komorebi escrita por socordia


Capítulo 1
Um.


Notas iniciais do capítulo

nessa fic, os personagens são estudantes universitários - ou seja, jovens adultos. por isso, tratarei de temas mais adultos, como álcool, sexo, relações familiares complicadas e saúde mental. tentarei fazê-lo de forma leve, mas ainda vai rolar - então levem isso em mente, por favor. :)



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/748571/chapter/1

O ritmo da música ecoa pelos ossos de Lily no que, se ela pudesse ver cores, seria identificável como várias nuances de roxo. Ela vira o Cosmopolitan de uma vez, sem conseguir apreciar a cor delicada do drink, deixando o líquido escorrer pela sua garganta em labaredas nada controladas. Depositando a taça com um clink! que é engolido pela música ao seu redor, Lily avança para a pista de dança, identificando sem problemas os cabelos volumosos de Marlene à distância, os quadris amplos da amiga balançando de um lado para o outro num torpor claramente embriagado.

Dorcas está com os braços envolvendo a cintura da namorada, tentando acompanhar a dança de forma desajeitada, as duas sendo empurradas de um lado para o outro no meio do mar de pessoas suadas que berram a letra junto com Dua Lipa. Lily para, a uma distância segura das duas, apenas para observar o quão doce e despreocupada é a cena.

Ela suspira quando um garçom passa por si e pega uma taça do que parece ser espumante, deixando que ele escaneie sua comanda para que mais essa bebida seja adicionada a sua conta. Lily, se estivesse mais sóbria, temeria o resultado de sua noite de bebedeira com as amigas, mas, no momento, ela só quer deixar que o álcool faça o seu trabalho e impeça seus pensamentos de devanearem por aí, em avenidas que Lily definitivamente não quer cruzar.

As bolinhas do espumante fazem cosquinhas no nariz de Lily, e ela ri baixinho conforme se aproxima das amigas.

— Lilyyyyy — cantarola Marls por cima da música, seus lábios cheios de gloss quase grudando-se no lóbulo da orelha de Lily. — Eu já falei que seu cabelo é da cor mais bonita?

Lily quase bufa e empurra Marlene para lá. Ela não quer saber sobre sua vida colorizada, agora que encontrou Dorcas e as duas se resolveram ao ponto de conseguirem ficar juntas.

— Tá escuro aqui, Marls, você nem consegue me ver direito... — é o quê Lily resmunga em resposta, terminando de virar a taça e depositando-a na bandeja de outro garçom que passa por ali. — E eu pensei que tínhamos saído para não falarmos sobre cores.

— Lilyyyyy — repete Marlene no mesmo tom arrastado. Ela se solta de Dorcas e pega o rosto de Lily entre suas mãos gorduchas, a pele fria por conta do suor e do ar condicionado que está bombando na balada desde que entraram. — Você vai encontrar sua alma gêmea! — O tom de Marls é o mesmo tom de um pastor para sua assembleia, e Lily não pode evitar prestar atenção em cada sílaba meio mambembe que sai dos lábios de Marlene. — E aí você vai conseguir ver como o seu cabelo é lindo! — Marls se joga nos braços de Lily numa tentativa de abraço fadada ao desastre e Lily não tem escolha senão amparar a amiga para que ela não caia no chão grudento da balada.

Por fim, Lily acaba rindo. Dorcas põe seus braços por cima das duas, e as meninas acabam num desconfortável abraço triplo no meio da pista de dança, enquanto todos nas idades de 18-24 anos de Hogsmeade dançam ao seu redor. Elas elevam a voz até que ouvem mais umas as outras do que à música, enquanto pulam e mexem os pés no que, em sã consciência, não pode ser classificado como dança.

— O Snape é um babaca, Lils — Dorcas declara, mais tarde, quando as três finalmente conseguiram lugares para sentarem-se no bar. Dorcas carrega no pescoço as comandas de Lily e Marlene, comandando as rodadas de drinks e ignorando os protestos das outras sobre como é injusto Dorcas arcar com a despesa da noite inteira.

— Isso é — concorda Marlene, voz abafada por estar escondida atrás dos cabelos, cabeça apoiada no balcão de mármore. — Onde já se viu, falando que você não vai se colorizar...

E que deveria me contentar com ele, Lily completa mental e amargamente, girando o guarda-chuvinha de papel do seu drink de copo alto. Só de lembrar das palavras afiadas de Snape faz o estômago de Lily revirar-se e retorcer-se contra si mesmo. Não ajuda muito ela estar bebendo há mais de três horas, também.

— Não quero falar sobre isso.

Colorização sempre foi um assunto complicado para Lily. Seus pais agiam como se pessoas adultas não-colorizadas fossem incompletas, como se houvesse algo intrinsecamente errado com elas. É nisso que dá crescer com sua alma gêmea, Lily sempre conjecturou, vendo o relacionamento dos pais como o epíteto da forma com a qual almas gêmeas deveriam se comportar. Eles navegavam naturalmente pelas águas conturbadas das responsabilidades da vida adulta, resultado de anos de prática e camaradagem, já que se conheciam tão bem quanto possível.

Às vezes, Lily nem conseguia dizer onde terminava sua mãe e começava seu pai. Em seu âmago, ela sentia falta de alguém que a compreendesse e completasse tão perfeitamente assim. Ser entendida apenas através de olhares, ter alguém com quem contar incondicionalmente, poder ser vulnerável e ao mesmo tempo destemida... Sua mãe sempre dizia que, quando Lily encontrasse sua alma gêmea, ela iria finalmente desabrochar e atingir seu potencial completo.

Mas aqui está Lily, aos 23 anos, na faculdade de medicina de Hogwarts, sem nunca ter visto a cor do sangue. Ela sabe que ele é vermelho — íons de ferro são vermelhos, hemoglobina usa ferro para transportar oxigênio —, e que ele tem toda consistência e sabor peculiar. Mas nunca viu a cor brilhante e rica.

Ela não é a única da classe ao não ter a experiência, e os colegas colorizados até dizem que Lily e os demais têm sorte ao verem tudo em preto, branco e cinza: cores são distrações. Mas o quê eu não daria para ver um Van Gogh em toda a sua glória...

— Tudo bem, tudo bem... — Marls fala, em tom de derrota, tirando Lily de sua distração. Ela aponta um dos dedos de unhas roídas para Lily. — Mas teremos que falar nisso, Lil. Cedo ou tarde.

— Que tal tarde? — pergunta Lily, em doce tom de voz. Dorcas disfarça uma risada com uma tossidela, e Lily lhe pisca um olho em resposta. — Vou dançar. Vocês vêm?

— Nãoooo — Dorcas responde, botando para cima os pés que usam saltos ridiculamente altos. — Preciso descansar esses nenéns.

Marlene fica com a namorada e Lily, novo drink em mãos, põe-se a desbravar a Três Vassouras, a melhor balada de Hogsmeade. Ela vira-se nos calcanhares para marcar exatamente em que altura do bar estão Dorcas e Marlene, e percebe que as duas já estão em modo completo de alma gêmea, sussurrando uma no ouvido da outra, de mãos dadas, trocando beijinhos e carícias. Elas se tratam com tanto cuidado e carinho e ternura que Lily quase consegue imaginar uma aura cor-de-rosa envolvendo-as.

A cena deixa-a um tanto enjoada.

Por mais que esteja tentando — e tentando muito —, é difícil para Lily não se ressentir daqueles que tiveram a sorte de serem colorizados. É, tudo bem, Lily leu os estudos e sabe que a colorização, em média, vai acontecer com pessoas acima de 25 anos, mas Marls e Dorcas se encontraram aos 21, e descobriram que estavam colorizando uma a outra aos 23. Seus pais cresceram colorizados. Droga, até mesmo Petunia tinha se colorizado três anos atrás, quando tinha a idade de Lily.

— Não vamos pensar em cores agora, Lils — ela sussurra para si mesma, pressionando o vidro gelado da bebida na testa. — Curte a música.

Ela sabe que está deixando-se levar pela onda de pensamentos pessimistas por conta da discussão que teve com Severus mais cedo. Ele, inclusive, tentara falar com ela algumas dúzias de vezes desde que Lily jogou-lhe um copo d’água na cara e saiu batendo os pés do refeitório do prédio de Ciências Biológicas, mas ela bloqueara-lhe o número. E, agora que está aqui, Lily saca o celular do bolso e deleta as conversas com Severus, excluindo-o da lista de contatos, bloqueando-o no Facebook e no Twitter.

A satisfação de cortar Severus definitivamente de sua vida faz com que Lily termine sua bebida e permita-se esquecer da nuvem pesada que tem orbitado sua cabeça desde a hora do almoço. O DJ ataca com Irreplaceable, da Rainha dos Estados Unidos, Beyoncé, e Lily sente vontade de pular a proteção que separa o DJ do público só para poder lhe dar um abraço e parabenizar sua escolha de música.

Pela próxima meia hora, só existe Lily e a pista de dança, a música atravessando-a por inteiro e guiando seus pés e mãos. Ela até esquece de que tinha como objetivo encher seu corpo com álcool e embriagar-se ao ponto de esquecer como se sentira um lixo por conta das palavras desmedidas de Snape. Existe alguma coisa em estar sozinha no meio de uma multidão que canta a música junto com você, que dança no mesmo compasso, erra as mesmas palavras. É como se todos entrassem num estado de espírito meio ancestral, quase ritualístico, parte de um mesmo organismo que se move de forma concertada.

Lily é carregada pela batida e pela movimentação contínua das pessoas ao seu redor, como se estivesse sendo arrastada pela maré. Ela não sabe quantas músicas se passam até que ela se vê de frente a um menino alto, que usa óculos redondos e têm os cabelos despontando por todas as direções. A luz pulsante não permite que Lily consiga discernir muito bem os seus traços, mas ela decide que ele é bonito. O rapaz se inclina para sussurrar alguma coisa no ouvido de Lily, que ri em resposta, e continua dançando ao seu lado, de forma descontraída.

— Ai, meu Deus — exclama, chocada, ao reconhecer os acordes iniciais de Mr. Brightside juntamente com o resto da festa. — Eu amo essa música!

— E quem não ama? — o rapaz ri em seu ouvido, os dois declamando sofrida e desafinadamente o hino da The Killers.

Lily não se divertia assim há algum tempo. É nesse momento que fica feliz por ter chamado as meninas para sair, ao invés de se trancar no dormitório com um pote de sorvete e chorar até dormir. Não há nada como não deixar se abater. Ela lambe os lábios enquanto descansa a garganta depois de gritar por quase três minutos ininterruptos, e não pode evitar de perceber que o rapaz de cabelos bagunçados a sua frente acompanha o movimento com interesse. Lily joga os cabelos para o lado, e, conforme o DJ se aprofunda na fase emo/alternativa dos anos 2000 de sua setlist, deixa que ele se aproxime. Não demora para que esteja dançando com as mãos dele em sua cintura, e, no meio do refrão de That’s What You Get, ele abaixa-se para beijá-la.

Um pouco sem fôlego, Lily não demora para retribuir, passando os braços pelo pescoço dele e afundando seus dedos nos cabelos surpreendentemente macios do desconhecido. Eles aprofundam o beijo e o coração de Lily acelera-se em seu peito de maneira tal que ela consegue identifica-lo contra as pálpebras fechadas. Os dois só se separam quando precisam buscar ar, mas logo a boca dele está contra o pescoço de Lily, depositando beijos como um explorador que caminha por uma trilha familiar, e ela suspira em satisfação com o arrepio prazeroso que lhe percorre a espinha.

 Sem saber direito como, eles conseguem atravessar a massa de pessoas bêbadas e suadas, e sem demora Lily se vê pressionada contra uma das paredes. Nem passa pela sua cabeça reclamar — ela se ocupa em mordiscar o lóbulo da orelha dele, provocativa, suas mãos passando pelos braços do rapaz e por fim pausando em seus quadris. Ele a beija com uma intensidade que faz a cabeça de Lily desanuviar, tornando-a consciente apenas desses momentos, da boca dele contra a sua, a pele dela deslizando pela dele, as mãos dela desarrumando ainda mais os cabelos dele.

Lily perde um pouco a noção do tempo enquanto beija o desconhecido, mas depois do que parece ser o milésimo beijo, ele se afasta delicadamente, encostando a testa dele na dela. Lily tem a respiração pesada, o ritmo cardíaco bagunçado, e a face quente, provavelmente em chamas. Não que ele possa perceber esse último detalhe pela escuridão da balada, mas Lily sente-se tão desalinhada que nem tem certeza de como vai conseguir encarar as amigas nesse estado.

— Eu vou pegar uma bebida — diz o desconhecido, no pé do ouvido de Lily, em voz rouca. Ele limpa a garganta antes de continuar, e um sorriso de lado de vitória surge no rosto dela. — Quer alguma coisa?

Lily não é idiota. Por mais que ele não tenha tentado avançar a pegação para além do que seria aceitável para um lugar público, Lily definitivamente não aceitaria bebidas de um estranho. Ela vê jornais demais para isso.

— Não, obrigada — responde, de forma educada, esperando que ele se revolte diante da tentativa falha de drogá-la. Ele apenas acena com a cabeça, em concordância.

— Tudo bem. O bar está menos cheio, agora. — Ele olha do bar para Lily com o quê parece ser apreensão. — Me espera?

— É, espero — ela responde, e sorri. Ele sorri de volta, ajeitando os óculos no rosto e enfiando-se de volta na multidão.

Lily reclina-se na parede e esconde o rosto nas mãos, na tentativa de dissipar as chamas internas que parecem que vão consumi-la por inteiro. Ela ri de forma aguda, como a adolescente que não mais é, e sacode a cabeça para evitar pensar na adolescência. Lily mordisca os lábios e tira o celular do bolso, só para se deparar com uma enxurrada de mensagens e ligações perdidas de Marls e Dorcas.

Arregalando os olhos, Lily confere a conversa para ver se acha as amigas. Por sorte, as últimas mensagens foram enviadas há poucos minutos, e ela consegue respondê-las. Segundo Dorcas, Marls bebeu demais e está começando a dar sinais de PT; elas querem ir embora, mas não querem deixar Lily sozinha — será que ela poderia fazer o favor de aparecer?

Ela digita “encontro vcs na saída!!!”, e vai o mais rápido possível na direção da porta. Marls tem uma resistência considerável a álcool — ela deve ter bebido bem mais do que Lily se deu conta se está mal como Dorcas dá a entender. E, já que Marls está se apoiando violentamente em Dorcas quando Lily finalmente encontra as amigas, parece que suas suspeitas se confirmam. Lily arregala os olhos e aperta o passo, passando um dos braços pela cintura de Marlene para estabilizá-la e evitar que caia.

— Me dê sua comanda — Dorcas ordena em voz imperiosa e Lily não hesita em obedecer. — Marlene, você não ouse desmaiar agora.

Dito isso, Dorcas dá as costas e marcha na direção do caixa. Consegue passar na frente de todo mundo, apontando para Marlene à distância e argumentando que devem sair dali o mais rápido possível antes que tenham que chamar uma ambulância, e logo as três ganham as ruas, respirando o ar gelado da noite.

Elas caminham até uma pracinha ali perto e fazem com que Marlene sente-se num dos banquinhos de madeira espalhados pelos passeios. Marls põe a cabeça entre os joelhos e força-se a inspirar pelo nariz e expirar pela boca por longos minutos, nos quais Lily e Dorcas permanecem em silêncio. Quando Marlene parece melhorar, Dorcas vai até a vendedora de cachorro quente que observava as meninas com interesse e compra três garrafinhas d’água, empurrando uma nas mãos de Marlene, oferecendo a outra para a Lily e abrindo a terceira.

Em uníssono, as três bebem um generoso gole de água mineral e suspiram em seguida, completamente satisfeitas.

— Você está se sentindo melhor, amor? — sussurra Dorcas numa voz incrivelmente doce e simultaneamente ameaçadora. Ela afasta alguns dos cabelos de Marls do rosto, para que possa olhá-la melhor. — Você me assustou — repreende, o cenho franzindo-se em discordância, braços cruzando-se na frente do peito.

Marlene murmura qualquer coisa por debaixo da respiração que Lily não consegue entender. Agora que a adrenalina e o instinto de proteger Marlene estão deixando seu corpo, ela sente os efeitos dos incontáveis drinks que bebeu, com o mundo não exatamente estável ao seu redor e seus pensamentos quase que imersos num pântano lamacento. Se Lily fosse um processador, sua memória RAM não chegaria a um gigabyte sequer.

Ela fecha os olhos por alguns instantes, tentando botar a cabeça no lugar, bebendo a garrafa d’água como se quinhentos mililitros fossem magicamente curar sua bebedeira. Ela está consciente da onde se encontra — a brisa da madrugada de final de verão faz com que os pelos nos seus braços se arrepiem —, e de Dorcas e Marlene conversando em tons baixos ao seu lado. Lily respira fundo, deixando o ar puro da área arborizada entrar em seu sistema e clarear sua mente, numa espécie meio bizarra e meio bêbada de meditação improvisada.

Quando Dorcas lhe cutuca o braço, Lily quase pula para fora do banco.

— Lily. — Ah, Deus, Lily conhece bem demais a expressão nas feições miúdas de Dorcas. Ela se encolhe, em preparação, e cogita se esconder detrás da garrafinha. Dorcas desliza pelo banco, ajeitando os óculos no rosto, aproximando-se ainda mais de Lily para impedir sua fuga. — Isso no seu pescoço é um chupão?

Lily solta um som agudo que por pouco não é inteligível apenas por cachorros e esconde o rosto nas mãos.

— Seus lábios estão inchados? — pressiona Dorcas, seus dedos cutucando Lily nos braços e na barriga. — De tanto beijar alguém?

— Você sabe melhor que ninguém os sinais de pegação prolongada — Lily resmunga, por detrás das mãos que ainda lhe escondem o rosto. Ela resistiu bravamente à tentativa de cócegas de Dorcas. — Você e Marlene ficaram se beijando a noite toda. — O tom de Lily é quase de reprovação, mas Marls e Dorcas têm a coragem de trocarem olhares melosos entre si e suspirarem ao mesmo tempo.

Odeio pessoas apaixonadas. Ela tem um flashback súbito de quando Petunia levou Vernon para casa, para apresentar aos pais, assim que percebeu que eles estavam se colorizando. Lily teve violentos ímpetos de jogá-los na piscina, diversas vezes. Se ela ainda pudesse tirar as escadas para que eles se afogassem, tal qual The Sims, ela provavelmente teria feito.

— Mas e aí! — A voz de Marls soa estridente, resultado provável da bebedeira. — Quem foi?

É aí que Lily se dá conta de duas coisas. A primeira é que ela nunca perguntou o nome do rapaz que ficou beijando pelo que parecem terem sido horas, nem se apresentou a ele. A segunda é que o pobre coitado ainda deve estar esperando-a em algum lugar dos Três Vassouras, sem ter qualquer ideia de que Lily teve de sair correndo de lá para evitar que Marls desse o maior vexame de sua carreira universitária e manchasse todas as paredes do respeitável estabelecimento de vômito.

Lily geme audivelmente e recebe tapinhas solidários nas costas das duas amigas. Elas, também, já beijaram pessoas desconhecidas em bares e baladas e não estão em posição de julgar.

— Vamos lá consumir um pouco de glicose — determina Dorcas, pondo-se de pé e estendendo a mão para Marlene. — Você precisa comer algo antes que desmaie. Você também, Lil. Quais são as recomendações para alguém que passou as últimas oito horas praticamente a base de álcool?

Lily rola os olhos mas segue as meninas sem protestos. Seu estômago parece prever que vão comer em breve, porque começa a roncar audivelmente, arrancando risadas de Marlene, que puxa Lily para um abraço, envolvendo-lhe a cintura. Lily descansa a cabeça no ombro de Marlene e quase vinte minutos depois elas chegam ao Cabeça de Javali, o único pub que funciona 24h por dia, sete dias por semana, e que vende fish & chips em qualquer ocasião do ano. Como o Sol já está despontando no horizonte, elas decidem tomar café da manhã mesmo, pedindo panquecas, ovos mexidos com bacon, waffles, chá para Lily, café para Dorcas e chocolate quente para Marlene.

O pub está com sua clientela de sempre: os esfomeados que passaram a noite na rua, como as meninas, o pessoal que acaba de sair do turno noturno e aqueles infelizes que devem acordar obscenamente cedo para chegarem no horário em seus trabalhos. Todo mundo fala baixo, em vozes sussurradas, sem querer violar a santidade do silêncio da manhã, e Lily e as amigas seguem o padrão. Aberforth, o dono do estabelecimento, é incrivelmente mal-humorado e não hesitaria em expulsá-las caso elas erguessem a voz e incomodassem os outros clientes. Não importa se Lily trabalhou com ele enquanto ainda estava era uma pobre undergrad e precisava da grana pra se manter na faculdade. O cara é durão, beirando a grosseria, embora tenha o coração no lugar.

A comida chega e o estômago de Lily quase canta em felicidade. Ela avança para os ovos, pegando o frasco de ketchup e espalhando-o por toda a sua comida. Lily para, por um instante, embasbacada, o coração na garganta—

Tão rápido quanto veio, o flash se dissipa diante de seus olhos e ela se reclina no sofazinho estofado, uma expiração aliviada deixando seus lábios. Deve ter sido apenas a maneira pela qual a luz entrava pelas janelas, ou mesmo um efeito adverso da bebedeira. Ela pisca e encara seus ovos mexidos afogados em ketchup, cutucando-os deliberadamente com o garfo, mas eles permanecem cinzentos e disformes. Lily aperta os lábios numa linha fina. É, foi definitivamente coisa da sua cabeça.

Lily não pode estar vendo cores. É claro que não. Ela começa a devorar seu café da manhã em seguida, de forma inclemente, quase nem parando para respirar. O chá quase queima sua boca e ela quase esquece-se de pôr leite nele antes de beber, de tão desesperada por comida que está. Quando terminam de comer e pagam a conta, Dorcas diz que levará Marlene para casa e pergunta se Lily quer uma carona; por sorte, o Cabeça de Javali é perto do campus, e Lily dispensa a oferta agradecendo as duas pela noite divertida.

Enquanto caminha de volta ao dormitório, Lily tenta lembrar-se do rosto do cara que beijou-a quase ao ponto de fazê-la esquecer o próprio nome. Ela sente-se mal por tê-lo abandonado, principalmente agora que vai ter que carregar a marca do beijo dele no pescoço pelo resto da semana, mas se pega sorrindo ao lembrar das mãos dele em sua cintura e como ele parecia apreciar o rock melancólico dos anos 2000 em doses certas de ironia e veracidade. Ela não consegue se lembrar muito bem do rosto dele — estava escuro e ela não vê em cores —, nem sobre o quê conversaram, mas ele parecia ser um cara legal.

Se ele estava nos Três Vassouras, ele provavelmente frequenta Hogwarts. Tudo bem que a universidade é gigante e Lily praticamente vive no prédio das Biológicas e no laboratório. Mas, ainda assim...

— Ainda assim o quê? — Ela se pergunta, mal-humorada, usando a identidade estudantil para desbloquear a porta do prédio da Grifinória. O porteiro acena para ela de forma descontraída, e ela sorri em resposta, sentindo o rosto corar. Ele está acostumado a universitários saindo e não voltando até o dia seguinte, mas Lily sempre sente-se desconfortável fazendo a caminhada da vergonha de volta ao seu dormitório.

Ela pega o elevador em silêncio e fecha os olhos enquanto ele salta pelos andares. As meninas ficam com os sete andares de cima, e os meninos com os sete andares de baixo — Lily mora no décimo terceiro, destinado às alunas da grad school, e quase cai de cara no chão ao tropeçar nas caixas de papelão que se amontoam no corredor. É claro — o dia anterior foi o último dia de mudança. Como Lily não voltara ao dormitório desde a hora do almoço do dia anterior, ela, graças a Deus, perdera a confusão e barulho que inevitavelmente marcam os dias de mudança. Isso também quer dizer que ela vai poder dormir o quanto quiser sem ser interrompida pelo barulho de móveis sendo arrastados e vozes gritando instruções. Usando a chave para abrir o quarto, Lily dá uma última olhada no corredor para se assegurar que ninguém mais está presenciando seu retorno destruído, e entra no quarto.

Ela tira os sapatos, guardando-os no armário a eles destinados bem na entrada. Os dormitórios do prédio da Grifinória foram desenhados tal qual dormitórios de universidades asiáticas: todos os quartos, sejam eles grupais ou individuais, como os de Lily, possuem um desnível para que as pessoas se descalcem antes de entrarem no quarto propriamente dito.

Lily se despe e pula para o chuveiro, deixando a água quente relaxar seus músculos e lavar seu cabelo do suor e da fumaça que estão impregnados nele depois da noite passada no Três Vassouras. Ela sai do banho, se veste e conecta o secador na tomada, mas não o liga.

Porque, olhando-a no espelho, está o seu reflexo. Olheiras debaixo dos olhos, brincos cobrindo as orelhas, as sardas dispersas como manchinhas acinzentadas por seu nariz e colo. E, no topo de sua cabeça, um emaranhado de cabelos bagunçados pela toalha, molhados e despontando por todas as direções — cabelos que, definitivamente, não estão na mesma escala de cinza que estavam antes.

Eles saltam aos olhos, a cor em diferentes matizações e intensidades pela extensão dos fios. Lily pisca, e, embora os pontos de cor mudem de lugar e de tom, eles não se dissipam. Sem saber o quê fazer, ela liga o secador e segue com sua rotina, desembaraçando o cabelo e trançando-o por fim. Ao contrário do que esperava, a cor não desaparece, mas se solidifica — ela parece se espalhar toda vez que Lily escova os cabelos, deixando o cabelo brilhante e num tom intermediário, indeciso, ora intenso ora suave.

Merda.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

tem anos que eu não posto fics e decidi me aventurar por jily, que é um dos meus OTPs da vida. feedback é sempre muito bem aceito! obrigada por lerem.



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "komorebi" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.