou ele.

— Porque eu não quero!

— Você não manda em mim!

— Mamãe, o Regis não irá mais trabalhar conosco na olaria — cobrei de mamãe.

— Por quê? — admirou-se ela.

— Olha só o tamanho dele! É apenas uma criança!

— E você vai trabalhar? — riu ela.

— Sim! Eu e o José.

— E você não é uma criança? — ironizou ela.

— Somos quase iguais! Porém, ele tem que ir à escola, fazer tarefas de escola e brincar.

— Você não acha que também deveria ir para a escola?

— Sim! Pra faculdade de medicina talvez! Se eu ficar mesmo muito tempo por aqui, quem sabe eu consiga ir.

— O Regis trabalha na olaria porque ele escolheu ir — alegou mamãe. — Não fui eu quem o obrigou a ir.

— Não quero que ele apareça mais por lá.

— O que aconteceu lá? — especulou-me mamãe. — Ele fez alguma arte?

O maninho me olhou apreensivo, talvez com medo de que eu contasse à mamãe o que estaria acontecendo.

— Não! — neguei franzindo os lábios para que ele visse. — Ele é um bom menino. Talvez o lugar não seja pra ele.

— Eu quero ganhar o meu dinheiro! — protestou o menino.

— Do que eu ganhar e for pra ficar comigo lhe darei a metade.

Até então, o ganho de nosso trabalho era repartido a princípio em três partes iguais, depois disso cada um dava a metade para ajudar nas despesas de casa.

— Você me dará a metade do seu dinheiro sem que eu precise trabalhar? — estranhou o menino.

— Sim! Você merece! Quero que você tenha tempo para os estudos.

— Puxa, maninho! — admirou-se ele. — Você é um carinha legal à beça!

— Então me dê um beijo!

— Eeeeh! Sai de mim, owh!

— Um beijo de amigos! De irmãos que se amam!

— Irmão não beija irmão! — protestou ele.

— Na verdade, irmão amassa irmão, não é? — ri de um comercial antigo que eu teria visto pela televisão, onde a Mônica espancando cruelmente o Cebolinha com seu coelho Sansão, o Cascão interferira dizendo: “Calma Mônica, mamãe disse que nos amássemos e não que nos amassemos”![2]

— Ihhh! — franziu o nariz. — Eu não brigo com meus irmãos!

— Concordo! E depois, quanto a trabalhar, você não ficará tão ocioso assim. Poderá ajudar nos trabalhos de casa.

Assim que ele se afastou para o banheiro, mamãe, ainda desconfiada, especulou:

— Por que você não quer ele na olaria? Ele fez algo que não deva?

— Ele não! — neguei sem mentira. — É um menininho bom! Teve pra quem puxar! Vou pro banho com ele.

É®Ê

Como nos dias seguintes o maninho não aparecia no trabalho, em uma tarde de sexta-feira, o casal de vovôs amigos, me convidou para ir com eles em seu carrinho puxado pela égua negra de nome Princesa, até às margens da Rodovia Assis Chateaubriand, sentido São José do Rio Preto, com intuito de cortar capim colonião para alimentar a própria puxadora do carrinho.

Era isso mesmo que o casal sempre fazia, sempre levando no meio dos dois, o netinho Caíque de oito anos de idade.

Naquela tarde, como o menino não quis ir, resolveu levar este outro pequeno, mesmo sem que meus pais soubessem, avisando apenas meu irmão José.

Durante a viagem de pelo menos oito quilômetros só de ida, o bom e sapeca velhinho deixou (ou de propósito) escapar um alto pum, ao qual dona Marcelina reclamou:

— Eita velho porco!

Ele apenas riu de sua travessura, acompanhado por minha exagerada gargalhada, que, me lembrando de algo, recitei:

— O peido é um telegrama que vem dos intestinos…

— Avisa o chefe bunda, o trem de bosta já vem vindo — completou ele. Depois estranhou. — Como você sabe disso?

— Digamos que eu já tenha ouvido isso a muiiiito tempo atrás, proferido por um simpático velhinho — ri, dizendo a verdade.

— Por que seu irmãozinho não tem vindo mais trabalhar na olaria? — mudou de assunto, dona Marcelina.

— É que ele é muito pequeno e tem que ir na escola.

— E você? — estranhou ela. — É grande e nem precisa ir na escola?

— A senhora está com saudades dele?

— Nós dois estamos! — alegou ela.

— Você é o culpado de a gente sentir saudades dele — foi incisivo o bom vovô.

— Eu!? — estranhei. — Por quê?!

— Quem foi o responsável por aprisionar os corações desses dois velhinhos chatos aqui?

— Como assim?

— Você roubou nossos corações! Agora a gente fica só com aquela dorzinha de tantas saudades dos dois.

— Não liga não! — fui incisivo. — Vocês podem contar comigo!

— E o Regis! — insistiu o homem. — A gente tem saudade dele também!

— Vocês têm a mim! Sou igualzinho a ele! Façam de conta que eu sou ele.

— Não é o suficiente! Nossos corações se alegram estando com você, mas ainda sente que falta um outro pedacinho.

— Eu posso ir com ele passear em sua casa? — pedi, já sabendo com certeza a resposta.

— Você jura que irá levá-lo lá? — alegrou-se dona Marcelina.

— Claro que sim! Vocês são nossos vovôs do coração!

— Somos? — riu o homem.

— Sim! A gente tem os avôs que a vida nos deu, mas podemos ter os avôs que o coração escolheu.

— Você é muito inteligente, garoto — se emocionou a mulher. — É muito especial.

— Inteligente todo mundo é! Especial também! Cada um tem seu jeito especial de ser.

— Está vendo! O que você acabou de falar, demonstra que você é ainda mais inteligente do que a gente imagina — alegou ela, ao qual eu apenas ri. — E o seu jeito especial é o de ser um anjinho em nossa vida!

— Não sou tão anjo assim! — neguei. — Salvo pelo nome. Por trás de minha áurea de anjo, tenho meus capetinhas também! Todas as crianças têm os seus.

— Depois eu ensino aonde fica minha casa, pra você levar o outro capetinha lá com você — ironizou o velhinho.

— Eu já sei aonde fica a casa do senhor.

— Como sabe?

— Digamos que meu capetinha me ensinou.

— Quando você irá levar o Regis em nossa casa? — quis saber a mulher.

— Quando a senhora deixar!

— Todos os dias!

— Não é bom irmos todos os dias — neguei.

— Por que não?

— A senhora cansará da gente.

— Não cansarei de quem eu adoro não!

— É bom que todos nós sintamos um pouquinho de saudades — lembrei-me de cenas do filme “O Pequeno Príncipe”. — Assim a visita se tornará uma alegria muito maior.

— Um dia inteirinho de saudades já é o suficiente para uma alegria maior — foi incisiva ela.

— Iremos amanhã à noite. Pode ser?

— Não dá pra ser hoje? — insistiu ela.

— Vou judiar um pouquinho de nossos corações. Principalmente do maninho. Porque eu vou contar pra ele hoje e só leva-lo amanhã.

— Está bem! — concordou ela. — Vou aguentar.

— E quando o Caíque não puder ir com vocês cortar capim, às vezes podem levar o Regis.

— Ele irá? — especulou o homem.

— Se irá?! Morrerá de inveja quando eu contar que fui com vocês! O maninho só montou em um cavalo quando tinha menos de quatro anos de idade.

— E você? — estranhou o homem.

— Também!

 

[1] Instituto Nacional de Previdência Social. Mudou depois para INAMPS: Instituto Nacional de Assistência Médica e Previdência Social. Atualmente quem controla é o SUS: Sistema Único de Saúde.

[2] Obrigado ao Maurício de Souza por me emprestar seu comercial.


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