A Última Peça escrita por truthbullet


Capítulo 3
Capítulo 3 — Lôbrega terapia;


Notas iniciais do capítulo

Palavras usadas:

Lôbrego -
em que há pouca ou nenhuma claridade; escuro, sombrio.
p.ext. de aspecto soturno; funesto, lúgubre.
fig. que infunde pavor; tétrico, assustador.

Irrefutável - não refutável, que não se pode refutar, que não se pode contestar; incontestável, irrefragável, irrespondível.


Boa leitura!



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/748836/chapter/3

Coisas comuns costumam ser problemáticas. Coisas problemáticas, comuns.

 

Eventualmente, chegou àquela realização. Jamais expunha suas fraquezas, por vontade própria, a meros estranhos; isso era o que a tornava tão capaz de manter-se séria independente do que fosse proposto. Nenhum problema era suficiente para abalá-la, distante e profissional como era.

 

Por isso, não se importava em expôr sua nudez para o homem que se levantava da cama.

 

“Tenho que ir, detetive. Coisas de mafioso.”, ele disse, jogando o casaco largo sobre os ombros. Era nítido que a última parte se tratava de uma brincadeira referente ao passado, então não se incomodou. “Vai ficar bem?”

 

“Vou.”, o murmúrio frio de resposta passou despercebido. Provavelmente, perturbaria-se com isso mais tarde, mas agora, assentiu, saindo pela porta com a rapidez de uma abelha.

 

Sozinha na imensidão de seu quarto, se conformou em observar os raios nascentes de sol entrando pela janela. O nó tinha ganhado uma forma diferente, mais tênue e desfiada, emaranhando-o em um quieto e escuro arame farpado.

 

A noite anterior serviu bem para afrouxá-lo. Não pelo prazer, não, este era inexistente, assim como qualquer sentimento de atração. Poderia tê-lo visto como via qualquer um, se não tivessem se conhecido justamente quando ambos os lados buscavam alívio de seus problemas.

 

De certa forma, era um alívio. Esquecia de seus problemas por alguns instantes e se sentia menos pior consigo mesma. Não sabia bem como se explicar, só entendia que sexo reduzia a turbulência dentro de sua cabeça e, diferente do que achara desde a adolescência, não era assustador ou doloroso. Era como um acordo.

 

Encerrando o raciocínio, suspirou, colocando-se em pé. Por algum motivo, o dia já parecia positivo.

 

A primeira tarefa a ser executada foi pôr café pra passar. A segunda, resolver o caso, que fluiu por suas mãos feito a correnteza do Rio Tibre. Tratando-se de humanos comuns, cercados por clichê, os casos eram surpreendentemente mais fáceis.

 

Agora com uma xícara em mãos, retornou ao quarto e apanhou a próxima pasta. Lendo a primeira página, franziu o cenho.

 

Família Kazayaki, dizia a primeira linha, na caligrafia rápida que dificilmente mostrava ao mundo. Abaixo dela, uma sequência de anotações rápidas, ditando possíveis localizações, características, a tal tradição e quase nada sobre seus líderes.

 

Assim como com o reality show, colocou tudo de si naquela busca, e seguindo o mesmo, encontrou pouco. Sobre a geração atual, tinha o suficiente para efetuar uma prisão, mas quanto às antigas, apenas suspeitas e evidência superficial.

 

E foi exatamente por ter sentido um nível novo e perigoso de frustração com a falta de provas, que deixou a pasta de lado por bastante tempo.

 

Tempo desperdiçado. Essa noção a atingiu, fina e venenosa como a picada de um escorpião. Respirando fundo, puxou os outros casos para um fichário mental, e apanhou o celular deixado de lado.

 

Aquela seria uma semana agitada.

 

— — — — — 

O som de um tiro a despertou de seu estupor.

 

Teria a atingido, talvez, se fosse um apontado em sua direção. Mas não, ele veio da janela — soube disso pelo vidro estilhaçado —, no instante em que se virava para fazer qualquer coisa. A bala abriu um buraco na mão atingida, também segurando uma arma, que caiu no chão num movimento involuntário do quase-atirador.

 

Naquele momento, viu a brecha perfeita. Algum instinto lhe disse para correr e algemá-lo ali mesmo, mas outro rapidamente o freou, lembrando daquele hábito de manter várias armas consigo. No calor do momento, seu peito se amargou com a comparação, e a mão que puxou a pistola de dentro do sobretudo mirou com mais exatidão que o normal.

  

“Coloque as mãos para cima e não toque na arma.”, disse, firme, naquele tom que mostrava, com todas as letras, que não hesitaria. Atrás do homem ajoelhado, Bertuolo abriu a janela arruinada e pulou para dentro, retomando a postura defensiva. Uma troca de olhares com a detetive foi suficiente para que ambos entendessem que estavam bem, na medida do possível.  

 

Sob a mira de dois canos diferentes, ele levantou, espiando a detetive com um olhar indecifrável. Tentando lê-lo, encontrou, na indiferença da derrota, a impressão de que ele achava aquilo divertido.

 

Então, ergueu as mãos atrás da cabeça, devagar. Por um instante tenso, o cenário se congelou dessa forma, até Bertuolo sair do choque e se aproximar para algemá-lo. Não interferiu, somente mantendo a postura atenta até que as mãos dele estivessem presas.

 

“Cinco minutos, detetive.”, seu parceiro disse, ciente de que somente ela entenderia. Karen assentiu, suspirando. Em pouco menos de duas horas, conseguiram cumprir o objetivo muito bem.

 

A mulher encontrada apenas encarava, paralisada em seu lugar. No automático, passou a encará-la, também. “Senhora, eu precisarei que nos acompanhe. Seu marido está sendo indiciado por diversas acusações…”

 

— — — — —

Quando irritado, Mitsuru soava como um verso deslocado.

 

Em contraste ao anterior emudecimento na linha telefônica, agora, ele parecia, acima de qualquer coisa, aflito.

 

Dessa vez, os olhos que sempre se comunicavam tão bem pareciam em hemisférios opostos.

 

“Você podia ter se ferido de verdade.”, falou, com o cenho franzido e voz séria a ponto de entoar letalidade.

 

“Poderia. Estava ciente dos riscos.”, não conseguiu compreender, exatamente, qual o motivo para sua raiva. “É a natureza do meu trabalho.”, fez uma pausa. “Já foi informado anteriormente, mas estou ilesa. Não precisa se consternar.”

 

O garoto respirou fundo, como se a informação o fizesse se forçar a se acalmar. Vê-lo daquela forma fazia o nó dar uma volta estranha. “Mas podia ter acontecido.”, murmurou. “E não estaria lá para ajudá-la.”

 

Sim, aquela era uma verdade irrefutável. Porém, não conseguia compreender o problema dele em relação a ela. “Como falei, é a natureza do trabalho. Os riscos não me importam, em nenhum dos casos.”

 

A expressão que se fez em seu rosto — misturando incredulidade e desesperança —, por um momento, a assustou. Pouco depois, ele puxou a aba do chapéu para baixo.

 

De volta ao automático, começou a repassar a legislação e detalhes do caso, encarando seu rosto sem realmente vê-lo.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "A Última Peça" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.