Através das barreiras do tempo escrita por Celso Innocente


Capítulo 15
Maravilhas que o homem destruirá.




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— E a pilha? — lembrou Regis.

— Ainda tem bastante! Depois que acabar, ficaremos sem ela até que eu adapte alguma coisa.

— Ada o quê? Menino? — ironizou o homem.

— Adapte! Aprendi com papai!

 — Você não tem nove anos!

  — Vou fazer dez!

 

Maravilhas que o homem destruirá.

 

            Sentei sendo acompanhado por Regis sobre a ponte pênsil, deixando os pés balançando sobre o espaço abaixo dela. Titio resolveu:

            — Vou esperar por vocês lá na lanchonete. Acho que não terá perigo de caírem dentro de nenhuma cachoeira. Não é?

            — Pode ficar tranquilo, tio — concordou Regis. — A gente não vai pular lá dentro.

            — Se um de vocês caírem aí dentro a vó de vocês me mata.

            — Não vamos nos suicidar, tio — neguei. — A vida é muito bela pra esse desperdício.

            — Vocês sabem por que a sua avó tem tanto medo? — questionou-nos o homem.

            — É que o tio Anselmo caiu nas pedras e morreu no hospital — afirmou Regis.

            — Isso! Ele trabalhava na pedreira e teve um grave acidente. Caiu de mais de dez metros de altura. Isso agravou a doença da mãe. Foi a partir daí que ela acabou de ficar cega.

            — Nós nem conhecemos o tio Anselmo — alegou Regis.

            — Faz nove anos que ele morreu. Vocês teriam acabado de nascer.

— A empresa que ele trabalhava indenizou nossos avós? – questionei curioso.

— Você disse que tem quase dez anos? – riu titio Osvaldo, depois virou-se e sem responder o que lhe perguntará seguiu para a lanchonete. Com certeza iria beber uma cachacinha.

Nós dois levantamos, seguindo para o final daquela ponte, atravessamos pelas pedras margeando a longa queda de água e em seguida tomando outra ponte pênsil, continuando contemplando aquela maravilha que reluziam em nossos olhos, com o reflexo do sol sobre as águas que pareciam milhões de litros de espumas brancas, que despencavam por mais de vinte metros de altura, contracenando com o prateado da água mais calma, metros distante de sua queda.

            Tornamos a nos sentar próximo a aquele precipício, sentindo a brisa suave que as pedras jogavam para o alto, nos deixando, sem que percebêssemos de início, até molhados aos poucos. Mas não importava.

            — Você nunca esteve aqui. Não é, Regis?

            — Que eu me lembre, não!

            — Você só viria por aqui aos quinze anos de idade. Acho que aos poucos estou mesmo alterando seu destino.

            — E daí? — deu de ombros ele. — O que pode acontecer?

            — Não sei! Acho que nada! É só você não morrer aqui nas pedras que não tem problemas nenhum!

            — Se eu morrer aqui, a mãe mata você também!

            — Nem precisa! — ri, embora achando engraçado. — Se você morrer aqui, eu deixarei de existir na mesma hora.

            — Como seria isso?

            — Sei lá! — dei de ombros. — Acho que viraria névoa na mesma hora. Espero que você não faça isso pra testar.

            — Eu não, owh! Morrer não é comigo não!

            — Pelo menos por mais cinquenta anos você estará bem! Eu acho!

            — Boa notícia.

            — Por outro lado, eu acho que mesmo que você deixar de existir eu continuarei aqui, porque sou outra matéria, já ocupei tal espaço que não deveria.

            — Ops! Sai fora, meu!

            Voltamos a sentar sobre a ponte pênsil, quase em seu início, onde permanecemos contemplando aquelas maravilhas.

            — Você acredita em Deus? — perguntei ao maninho.

            — Oh how! Você é maluco! — reclamou ele, girando o dedo indicador sobre a orelha.

            — Por quê pergunta? Minha maluquice vem de você!

            — Perguntar a um menino que quer ser padre se ele acredita em Deus. O que você acha?

            — É! Acho que é espécie de pleonasmo.

            — Pare de querer falar complicado! — ironizou o menino. — Fale igual criança! Pelo menos comigo.

            — Você quer ser padre, por que acha que assim já terá um ingresso para o céu?

            — Ãh! — não entendeu ele. — Ingresso?!

            — Você acha que todos os padres… e pastores evangélicos vão para o céu?

            — O padre é um homem de Deus!

            — Deveria ser! Acontece que muitos se escondem embaixo da batina para cometer coisas terríveis!

            — Pare de falar coisas assim! — reclamou o maninho. — É um pecado!

            — Não, querido amiguinho! Muitos padres… não a maioria, mas muitos usam a batina para atrair garotinhos inocentes, como se fossem brinquedinhos.

            — O quê?!

— Não vou entrar em detalhes. Você é muito inocente pra isso. Na época do holocausto judeu, dizem que até o Vaticano sabia das atrocidades com que um único homem mandou executar seis milhões de pessoas.

— O que é… holo…causto? — franziu o nariz, Regis.

— Houve um alemão por nome Hitler, que decidiu que o mundo deveria ser formado por apenas uma raça, os arianos. Que todas as crianças deveriam ser loirinhas como você e eu somos. Sendo assim ele começou a dizimar, primeiro os judeus…

— O que é dizimar?

— Matar sem sobrar nenhum. Imagine assim como os índios. De repente alguém decide matar todos eles para que não exista mais a espécie indígena. Isso é dizimar.

— Então o holo…causto mandou acabar com todos os que não eram loiros?

— A princípio sim com os judeus. Os judeus eram muito unidos e a maioria ricos. Geralmente donos de lojas, principalmente de roupas. Os alemães começaram a roubar todos os pertences dos judeus e os levarem para campos de trabalho forçado, onde eram obrigados a isso até ficarem doentes, depois os executavam sem piedade.

— E as crianças? — ficou ansioso o maninho.

— Tinham o mesmo destino. O coração duro do tal “ser humano” não media idade. Podiam ter dez ou trinta anos, eram considerados por eles como subespécie…

— Subespécie… — balançou os ombros, Regis.

— Às vezes até menos. Quantas mães foram para a câmera de gás com seu bebezinho no colo!

— O que é câmera de gás?

— Um local fechado onde deixavam as pessoas completamente nua, pensando que era um chuveiro e morriam inalando um gás tóxico.

Pensei um pouco e decidi:

— Mas não era sobre isso que estávamos falando! Falávamos sobre padre. Que também não era o assunto. Falávamos sobre Deus! Porque eu queria que você enxergasse Deus nessa natureza linda, que ele nos deu de presente.

— É! — concordou ele. — Por isso que eu amo Deus.

— Só que pra amar Deus de verdade, primeiro você precisa amar o homem!

— Ãh! — estranhou o maninho, como quem pensa “como é que eu vou amar o homem se eu sou homem! Só se eu fosse viado!”

— Não é esse amor que você pensou que eu quero dizer, maninho. É o amor de união, respeito mútuo. Pra amar a Deus você precisa amar os seus irmãos, os seus pais…

— Eu amo os meus pais!

— Quantas vezes nestes últimos nove anos você disse isso a eles?

— Uhm! — acho que mais uma vez o maninho pensou “não é preciso dizer, basta agir, amar”.

— Quantas vezes você já abraçou o seu pai e a sua mãe?

— Meu pai e minha mãe nunca abraça a gente!

— Eu sei! Mas eu não perguntei isso! Perguntei quantas vezes você os abraçou! – fiz questão de dar forte ênfase no pronome pessoal.

O menino franziu o nariz, depois balançou os ombros. Então continuei:

— Hoje de manhã, quando mamãe queria bater em nós dois, eu a chantageei dizendo que a amava muito. Ela só me bateu pra demonstrar que tem poder de mãe. Porém me deu uma cintada tão forte que nem minhas roupas perceberam. Não há mãe que resista o carinho de um filho.

— O que tenho que fazer? Quando mamãe for me bater, devo chant… chanta… esse negócio ai que você falou!

— Eu não a chantageei de verdade. Disse o que sinto de verdade. Quando papai chegar em casa à tarde do trabalho, ele estará cansado e sequer se lembrará que tem filhos que adorariam um abraço. Porém, se estes filhos se lembrarem que o papai também adora abraços e tomarem a iniciativa, pode ter certeza que ele não irá ficar bravo.

— Por que você fala estas coisas? — estranhou o maninho.

— Eu vim do futuro pra cá, graças a dádiva concedida a um amigo. E eu vim com um propósito ao qual não posso revelar.

— O que é?

— Se eu alterar coisas aqui, posso estar interferindo na integridade de minha família, que espera por mim lá no futuro.

— Você vai voltar pra lá?

— Eu preciso voltar!

— Quando?

— Não sei! Nem quando e nem como!

— Você veio pra cá com uma… — não lembrava a palavra, Regis.

— Missão? — ajudei-o. — Não foi bem por isso! Vim pra matar minha saudade de infância. Mas quero aproveitar e tentar consertar coisas, sem interferir no meu futuro.

Levantei os pés do vão entre os cabos de aço que amarravam as madeiras da ponte e por fim, puxando o maninho, levantamos e ele bateu as mãos em minhas costas, gritando:

— Quem chegar do outro lado por último é a mulher do padre!

E saiu correndo.

Só o alcancei quando ele já parava diante da lanchonete.

— Vou ser sua mulherzinha? — ironizei, agarrando-o, imitando homossexual. — Meu padrezinho querido!

— Sai de mim, owh, bicha!

Entramos na lanchonete em busca de titio Osvaldo, que, em pé ao lado do balcão tomava uma dose de… cachaça.

— Querem um guaraná? — ofereceu-nos ele.

— Não titio, obrigado — agradeci. — Queremos ir embora.

— Queremos sim! — foi incisivo o maninho. — Estou morrendo de sede!

— Quem tem sede bebe água! — ironizei.

— Dê um guaraná e um salgado aos meninos — pediu titio ao barman.

Pegamos um refrigerante e um pastel de carne moída cada um e sentamos ao lado de uma mesa de madeira para saboreá-lo.

Estas guloseimas na vida de Regis, era coisa rara. Em sua casa de pobre, refrigerantes só existiam nas datas de natal e dia de ano bom. Por isso, é claro que ele não resistiria tal oferta.

₢₢₢

Depois de almoçarmos na casa de vovó, convidei o maninho para visitar toda a chácara. Afinal este era o meu objetivo de estar ali. Matar a saudade de tal local encantado.

Saindo pela porta dos fundos nos deparávamos com um grande quintal lateral da casa, com pelo menos uns vinte metros na largura.

Descendo para os fundos, o terreno sumia por mais uns cento e vinte metros de terra muito escura, cheio de pés de frutos de toda espécie imaginável.

Caminhando por baixo daquelas lindas árvores, chegamos à horta, com dezenas de canteiros de hortaliças entre verduras e legumes, tais como alface, almeirão, tomate, cenoura, beterraba, rabanete, pimenta doce, cebolinha… tudo muito bem cuidado por vovô Alfredo, que, apesar de ser domingo, estava ali, cuidando tranquilamente de suas preciosidades.

Dividindo o terreno de horta, passava uma pequena vala onde servia para escorrer o excesso de água, quando os canteiros eram regados com um regador manual, com água colhida de um pequeno poço lotado até a boca.

— Maninho – chamei a atenção do outro menino. – Uma vez meu primo me falou que a minha chácara era igualzinha a essa. Só agora, estando aqui eu percebi que realmente é. Que bela dádiva.

No canto de um de seus canteiros de almeirão, percebi uma plantinha que vovô não cultivava. Teria nascido de atrevida por ali. Cortei uma de suas folhas, limpei-a com cautela e levei na boca, apreciando seu sabor mais amarga do que almeirão.

Quando vovô viu aquilo, tomou-me tal plantinha, gritando:

— Isso não é de comer, moleque! Quer se envenenar?

— Vovô! — achei engraçado seu espanto. — Isso aqui é uma delícia! Não é veneno e o senhor deveria plantar pra vender!

— Isso não se come! É bom subirem. Na horta não é lugar de moleques.

Tornei a cortar duas folhinhas, mastiguei uma delas e entreguei a outra ao velhinho, pedindo:

— Come uma, vovô. Garanto que vai adorar! Se chama rúcula e em nossa casa comemos sempre.

Ele amassou a plantinha, jogando-a fora, protestando:

— Vai comendo tudo o que você encontra que qualquer hora cai mortinho por aí!

Continuamos caminhando até a divisa aos fundos da chácara, nos deparando com um pequeno rio de águas muito limpas, o qual mais uma vez me fez concordar com meu primo lá do futuro: de fato esta bonita e aconchegante chácara do vovô Alfredo é exatamente igualzinha aquela em que minha família ainda está vivendo, perdidos em um tempo remoto.

            Este pequeno rio fazia então nossa alegria, pulando de um lado a outro, paquerando a agilidade dos pequenos lambaris, que fugiam de nossos olhares sob as águas, até que… Regis, escorregou caindo dentro, se molhando dos pés à cabeça.

— Que porcaria! — gritou ele.

Eu ri extravagantemente, até chamando a atenção do vovô que ficara acima e emendei:

— E agora? Como você vai fazer? Não trouxemos nenhuma roupa.

Ele pensou um pouco, olhou para todos os lados e como não tinha ninguém por perto, além de vovô, se despiu, ficando apenas de cueca, pendurou em uma pequena árvore a roupa, que, além de molhada estava suja de barro preto, e… já que estava mesmo molhado, continuou pulando dentro do riacho, tentando me molhar também.

— Viu só como é bom usar cueca de vez em quando! — insinuei.

Claro que eu fugia dele, evitando ser alcançado por suas traquinagens. Não estava a fim de molhar minha única roupa.


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