Matsu escrita por Zatanna


Capítulo 2
Dois — Oboeru


Notas iniciais do capítulo

Mais um capítulo. :)



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Já sozinha e voltando para casa, Chihiro observa o céu e respira profundamente. Os seus olhos amendoados percorrem todo o azul borrado de nuvens brancas bem acima de si, ainda remoendo as respostas que deu a Tomoko. Ela sabia que esperava alguma coisa, mas continuava a não entender o que era e, no fundo, tinha ciência de o quanto aquilo a consumia e entristecia.

Se ao menos soubesse o que era, talvez fosse mais feliz. Contudo, seria a ignorância a felicidade dos homens? Ou a cegueira seria o tormento dos tolos? Ainda sem uma resposta clara sobre que destino tomar para si e que vida a esperava assim que acabasse o kokou³, Chihiro olhou para baixo, para um caminho em que ouvia risadas altas e espíritos aventureiros.

Atsushi e Daichi estavam lá embaixo, empurrando-se e desbravando aquele caminho que reconhecia de um passado distante. Ela se lembrava de ter se perdido por ali, ao lado de seus pais, quando chegaram pela primeira vez na cidade pacata. A sua casa, outrora azul, agora tinha tons de creme e estava a somente alguns metros à sua frente. Somente poucos metros.

Entretanto, Chihiro queria entender porque se sentia tão atraída – mesmo com todos os rumores e perigos – por aquele lugar. Sem demorar muito, montou na bicicleta que levava pela mão e voltou o caminho até chegar a saída que desembocava na estrada abandonada.

Parou por alguns segundos, incerta se tomava uma decisão sábia. Tomoko definitivamente a mataria se saísse daquela situação viva, porém, se já não conseguia decidir mais nada além de esperar, que tipo de pessoa Chihiro iria se tornar? Sempre fora muito ativa, tomando iniciativas, por que decidir estagnar se podia, de alguma forma, fazer algo por si?

Ela não aguentava mais esperar; ela queria descobrir.

O caminho era cheio de percalços e, por algum estranho motivo, os buracos pareciam maiores e sua velocidade, ainda que não mais pedalasse, parecia cada vez mais rápida. Segurou-se com força no guidão da bicicleta, preocupada em cair.

De relance, pôde ver pequenos templos no meio das árvores, em que espíritos poderiam morar. Viu uma estátua estranha que sorria de ponta a ponta perdida na grama alta. Não quis parar para interrogar o estranho objeto.

Ainda veloz, sem entender o motivo, Chihiro se questionou se aquela ladeira era tão pouco íngreme para não notar que descia. Tudo passava realmente muito rápido. Quase gritou, quando percebeu mais à frente uma estátua. Com toda a força que podia, forçando os nós dos dedos até ficarem vermelhos e depois brancos, Chihiro conseguiu parar a bicicleta.

Mais um segundo e mais um centímetro, teria colidido no grande sorriso do espírito esculpido.

Respirou algumas vezes; profunda e levemente. Ela estava viva, embora estivesse assustada o suficiente para querer recuar. Contudo, Chihiro se manteve firme, apertando o guidão outra vez. Com mais força do que quando corria risco de vida.

Ainda não corria?

Saltando da bicicleta e a deixando ao lado do túnel. A menina encarou a entrada que sugava o vento. O breu a impedia de enxergar qualquer coisa além e a coragem que havia armazenado para a jornada, aos poucos, desaparecia.

Sentiu sua cabeça ser puxada para trás; uma vez e depois outra. Quando deu um passo à frente, mais determinada a seguir do que antes, como se uma mão invisível a puxasse pelos cabelos, Chihiro caiu sentada no chão.

Confusa e perdida, um tanto aturdida, ela pôs a mão no elástico que prendia seus cabelos. Sentindo certa dificuldade, usou todos os dedos que dispunha para trazê-lo diante de seus olhos.

O prendedor estava quente e brilhava em um roxo acetinado, como nunca tinha feito antes, nem mesmo à luz do Sol. Os cabelos dela caíram em cascata pelos ombros e pelas costas, Chihiro raramente deixava-os soltos, porém, naquela ocasião, o que os prendia parecia querer se rebelar.

Embora aquela reação de seu elástico fosse estranha e medonha, somente deu a moça mais força e vontade para seguir em frente. Algo estava ali, ela podia sentir em seu coração que batia aceleradamente, em expectativa. Respirou profundamente mais três vezes, antes de prender a respiração e entrar no túnel.

Por algum motivo, sempre que tinha que fazer uma travessia, Chihiro parava de respirar. Por algum estranho motivo, ela acreditava que isso impediria qualquer coisa de atacá-la e, mais ainda, vê-la.

De que lugar tinha tirado essa ideia, também não sabia. No entanto, sentia que a ajudava a ultrapassar desafios e se sentia reconfortada com a possibilidade de parecer invisível, ainda que por um segundo.

Ou dois; ou mais. Antes que pudesse perceber, Chihiro havia ultrapassado o túnel e vislumbrava um lugar que lhe passava uma sensação agridoce. Era uma localidade estranha, quase a lembrava uma estação – ou qualquer ambiente feito para quem espera—; várias colunas seguravam a estrutura em arcos que a menina estava, todas elas possuíam diversas luminárias repletas de poeira. Próximo as paredes, muitos bancos puídos e corroídos por traças e todo o chão contava com folhas secas. Havia algumas janelas que deixavam a luz do sol entrar, todas coloridas por vidros de quatro cores diferentes: azul, vermelho, amarelo e verde.

Ainda que o ambiente fosse assustador, havia vida naquela solidão em que o Sol entrava sem permissão. Mais à frente, Chihiro viu um umbral, sem porta que pudesse fechar. Sem demorar mais do que precisava, caminhou à direção da luz, tendo uma agradável surpresa que fez seu coração apertar. 

A grama baixa e esverdeada contrastava com o brilhante azul do céu; o ar era ainda mais puro do que de onde morava e isso a trazia um conforto que não sabia explicar, somente sentia. Seu coração palpitava como se já estivesse ali, sentindo o mesmo vento batendo nos seus cabelos soltos.

Mas era impossível, não? Diversas estátuas do mesmo espírito estavam ladeando uma passagem que dava para inúmeras casas mais a frente; algumas inteiras e outras pela metade. Chihiro ouviu um barulho de vozes e reconheceu a de Atsushi. Sem demorar, correu para alcançá-los, por alguma estranha razão, sabia que não poderiam ficar ali até o pôr-do-sol.

Enquanto caminhava, viu ao seu lado a si mesma, parecia incomodada e assustada com alguma coisa. De repente, a pequena Chihiro correu à direção da mãe, alguns anos mais jovem do que era agora, e seu pai que parecia empolgado. Ao contrário dos dois, ela parecia preocupada, como se esperasse que algo fosse ocorrer.

Agarrou o braço da mãe e, por um segundo, deu-se conta de que aquilo não era o presente, mas um passado distante. Ou não tão distante quanto parecia. Se pudesse calcular o tempo ou precisar algum período, diria que tinham se passado oito anos, mais ou menos. Seus olhos perceberam uma movimentação a frente, enquanto seguia a si mesma e seus pais que paravam para sentir o cheiro de alguma coisa.

— Chihiro?

A imagem à sua frente desapareceu, somente as pedras cheias de musgo apareciam em sua visão junto ao pequeno rio que parecia nunca ter fluído. Mas se não tinha, por que as pedras tinham àquela camada verde?

A voz de Daichi sobressaiu a do amigo, quando – muito próximo de Ogino – questionou contente:

— Chihiro, você veio com a gente mesmo?

A moça não sabia se dizia a verdade, que a curiosidade queimava a sua alma, ou se dizia ter vindo pelos amigos loucos. Por conta disso, preferiu guardar aquele segredo para si, sem responder à questão que havia sido feita, fingindo precisar de ajuda para escalar as pedras musgosas.

A mão de Daichi a puxou para cima, para a escada de pedras lisas. Quando subiram mais alguns degraus, pôde vislumbrar um ambiente totalmente adverso ao clima campestre de antes. Diversas casas, das mais sinuosas cores e formatos, apareciam à sua frente; uma leve dor no peito foi sentida, no mesmo lugar em que havia depositado, no bolso da blusa, o elástico.

O objeto parecia reagir a cada passo que dava para dentro daquele parque temático. Por quê?

Recordou-se, de súbito, de quando havia chegado a cidade. Seu pai havia errado o caminho e parado naquela mesma estrada. Eles tinham entrado no túnel, feito aquela mesma rota. Lembrou-se ao vislumbrar a rua cheia de restaurantes que pareciam estar fechados, ainda que um cheiro agradável de comida se espalhasse pelo ar.

Piscou algumas vezes, quando finalmente percebeu que ela já tinha estado ali, com seus pais. Não olhe para trás; mais uma vez a voz veio preencher sua mente, porém, agora conseguia rememorar o tom grave e masculino, meio infantil.

— Esse cheiro está muito bom, Daichi. Não acha, Chihiro? Que tal irmos ver que cheiro é esse?

— Não.

A voz dos dois perfurou as suas lembranças, fazendo-a rever o carro coberto de folhas e a mudança que parecia ter chegado há dias. Mal se recordava disso, ainda que sua família vez ou outra comentasse sobre esse mistério, aparente e finalmente, com alguma solução.

— O que quer dizer com “não”, Chihiro?

Atsushi sempre fora muito gentil com ela, e não poderia negar que, se tivesse de ter algum relacionamento, o menino magro, alto e de cabelos escuros seria o par ideal. Contudo, ele não era quem ela esperava.

Chihiro olhou à direção do túnel, antes de voltar a falar para os dois, antes de voltar a se preocupar com a segurança dos dois:

— Eu já estive aqui — disse, como se revelasse um segredo que não poderia ser remexido. — Eu já estivesse nesse mesmo lugar, há quase oito anos atrás, e eu não lembro como sobrevivi, mas eu sei que devemos ir embora agora e não podemos comer nada.

Os dois a encararam por algum tempo. Daichi pensou em levar na brincadeira, muito embora soubesse que Chihiro não parecia fazer o gênero cômico. Nunca tinha feito, em todo o tempo que se conheciam. Atsushi, por sua vez, levava cada palavra da amiga como se fosse uma ordem.

Entretanto, aquela ordem parecia muito confusa.

— O que você está dizendo, Chihiro?

— Atsushi, eu já estive aqui! — exclamou um pouco alto demais, olhando desesperada para o céu, observando as nuvens brancas se tornarem corais, aos poucos. — Quando a gente chegou, eu e meus pais, ele errou o caminho e nós paramos aqui. Você lembra? Meus pais sempre comentam como parece que a gente se perdeu por dias para chegar até aqui, de tão longe. Eles não estavam brincando, a gente realmente chegou dias depois da mudança, mesmo saindo antes da nossa antiga casa.

— Você está falando sério, Chihiro? — debochou Daichi, sem realmente acreditar, ainda que os pelos de sua nuca eriçassem.

— Eu nunca brincaria com algo assim — respondeu, irritada. — Atsushi, você lembra dessa história! Nós nunca lembramos o que aconteceu, nós nunca soubemos o que aconteceu...

— E você lembra agora?

A pergunta a pegou desprevenida, porém sabia que a intenção do amigo era ajudá-la em seu discurso bagunçado e não, atrapalhá-la ainda mais. Mordendo o lábio nervosamente, ela olhou para o lado, tentando lembrar.

Qualquer coisa.

— Meus pais seguiram o cheiro da comida, desesperados de fome — falou, sem perceber, seguindo a Chihiro mais jovem e os pais que cheiravam o ar. Os dois atrás dela a seguiram. Logo, a volta deles, diversas barracas pareciam ter comidas prontas em seus balcões. Chihiro estagnou, segurando o braço de cada um dos amigos. — E comeram. Comeram tanto que se transformaram... Eu não lembro no que era... Mas não podemos comer isso, devemos sair daqui agora.

A urgência ressoava na voz dela, tão profundamente, que Atsushi somente assentiu, observando o céu acima de si. Chihiro perdida nos fragmentos de memória, encarou a menina que caminhava até um grande monumento vermelho, sem entender o que era.

— Vamos embora, Chihiro, está escurecendo — sussurrou o amigo de cabelos escuros. — Você está certa, isso é muito estranho.

— Sim. — Daichi concordou com a cabeça. — Vamos embora.

Os dois se desvencilharam dela, esperando-a ir atrás deles. Quando Chihiro deu alguns passos na direção dos dois, eles não pensaram que a menina não viraria junto, por isso, seguiram em viagem para retornar ao túnel. No entanto, ao contrário deles, sem conseguir reter a curiosidade, a garota subiu a escadaria até o monumento vermelho.

Por alguns segundos, ela não entendeu o que encarava, pois havia perdido a pequena Chihiro, até ouvir um barulho muito baixo de trem. Virou o rosto para a direita e se aturdiu quando percebeu uma grande yuna baro[1] bem diante de si.

Pequenas imagens se formaram em sua mente quando caminhou à direção da ponte, perdida e desesperada em busca de algo. Ela sabia que tinha achado alguém muito precioso naquele lugar.

Olhou atenta para todos os lados, percebendo que o som do trem vinha debaixo de si. No entanto, ao contrário da garotinha que corria de um lado ao outro da ponte, a mais velha permaneceu parada, esperando.

Até que, ao olhar para o lado, Chihiro viu um menino, não tão mais velho que ela, encarando-a. Seu coração bateu tão acelerado, que a moça não teve tempo de processar a situação antes de cair sentada no chão.

Os olhos esverdeados do menino tinham o exato tom do lápis que mais cedo chamava-lhe atenção. O corte reto da franja e do resto do cabelo preto também lhe pareciam muito agradáveis e comuns a si, ainda que nunca tivesse visto alguém usando aquele penteado.

— Kohaku.

Sussurrou o nome como se fosse um apelo de uma amante. Algumas memórias voltaram à sua mente; outras ainda jaziam perdidas no seu inconsciente. Enrubescida, Chihiro se levantou e percebeu que, mais um segundo, ela estaria presa de novo àquele lugar.

 Sem Haku. Ou melhor, sem Kohaku, será que ela sobreviveria? Recordava-se de algumas coisas, mas poucos nomes vinham à sua mente. Havia uma idosa. Ela se chamava Kamaji? Não, não fazia sentido. Lin? Também não era. Zeyuba. Não, estava misturando as coisas. Era ela quem havia prendido Chihiro naquele lugar, ela era o perigo.

Mas qual era o nome daquela mulher?

A moça pôs a mão na cabeça, com uma dor calcinante, sentiu seu peito queimar por conta do elástico. Abaixou-se, uma leve vertigem tomou conta de seu corpo que, aos poucos, transformou-se em uma névoa espessa.

Chihiro caia, não ouvia o seu nome sendo gritado do outro lado do rio. Dos meninos confusos com a água que subia rapidamente e os afastava daquele mundo apagado que ganhava pontos luminosos, um de cada vez. Sem saber que, agora, a amiga deles estava presa no mundo dos espíritos, ainda que estivesse viva.

Sem saber que a amiga estava, mais uma vez, presa daquele lado.

 

[1] O mesmo que casa de banho, também serve o termo Sentou – ainda que, pelo que me pareça, a casa de banhos da Yubaba seja uma referência as antigas casas de banho japonesas que se assemelhavam, de certa maneira, aos prostíbulos.


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Notas finais do capítulo

Espero que curtam. :)

Oboeru significa "lembrar, recordar ou até aprender", mas o sentido desejado é "lembrar".



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