Superstition 2 escrita por PW, Jamie PineTree, MV


Capítulo 5
Capítulo 04: Broken Homes


Notas iniciais do capítulo

Escrito por PW



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Caía uma chuva torrencial do lado de fora, encharcando a terra e lutando contra a estrutura que compunha a tenda na qual Andreas estava. Apesar da mata escura, era possível deduzir que a tarde ainda não havia partido.

O homem permanecia sentado em uma estrutura de pedra e uma lamparina acesa sobre a mesa no centro iluminava o local. Do outro lado, a figura debilitada de Georgia enrolada em cobertas grossas cedidas pelos moradores da vila. Ela olhava para um ponto qualquer, enquanto os soluços ficavam presos na garganta. Maquiagem borrada, cabelos molhados e lábios trêmulos que denunciavam um estado psicológico debilitado.

Ela pensou em provar mais uma colherada da “Sayur Delih”, uma sopa de vegetais deixada em cima da mesa, mas não conseguia se mover para alcançá-la, só acompanhar o rastro de fumaça subir.

— Preciso entender o que aconteceu lá. — Andreas disse, apoiando as mãos nos joelhos.

— Eu não sei se consigo… — Georgia girou o olhar na direção do terapeuta, soprando profundamente.

— Você pode pular os detalhes se quiser, Georgia. Prefere começar contando como foi parar lá?

A negra apertou o cobertor contra o corpo e voltou a ter o olhar vago.

Andreas sugeriu conversar com todos os sobreviventes depois dos últimos acontecimentos. Era uma espécie de sessão de terapia para ajudá-los a lidar com seus traumas pós-acidente. Nem todos tinham algo a dizer, mas Andreas queria pelo menos tentar. Havia certa pretensão em saber o que eles estavam pensando diante da situação, mas sua vontade de vê-los, no mínimo, aceitando a condição de reclusão, era maior.

Desta vez, Georgia trouxe a caneca com a sopa para perto de si e começou:

— O céu estava se fechando, eu sabia que ia chover. Aquela mulher, a Victoria, não tinha voltado e me falaram que ela estava se sentindo triste. Eu só queria encontrá-la e trazê-la de volta, sabe-se lá quantos bichos existem aí fora. Pensei comigo mesma que ela não iria muito longe e que seria fácil achá-la. — Seus olhos voltaram a ficar marejados.

— Isso te motivou a entrar na mata sozinha?

— Não. Não isso. Enquanto procurava, fiquei apertada pra ir ao banheiro, mas tinha me afastado o suficiente pra não dar mais tempo voltar. — Um meio sorriso escapou dos lábios de Georgia e se sentiu idiota por ter feito aquilo, mudando sua expressão drasticamente. — Então entrei na mata, só um pouquinho… Mas esse lugar engana nossos olhos e quando percebi já era tarde demais, estava perdida.

— E foi nesse momento que aconteceu?

A revendedora de cosméticos apenas gesticulou positivamente e começou a remoer as imagens. Lembrou-se da chuva caindo sobre sua cabeça repentinamente e de correr, procurando por um abrigo.

— Encontrei a Victoria boiando na margem do rio. O corpo estava… — Comprimiu os olhos. — Cheio de ferimentos. E havia aqueles galhos e eu não consegui olhar por muito tempo. Queria me aproximar e puxar ela dali, ver se ainda dava pra fazer alguma coisa. Mas fiquei paralisada de medo e gritei sem parar. Foi aí que me acharam.

Georgia terminou seu relato com uma lágrima em sua bochecha.

— Se eu tivesse sido mais atenta ao que a Vânia Vandelli disse, poderia ter ido direto pro rio. — A negra murmurou, depositando a caneca sobre a mesa novamente.

— O que a Vânia disse?

— Antes de procurar pela Victoria, passei na tenda e vi quando a Vânia acordou de um pesadelo. Ela disse que no sonho estava se afogando e fez aquela cara, a mesma cara que fez quando falou sobre o tsunami no templo.

— Está dizendo que ela sabia sobre a morte daquela mulher, assim como sabia do tsunami? — Andreas franziu o cenho.

— Não disse que ela sabia. — Georgia cortou-o, desconfortável com o tom de voz do homem. — Só acho que foi muita coincidência ela se afogar no sonho e eu encontrar a atriz afogada no rio.

Andreas balançou a cabeça e refletiu por alguns segundos.

— Entendo, mas não deve se sentir culpada por não ter chegado antes. Você não tem que carregar este fardo.

— Já acabamos? — Disse a jovem limpando a lágrima impacientemente.

O terapeuta acenou e Georgia se levantou abatida, passando por uma cortina que havia ali e deixando-o sozinho na companhia da sopa.

X-X-X-X-X

Um trovão retumbou no céu e Skylar tapou os ouvidos com força, dobrando os joelhos e comprimindo-os junto ao corpo.

Embora tivesse um banco disponível para que pudesse sentar, optou por sentar-se no chão de barro da tenda. Andreas observou a cena e diante do gesto, se pôs abaixado ao lado do garoto. Skylar fechou os olhos, não queria ver nada e o terapeuta compreendeu o momento, de modo que ficou em silêncio. Começou a arrepender-se da ideia de chamá-lo para conversar por conta do temporal.

— Eu não gosto de chuva. — Skylar disparou, ainda tapando os ouvidos.

— Por que? — O homem viu naquele comentário a oportunidade perfeita para começar um diálogo.

— Chuvas são barulhentas e às vezes cobrem as estrelas. — O adolescente foi tirando as mãos do ouvido devagar.

— Você gosta de ver as estrelas?

— Sim, conheço várias constelações. Graças ao meu tio Jon, que me deu um telescópio de presente no meu aniversário de treze anos. Elas me acalmam. Às vezes, quando estou assustado, fecho os olhos e imagino um céu bastante estrelado. Fiz isso quando vi o corpo daquela mulher. — Skylar não imaginava o peso de suas palavras. Ele continuava com a face desconfortável, mas causada pela chuva.

O rapaz tocara em um ponto interessante para o terapeuta, que continuou:

— E como está se sentindo agora?

— Não sei. — Deu de ombros. — Juntei algumas flores pra colocar no túmulo dela. Ela parecia gostar muito de flores. — E como se sua mente estalasse, animou-se dizendo: — Acho que vou fazer uma cruz também!

Skylar levantou do chão, agora ignorando a barulheira do lado de fora e limpando a poeira da roupa. Estava focado em por sua ideia em prática.

— Ei, Sky, não terminamos ainda. — Avisou Andreas.

— Já tenho as flores, vamos precisar da cruz pro túmulo, não vamos? — Retrucou o adolescente.

— Claro que vamos, mas infelizmente temos que esperar a chuva passar. — O homem coçou a barba e voltou a sentar em seu lugar. — Estamos fazendo avanços, Sky, só tem que sentar um pouco e respirar. Pode me contar mais sobre seu tio Jon?

De repente, Skylar parou de se mexer e fechou os olhos, apertando o tecido de sua calça caqui intensamente.

Um céu estrelado, um céu estrelado! Começou a repetir dentro de sua cabeça sem parar.

— Me ouça, Sky… Está tudo bem, ok? — Andreas levantou devagar, encarando a figura esguia do adolescente mexendo os braços pálidos pelo corpo, como se procurasse por algo.

— Preciso de silêncio, doutor. Estou procurando a Ursa Maior.

Ele havia encontrado o headphone pendurado em seu pescoço e o puxou para colocar nos ouvidos.

— Não temos que falar mais do seu tio Jon. Não temos que falar sobre mais nada, só preciso que respire fundo. — Enquanto proferia, o terapeuta notava seus dedos inquietos e o suor banhar os cabelos finos que grudavam em sua testa.

Já vira aqueles sinais antes, logo depois do acidente, logo antes do menino se mutilar. Ele estava prestes a entrar em crise e o homem precisava fazer algo para reverter.

Então, Andreas caminhou lentamente até o adolescente e tocou suas mãos gélidas, segurando-as e tentando deixá-las estáveis. Skylar continuou de olhos fechados procurando pela sua constelação, até que, segundos depois, revelou as íris azuis detrás dos cabelos úmidos.

— Encontrou a Ursa Maior? — Andreas indagou, soltando suas mãos.

— Sim, mesmo com o barulho da chuva e da sua voz insistente.

O terapeuta assentiu, um leve sorriso surgindo entre a barba castanha.

— É um bom resultado.

O garoto apenas deu com os ombros e fez menção de sair dali, concluindo:

— Agora tenho que perguntar onde conseguir gravetos para a cruz. Até mais doutor!

— Até logo. — Suspirou, tendo o tio do adolescente como seu último pensamento antes do próximo sobrevivente adentrar na tenda.

X-X-X-X-X

— Como estão seus pés? — Andreas perguntou, observando Vânia sentada diante dele.

A mulher estava usando seu vestido amarelo repleto de manchas e sentindo-se extremamente suja. Pensou em tomar banho no rio, até saber a notícia da morte de Victoria horas antes. Também cogitou molhar-se na chuva, mas só ganharia um resfriado e adoecer era a última coisa que queria naquele momento. Precisava preservar o melhor de si mesma para se manter focada.

— Estão melhorando. — Respondeu, conferindo vestígios da pomada natural sob a sola dos pés.

— Fico feliz. — O homem sorriu. — Deseja falar sobre algum assunto específico?

Vânia não sabia a resposta. Nunca ficou cara a cara com um terapeuta antes, mas conhecia o procedimento por conta de sua empresa e de seu filho, Steve. Ele costumava ir às consultas quando criança. Parte de sua infância fora problemática, pois o garoto se negava a se abrir com a psicóloga da escola, muito menos com a mãe, e isso fez com que Vânia buscasse outra solução. Bastaram algumas ligações para encontrar um novo psicólogo.

Ela lembrava-se bem do clima dentro do consultório e não parecia nem um pouco com o que via ali. Seu olhar percorreu por toda a tenda, até pararem na pequena lamparina sobre a mesa.

O fogo fez a mulher engolir em seco e indagar:

— Você acha que o resgate vai demorar?

— Acredito que não, mas consigo compreender que há outras prioridades. Eles têm uma destruição em massa para contornar lá embaixo. Somos o menor dos seus problemas. — Andreas buscou fixar seu olhar nos olhos de âmbar da empresária. — Concorda?

— Sim, e isso está acabando comigo.

— O que está acabando com você?

Vânia ficou ofendida com a pergunta retórica, mas era o procedimento. Tarde para voltar atrás.

— Saber que poderíamos estar mortos agora, mas estamos aqui sãos e salvos, e ainda assim, tão longe de quem amamos. — Arqueou os ombros. — Me sinto sozinha e desprotegida.

— Você não está sozinha, Vânia.

— Estarmos aqui juntos não significa que estamos amparando uns aos outros! Aquela atriz esteve desamparada esse tempo todo e sabe como acabou.

— Foi um acidente...

— Tudo começou com um acidente. — Vânia interrompeu-o.

— Isso tem a ver com o pesadelo que teve esta tarde? Em que estava se afogando?

— Como soube? — Perguntou chocada.

— Conversei com todos, lembra? Esse ponto em questão me chamou atenção. O que viu exatamente no sonho?

— Não quero falar sobre isso agora.

— Saiba que pode contar comigo, Vânia. Não sou seu inimigo, só me deixe ajudar.

A dama de ferro respirou fundo, mas ainda estava disposta a resistir em sua armadura. Ela não se sentia bem sendo interrogada daquela forma. Por mais que a atitude do terapeuta aparentasse ser boa, a forma como ele a conduzia fazia a mulher se sentir invadida. A última vez que tivera a mesma sensação, fora durante seu último casamento.

Porém, resolveu lhe dar uma chance, o benefício da dúvida.

— Começou como um sonho bom, estava fechando negócio com os investidores que vim encontrar aqui. Apertamos nossas mãos e no segundo seguinte, estava sendo levada pela correnteza, gritando por ajuda. Meu peito parecia que iria explodir e mal podia sentir meus braços… — A empresária fez algumas caretas enquanto articulava.

Vânia ficou em silêncio por alguns segundos, como se evitasse continuar.

— Podemos parar por aqui, mas ajudaria se conseguisse concluí-lo.

A mulher engoliu em seco, mas deu continuidade:

— Não era eu, não eram meus braços que se debatiam.

O homem franziu o cenho.

— Prossiga.

— Não era eu a pessoa se afogando naquela correnteza. — Vânia limpou os olhos marejados antes que qualquer lágrima pudesse dar as caras. — Era a Victoria Martyn.

Andreas apenas semicerrou os cílios, analisando com atenção o que acabara de ouvir.

X-X-X-X-X

Finalmente a chuva dera uma trégua. As gotas terminavam de cair das árvores e o céu começava a se abrir para contemplarem o alaranjado final de tarde. Após sua conversa com Vânia, Andreas procurou por Milan pela vila e encontrou o amigo parado embaixo de uma árvore, pensativo. Ele era o único sobrevivente com quem não tivera um momento na tenda.

Assim que notou sua presença, o dançarino acenou e Andreas foi ao seu encontro.

— Como foi? — Milan perguntou curioso, referindo-se à joalheira.

— Ela passou por muita coisa desde que chegou. — Andreas recostou-se na árvore ao seu lado, chutando uma pequena pedra. — Está exausta e confusa.

— Deve ser difícil conviver com o fato de que previu um maremoto que devastou parte de uma cidade. — O dançarino disparou, olhando para longe.

— Essa é a única questão que não consigo entender. Pessoas sentem coisas o tempo inteiro. Elas têm epifanias, fazem previsões do clima, arriscam os números da loteria…

— Numa escala como a que presenciamos? Duvido. Ela afirmou que um tsunami engoliria o resort e toda a praia minutos antes de acontecer. Nós vimos o pavor dentro dos olhos dela, era como se ela tivesse mesmo vivido aquilo. — Enquanto explicou, Milan viu diversos pensamentos passarem pela sua mente. Entre eles, sua capacidade de sentir completamente o que lhe envolvia.

Andreas balançou a cabeça em negação. Ele sempre fora influenciado a ser racional, ter uma explicação lógica para tudo. Parte de si queria acreditar que Vânia tivera mesmo uma premonição, que fora enviada com um propósito maior do que qualquer embasamento científico para tirá-los do caminho da catástrofe. Por outro lado, era natural que ele começasse a juntar peças para que chegasse a uma conclusão clínica sobre o ocorrido. Era assim que a cabeça de Andreas trabalhava.

— Se fosse para obter um diagnóstico preciso, depois de tudo que ouvi, minhas análises diriam que ela está sofrendo de estresse pós-traumático. — O homem de barba cheia sentenciou.

As palavras foram arrancadas de Milan tão rápido quanto as palavras de Andreas saíram. O dançarino não se espantou com o ceticismo do terapeuta, mas com sua ausência de empatia. A vontade de replicá-lo foi imediata:

— Ela deixou pessoas para trás, Andreas, assim como nós. É óbvio que as consequências são duras, mas isso não significa que ela sairá por aí inventando cicatrizes emocionais!

O terapeuta afastou-se da árvore e deu alguns passos, ficando de frente para a planta e para Milan.

— Isso ainda é sobre a Vânia?

— Quê? Do que tá falando?

— Consequências e cicatrizes emocionais… Ainda tem a ver com a Vânia?

O rosto de Milan corou como um pimentão em um piscar de olhos. Sua testa e bochechas ficaram vermelhas o bastante para Andreas compreender os detalhes. Ele tentou dar um passo na direção do dançarino, que recuou instintivamente, recostando-se encurralado na árvore.

— Se equivocou se acha que vai funcionar comigo. Não preciso e não quero nenhuma terapia, Andreas. — Milan disparou. — Estou bem.

— Seu olhar acuado diz o contrário. — Andreas alterou o tom de voz, de maneira que ficasse suave. — Sou eu, Mils. Não tô aqui como um terapeuta, mas como seu amigo.

— Você está sendo cruel.

— Eu sei que os últimos acontecimentos foram pesados demais pra qualquer um de nós, pra Dawn… É por causa do Kamesh, e saiba estamos juntos nessa. Podíamos superar isso juntos! — Andreas estendeu a mão, mas Milan o empurrou.

— O que pensa que está fazendo?! — Ergueu sua voz. — O que te fez pensar que eu quero superar meu marido?

— Me desculpa, Mils, se soou errado. Não foi o que quis dizer, confia em mim!

— Só aprendemos a superar o que perdemos. E ele está vivo, Andreas! — Milan proferiu, mostrando as veias marcando sua testa. Ele começou a se afastar, até que estivesse longe da árvore. — Você não vai mais entrar na minha cabeça!

— Me escuta, Milan, um ombro amigo é essencial nessas circunstâncias! Alguém que te ouça antes de julgar!

Milan gargalhou.

— Esse alguém com certeza não é você, e vamos ser sinceros, nem somos tão amigos! Nossos parceiros sim, já nós dois, só viemos no pacote.

Um vento passou por Andreas, calando-o e bagunçando as folhas a sua volta. Avistou Milan voltando às construções da vila, limpando o rosto. Andreas detestava admitir, mas falhara como profissional e como pessoa numa única tacada.

X-X-X-X-X

California, EUA — Anos antes

O consultório ficava localizado no alto de um edifício no centro da grandiosa San Francisco. A sala era bastante organizada e as paredes tinham cor de marfim, que rodeavam uma imensa janela que dava vista para o resto da cidade, exposta pelo sol da manhã. Andreas tinha sorte de ter conseguido um consultório de canto, era uma das mais deslumbrantes vistas que já tivera a oportunidade de contemplar em toda sua vida.

O nome do psicólogo estava gravado em uma placa de metal na porta, assim como em um suporte na mesa, onde Milan lia, tentando tirar sua mente daquele lugar.

Ele não queria estar ali, muito menos passar por aquele procedimento para ter paz em seu relacionamento. Seu casamento com Kamesh ia muito bem, seus filhos tinham tudo do bom e do melhor, recebiam todo o amor do mundo, mas o elo conflitante vinha da família do indiano. A fatia do bolo que faltava para ser completo. Uma comunidade muito tradicional da Índia, que não costumava se meter no assunto, mas utilizava de pequenas ocasiões para despejar toda sua repulsa sobre o matrimônio, que já perdurava por mais de dez anos.

Kamesh foi hábil em afastá-los durante um tempo, cuidando da própria vida, mas eles ainda possuíam certo poder sobre o filho mais velho e vez ou outra, Milan pegava-os tentando induzir seus meninos: Athos, Porthos e Aramis. Ele não suportou e teve um discussão acalorada com um dos membros familiares por conta da intromissão e o desenrolar do conflito desembocou naquela sala que parecia aconchegante, mas para o dançarino, era sufocante.

Andreas parou de balançar a caneta entre os dedos e começou:

— O que está sentindo acerca desse problema, Milan?

— Pra ser sincero, queria estar furioso, mas não consigo. — Torceu os lábios, sem manter contato com Kamesh. — Mesmo com todos os contras, todos os dedos apontados, todas as palavras afiadas que me cortaram, não dá. Eles são a família do Kamesh, querendo ou não, estão entre nós e fazem parte disso.

O marido ficou comovido com aquilo e apertou sua mão.

— Você acha que tem alguma obrigação com eles? — O terapeuta indagou, cruzando as pernas.

— Não desta forma, mas eu nunca machucaria meu marido afastando a família dele pra sempre.

— Mas, nesse momento, você sente vontade de fazê-lo?

Kamesh permaneceu em silêncio, ele sabia que sua vez chegaria e achava melhor Milan ser brutalmente sincero, do que omitir sentimentos que lhe fizessem mal.

Milan encarou Andreas diretamente, chocado.

— Eu vim até aqui porque Kamesh me pediu, porque Dawn é nossa amiga e porque você deveria estar me ajudando, não me colocando contra minha família! — Milan se alterou, ficando vermelho.

Kamesh apertou sua mão e lhe enviou um olhar tranquilo, como se estivesse disposto a compreender tudo que o marido sentia. Um olhar de “está tudo bem, não te culpo”.

Milan ficou com os olhos marejados, disparando em seguida:

— Eu amo a vida que tenho, amo meu marido e meus três filhos. E nada, nem ninguém, vai desfazer o lar que construímos tanto para construir.

X-X-X-X-X

Mesmo de olhos fechados Nicholas podia ouvir os grilos orquestrando seu ruído do lado de fora do abrigo. O homem estava descansando em sua tenda, sobre um tapete artesanal feito de palha seca, mais parecido com um Tatami. Não era o lugar mais confortável do mundo, mas Nicholas entendia a importância de ter sido acolhido e dos nativos estarem se esforçando para ajudarem o grupo. Eles não tem culpa alguma, foram pegos de surpresa por um bando de turistas desavisados.

Quando percebeu que não conseguiria dormir verdadeiramente, decidiu apenas fechar seus olhos e tentar canalizar seus pensamentos para coisas boas que vivera em sua vida. Em algum momento, ele pegaria no sono. Entretanto, ruídos estranhos se sobressaíram aos grilos, instigando o fisioterapeuta a abrir os olhos num ímpeto.

Nicholas continuou deitado, mesmo de olhos abertos e no seu campo de visão, a lua iluminava parte do abrigo, entrando tímida e repousando seu brilho no rosto de Skylar, que dormia profundamente ali perto. Sun também estava dormindo em seu tapete e havia um lugar vazio entre eles, de modo que Nicholas lembrou-se de Victoria e de ver seu corpo sendo trazido até a vila dentro de um lençol, o qual ele também ajudou a carregar.

Ouviu um barulho de galho quebrando e instintivamente sentou, olhando em volta. Não conseguia enxergar muita coisa além da entrada da tenda, mas sentia que não era a única pessoa acordada no recinto, de modo que levantou devagar e procurou seu relógio para ver a hora.

Seu relógio havia sumido e Nicholas começou a se perguntar onde estava, tateando o chão de barro. Até constatar a falta de sua carteira também. O fisioterapeuta ouviu um som de passos e olhou para o canto da tenda, a tempo de ver uma silhueta se esgueirar.

O brilho da lua bateu em cima de um objeto pequeno que reluziu entre dedos sujos. Seu relógio de prata.

— Ei, isso é meu!

O homem levantou do tapete e viu a figura sair da tenda às pressas.

— O que tá acontecendo aqui? — Sun já levantou de seu tapete em posição ofensiva, olhando atordoada para o homem de meia-idade mesmo que sonolenta.

— Fui roubado! Ele está fugindo com minha carteira e meu relógio! — Nicholas alertou.

No segundo seguinte, Sun pulou do tapete e iniciou uma perseguição por uma das trilhas do vilarejo, passando pelas construções simples de pedra e desviando de obstáculos que surgiam no caminho. O cheiro de terra molhada invadia o percurso e há poucos metros, o vulto procurava ser mais rápido que a detetive.

Sun estava perto de descobrir quem era o responsável pelo furto, e com sorte, seria a mesma mulher que saqueara Vânia. Seria um problema a menos.

De repente, um cesto de palha apareceu do nada e voou na direção da asiática, batendo em seu rosto com força, deixando-a tonta. Sun tropeçou e caiu de joelhos na última curva, onde ficava a ruína de pedra por onde o suspeito acabara de passar.

— Droga! — A mulher rangeu os dentes.

Os cabelos loiros desgrenhados na frente do rosto, a detetive avistou alguém sair vagarosamente das sombras de uma árvore e encará-la. O ancião nativo estava descalço e não se importava com a areia molhada embaixo dos pés. Ele passou a mão na barba espessa e grisalha e abaixou para ajudá-la.

Quando Sun levantou, olhou-o desconfiada e se manteve atenta.

— Obrigada.

— As coisas estão indo de mal a pior... — Falou de maneira relutante, como se estivesse sendo obrigado a falar em inglês. — O tempo está se fechando para os sobreviventes, não é? Vejo que a contagem já começou.

— Do que está falando?

— Daquela mulher coberta de ouro ter arrastado vocês para o fim. Um já se foi, agora restam sete.

As palavras arrepiaram Sun dos pés à cabeça e a detetive sentiu uma ventania rugir em volta de si, chacoalhando seu rabo de cavalo. O cesto veio rolando até parar nos pés da loira, que assustou-se, olhando para baixo.

— Sinto muito, senhor, mas não consigo compreendê-lo.

Sun ergueu a cabeça para encará-lo, mas encontrou o lugar vazio. O ancião havia ido embora.

Um já se foi, agora restam sete... O pensamento ficou ecoando nas paredes de sua cabeça.

Nicholas chegou logo em seguida, esbaforido e vermelho da corrida até ali.

— Conseguiu pegar ele? — Sua camisa estava ensopada de suor.

Sun demorou para ouvi-lo. A voz de Nicholas continuava distante.

— Sun?

— Oh, desculpe! — A mulher saiu da própria mente, enquanto limpava os joelhos da calça branca suja de terra. — Sinto muito, o perdi de vista, mas não vou desistir de resolver isso. Ou não me chamo Lee Sun Yoo.

X-X-X-X-X

Dawn repousou a cabeça no peitoral nu de Andreas. Contrariando as noites frias de Hadiah, ele sentia calor e os dois deitaram juntos sobre um mesmo tatami de palha. A lamparina da tenda ainda estava acesa, de modo que nenhum dos dois dormia.

Andreas refletia sobre tudo o que tinha dito e feito à Milan e como se sentia culpado pelo misto de sentimentos que passaram pelo corpo do amigo àquela tarde. Se ele tivesse feito seu dever de casa, lembraria que Milan nunca se dera bem com terapias, principalmente por conta dos conflitos acerca do matrimônio com Kamesh e as questões religiosas que foram envolvidas pela família do indiano.

— Pensando no que vai dizer ao Milan amanhã cedo? — Dawn comentou, dedilhando os pelos no peito do marido. Ela o conhecia muito bem, mas nem sempre acertava.

— Já disse tudo o que tinha pra ser dito.

— Você o irritou profundamente e fez aquilo que pedi pra não fazer enquanto estivéssemos viajando, Andie. Não tem que ser um terapeuta o tempo todo. Então, tenho certeza que vai saber o que dizer.

— Amor, o Milan é uma pessoa que admiro por ter uma palavra só. Vou deixar a poeira baixar e ver o que acontece. — Respondeu ele, olhando para o teto da tenda.

O casal estava dividindo o dormitório improvisado com Vânia e Milan. Enquanto ela tentava ter um sono agradável em um canto, o lugar do coreógrafo permanecia vazio. Andreas não fazia ideia de onde ele estava, mas esperava que estivesse pensando sobre a conversa de ambos e considerando perdoá-lo pela indelicadeza. Na pior das hipóteses, estaria evitando-o.

Dawn sentou e arrumou seus cabelos loiros sobre os ombros.

— Ok, vamos deixar essa briga um pouco de lado. Tenho uma boa notícia, estava esperando o momento certo pra contar. — Havia certa animação em sua voz.

O cabeludo franziu o cenho e inclinou o corpo, se apoiando nos cotovelos.

— Espero por uma boa notícia desde que escapamos daquela tragédia.

— É exatamente sobre isso. Esta tarde, meu comunicador voltou a funcionar e mantive contato com os oficiais da brigada local. E como é meu trabalho e eles estão sobrecarregados, me ofereci como voluntária pra auxiliar no resgate das vítimas do maremoto. Vou ajudar no que for preciso: no transporte, nos hospitais e em qualquer coisa que estiver ao meu alcance. Isso não é ótimo? — Dawn tinha um brilho genuíno nos olhos azuis vívidos. — Mas infelizmente só tive tempo de receber o horário do deslocamento. Será no início da manhã. Depois, o comunicador estragou com a chuva, mas acho que ainda dá para recuperá-lo.

A primeira reação de Andreas foi arregalar os olhos, estagnado. Dawn não entendeu o gesto e perguntou:

— O que foi? Achei que ficaria feliz.

— Você vai me deixar? Não, não, você não pode ir!

— O quê? Andreas, claro que não! — Ela deu uma risada nervosa. — Essa é uma oportunidade de manter contato exterior, vou ser a ponte de intermédio entre nosso grupo e o resgate.

O “sim” de Dawn para viver ao lado de Andreas havia sido dado com empolgação e um brilho absoluto no olhar, o mesmo que ele enxergou nos olhos da esposa na noite do matrimônio. A aliança entrou no dedo magro de Dawn com facilidade e o sorriso fácil desabrochou infinitas emoções no peito do psicólogo. Haviam sido apenas duas noites desde que os dois deram um beijo caloroso na praia, selando a união, com seus pés fincados na areia. E para ele, o acidente serviu para mostrá-lo que cada segundo ao lado dela era precioso demais para aceitar que Dawn tinha outros propósitos de vida além de ser sua companheira.

— Me desculpa. — Andreas pediu, beijando o topo da cabeça da mulher. — Não sei o que deu em mim.

— Eu sei. — Ela respondeu séria. — Você age como se não te conhecesse há anos, Andie. Sem jogos psicológicos comigo.

— A verdade é que estou com medo! Você não sabe o que eu vi nos olhos do Milan. Havia um vazio imenso, a perda do Kamesh fez aquilo com ele e não quero-

— Para por aí mesmo. — Dawn parou seus lábios com o indicador. Andreas percebeu que o dedo tremia, a loira estava segurando as lágrimas. — Não use a dor dele pra conseguir o que quer. Ainda não lidei com a possibilidade do Kamesh estar morto e não posso partir amanhã com essa sombra na minha mente.

X-X-X-X-X

Vânia voltou a correr pela floresta esbaforida. Seus pés descalços doíam em cima dos cascalhos e seus cabelos bagunçados dançavam diante dos seus olhos. Cabelo longos, que iam até sua cintura, frenéticos pelo vento. Ela olhou para suas mãos por um instante e viu vestígios de cinzas, o mesmo em suas vestes.

Atrás dela, um rastro intenso de fumaça, engolindo a copa das árvores, a seguindo pela noite. Por algum tempo, pôde ouvir o crepitar distante de uma labareda.

Vultos corriam ao seu lado, compartilhando do calor exagerado. Vânia ainda podia sentir o fogo ameaçando queimá-la. Ela não sabia qual seria o rumo a ser tomado, muito menos o que faria dali em diante, mas nutria uma certeza: se abrigar nas instalações de um mosteiro há alguns metros de onde corria.

O calor do fósforo lambeu o rosto de Vânia e a chama acesa iluminou seus olhos estáticos, entorpecidos pelo brilho. Em uma de suas mãos, uma caixa de fósforos; na outra, um palito aceso no fim, pronto para chamuscar sua bochecha, se não chamuscasse seu dedo primeiro.

A empresária abriu um sorriso involuntário e num ímpeto, o fogo se apagou, restando um pequeno rastro de fumaça. Como se acordasse de um transe, Vânia piscou os olhos e sentiu a caixa ser tirada de si com rapidez.

— O que pensa que está fazendo? — Uma voz familiar chamou sua atenção.

Vânia encarou Milan de maneira envergonhada, ainda sim, sem entender o que estava rolando. No segundo sequinte, sentiu-se zonza e se apoiou no homem.

— Você tá bem?

— Acho que sim… Foi só uma vertigem. O que aconteceu? — Disse ela, massageando as têmporas.

— O fósforo estava aceso e… — A mente do coreógrafo estalou, lembrando-o da noite anterior, quando Vânia foi saqueada. — Ainda deve ter chá de cogumelo pelo seu corpo.

— Eu estava segurando o fósforo? — Vânia sentou-se em uma pedra, perplexa. — Não entendo, tenho fobia de fogo.

— Sim, o fósforo estava no seu rosto. A melhor opção agora é voltar pra tenda e tentar descansar. — O homem sugeriu.

— Eu não sei o que pode estar acontecendo comigo, mas garanto que não é efeito do chá.

A empresária acompanhou um semblante confuso estampar o rosto abatido de Milan.

— Por que acha isso?

— Porque lembro de estar pegando no sono, antes de acordar aqui.

X-X-X-X-X

O ronco da moto anunciava que era hora de Dawn partir rumo ao centro de Hadiah, onde encontraria uma situação perturbadora envolvendo corpos, sofrimento e precariedade. A enfermeira vinha se preparando psicologicamente para aquilo, enquanto caminhava de mãos dadas com Andreas em direção à carona.

O grupo de sobreviventes se reunira em frente ao templo e a vista para a praia, desta vez plácida e silenciosa, trouxe recordações que deixaram Vânia extremamente incomodada. A joalheira ficara mais para trás, aos pés da escadaria principal do templo, enquanto os demais se despediam de Dawn e pediam que ela retornasse o mais rápido possível com notícias boas e com o aclamado resgate. Quanto mais tempo ficassem presos na montanha, sem contato estável com o resto do mundo e com as pessoas que ficaram no Pantai Mamba até então, desaparecidas, mais a reclusão os consumiria.

Dawn aproveitou que seria voluntária no hospital e sugeriu que cada um deles escrevesse em papéis encontrados no pequeno restaurante do vilarejo, o nome de pessoas que ficaram para trás. Ela os levaria consigo e procuraria por cada um deles.

— Pessoal, não prometo nada, mas farei o possível. — Foi o que ela disse, antes de dar um beijo demorado em Andreas.

O barbado engoliu em seco, disposto a se manter inabalável na presença da esposa.

— Andie, não esqueça o comunicador, ok? Ele pode ser útil.

— De certo modo, estou orgulhoso. — Ele murmurou, sorrindo de lado. — Não demore.

A mulher assentiu, usando a aba do boné vermelho que usava e subiu na traseira da moto. O condutor havia contado ao grupo que por conta do tremor e da chuva do dia anterior, parte da estrada que levava ao montanha sofrera um grave deslizamento e que era impossível que um veículo maior que uma motocicleta chegasse até o templo, e consequentemente, no vilarejo. Por isso, seria perigoso que qualquer um se atrevesse a subir ou descer a montanha até que todos estivessem à salvo no centro da cidade.

Dawn olhou para trás e sua última memória fotográfica fora o grupo acenando. Ela não iria desampará-los. Cuide de todos, Andie.

Logo após a moto desaparecer na estrada de terra, Vânia parou do lado de Andreas, olhando o horizonte.

— Obrigada por ontem.

— Pelo quê, exatamente? — Ele olhou para o mesmo horizonte.

— Por não ter tocado diretamente naquele assunto. Me admiro que ninguém tenha feito.

Andreas sabia do que se tratava. Nem um deles chegara a falar em detalhes sobre o desastre. O terapeuta somente não sabia por quais razões: queriam dar espaço a ela, não gostariam de ser invasivos ou apenas tinham medo da resposta. Na realidade, Andreas possuía uma conclusão acerca do surto, e embora estivesse aberto à novas interpretações, preferia ser irredutível até que fosse hora de questionar suas próprias deduções.

— Não tem que agradecer, mas isso não isenta ninguém de te procurar em breve.

— O que isso significa?

— Significa que, pelo que sei, ainda há muitas dúvidas por parte deles. Mais cedo ou mais tarde, vão buscar por explicações. — Andreas terminou com uma batida suave nos ombros da dama de ferro e marchou para longe dali.

Vânia pensou em contar sobre seus sonhos estranhos para o terapeuta, mas pela postura mostrada há pouco, ela convenceu-se de que seria considerada duas vezes mais louca por ter lembranças de algo que nunca viveu, mas algo muito familiar.

Ficou ao relento, ouvindo o vento zunir no seu ouvido. Por fora, alguém inabalável dentro de um vestido caro, agora maltratado; por dentro, um pássaro indefeso, de asas quebradas e incapaz de fazer um voo sem achar que vai direto pro chão.

X-X-X-X-X

Sun levou a caneca cheia de Sayur Delih à boca com cuidado para não se queimar. O caldo típico da região foi preparado com carinho pelos donos do estabelecimento simples, situado perímetro central da vila. Sun conseguia vê-los encará-la detrás de um pequeno balcão de madeira.

Ela acenou de onde estava sentada, grata pela hospitalidade. Bebericando goles discretos do caldo, a detetive ocupou sua mente com tudo que estivesse disponível para não deixá-la pensar em como sua família poderia estar. Se suas destemidas Kim Jo e Eun Bi estavam bem sob a custódia da sogra, se seu tio estava segurando as pontas e se eles já tinham noção do que ocorrera.

Sun supôs que as manchetes percorriam o mundo há algum tempo e foi inevitável que não imaginasse o sofrimento da sogra descobrindo que ela não via seu filho Hwang desde o dia do tsunami. E que ele havia ficado no hotel. Era tarde demais para a habilidade de Sun manter o foco no cérebro. Estava inteiramente imersa no coração.

— Droga de massagem! — Sun bateu o punho na mesa, estremecendo seus objetos.

Os donos do restaurante não esconderam seu espanto e a detetive não teve êxito em mascarar seu arrependimento. Ela levantou e caminhou até os nativos, constrangida.

Inclinou-se alguns graus para frente e se desculpou. Eles pareceram entender, mas estava claro que não faziam parte do grupo seleto de nativos que conseguiam falar inglês. Atrás deles surgiu um jovem de aproximadamente treze anos, que sorriu de bom grado. Ele parecia ser da família.

— Eles não ficaram bravos. — Foi o que disse.

— Fico aliviada. — Sun respondeu, sorrindo com seus olhos estreitos. — Posso fazer uma pergunta a vocês?

— Fique à vontade.

— O que sabem sobre o ancião? Baixinho, franzino, barba grande e grisalha… — Ela gesticulou. — Não vejo ele transitando por aqui como os outros.

O menino disse algo em sua língua nativa para os pais, que saíram dali imediatamente, procurando afazeres. Sun estranhou o comportamento.

— Desculpa, moça, mas não sabemos nada sobre esse ancião.

Ele precisaria de muito mais para convencê-la.

— Vocês não foram os primeiros que abordei, existe algo estranho nesse homem pra todos os habitantes se esquivarem ou fugirem do assunto. Ontem esse ancião veio até mim, dizendo coisas que grudaram na minha cabeça. E eu preciso de alguma informação do seu paradeiro, no mínimo, um nome. — Sun esticou o braço, impedindo-o de dar no pé. — Eu sei que pode me ajudar, garoto.

A detetive era boa demais intimidando uma potencial testemunha para deixar que ela lhe enganasse. Esperou-o ceder nos próximos segundos.

— Não posso! Se Sawar descobrir, ela ficará muito brava e voltará a roubar os legumes da nossa plantação! — Respondeu de maneira atrapalhada, e vista de outro ângulo, nervosa.

— Sawar? Quem é Sawar e por que ela roubaria sua plantação?

O garoto passou por baixo do braço da oriental e saiu correndo para os fundos do restaurante.

Sun saiu do estabelecimento com um sorriso de canto. Sentia muito por ter encurralado o pobre menino, mas estava contente de ter a primeira peça do quebra-cabeças.

X-X-X-X-X

Andreas adentrou em uma das inúmeras trilhas da mata que cercava o vilarejo na procura de Milan. Após não encontrá-lo em sua tenda e nem nas vielas, decidiu tentar outro caminho. Dawn estava certa sobre acertar as contas com Milan, e Andreas queria fazer isso antes que fosse tarde. Ele sabia como Milan era duro na queda, se sentia melhor sozinho e se martirizava pelo que aconteceu a Kamesh. O terapeuta pretendia consertar seu relacionamento com o amigo, e com sorte, trazê-lo de volta para seu lado.

Até ouvir um som alto e metálico, que disparou um alarme dentro de sua cabeça. Olhou por todos os lados. Árvores, arbustos e pedras era tudo o que via. Qualquer que fosse a origem do barulho, estava perto.

Ele apoderou-se de um galho grande e deu passadas largas, esmagando as folhas secas no chão com seu sapato de solados grossos.

Um grito sôfrego rasgou o ar e Andreas o reconheceu no mesmo instante.

— MILAN!

O terapeuta não esperou mais nenhum segundo e correu na direção do grito, que se tornava mais dolorido a cada passo. Empurrou galhos de arbustos, vinhas e qualquer outra planta que estivesse no meio do caminho. O coração do homem acelerou no momento em que avistou Milan jogado no solo, alguns metros adiante, com o pescoço erguido e as veias saltando. O rosto coberto por sua barba feita estava vermelho, de tanto gritar. Seu par de olhos cor-de-mel arregalados, encaravam o equipamento de metal fincado em seu tornozelo.

Andreas tapou a boca e correu até lá, se ajoelhando e pedindo que ele se acalmasse.

— Tira isso, por favor! — Milan reclamou, rangendo os dentes. A dor intensa tomava conta de seu corpo.

— Vo-vou tirar, fica calmo, para de se mexer! — O barbudo analisou o equipamento.

Identificou como sendo uma armadilha para capturar animais, semelhante a uma armadilha de urso. Entretanto, mais artesanal, para bichos menores. Os dentes de ferro estava penetrados ao redor do tornozelo do coreógrafo, que tentava equilibrar a respiração à dor profunda que sentia na perna.

— Milan, eu não estou aguentando! — Tombou a cabeça para trás, suando frio.

Andreas via o sangue descer incessantemente e respirou fundo, reunindo coragem e frieza para abrir o equipamento com as próprias mãos.

— Vou puxar no três. — Disse calmamente, evitando multiplicar seu pavor.

— Vai logo! — Milan berrou a plenos pulmões.

— Um… Dois… Três!

Andreas forçou a “boca” da armadilha, impulsionando suas extremidades para trás, num rangido agudo. Milan puxou a perna com suas mãos e ficou em posição fetal, urrando e se contorcendo. Os dentes de metal tinham sido retirados, mas os buracos profundos não paravam de despejar sangue, molhando toda sua sapatilha. Milan revirou os olhos e abriu a boca.

O terapeuta viu as pontas afiadas completamente enferrujadas e olhou em volta. Eles não parecem caçar animais aqui, alguém plantou essa merda! Logo, retirou a camisa e fez uma atadura improvisada, apertando-a bem.

— Vem, vou te levar pro vilarejo, eles vão saber o que fazer. — Andreas puxou o bailarino para si, colocando-o em seus braços. A adrenalina diminuiu seu peso.

Viu o amigo fechar os olhos.

— Fica firme, Mils!

Milan não viu mais nada. Apagou antes que tivesse a chance balbuciar um agradecimento.

X-X-X-X-X

Milan abriu os olhos devagar, ouvindo os passarinhos assobiarem nas árvores. Um cântico doce e agradável, de modo que sentiu vontade de fechar os olhos novamente e dormir para sempre.

A tenda médica na qual se encontrava tinha capacidade para abrigar outras duas camas, assim como a que ele estava deitado. Tinta branca revestia as paredes de madeira descascada e grossas camadas de forros de palha subiam até o topo do teto, que assumia ligeiramente o formato interno de um chapéu. Milan olhava para um ponto do teto e lembrava o motivo de estar ali, e não dançando na mata como outrora fazia.

Em seus momentos de tristeza e solidão, Milan costumava encontrar lugares vazios para executar movimentos de dança que lhe acalmavam. Era um momento que fazia parte dos finais do dia de sua rotina atarefada para relaxar, antes de chegar em casa e passar o resto da noite com a família. E a mata pareceu ser o lugar perfeito para o bailarino praticá-los, ele nunca esperaria que seria capturado pelo acaso, por uma armadilha camuflada na grama alta. Foi num piscar de olhos, uma passada errada para que sua perna fosse tragada.

Milan observou os dedos do pé descobertos pelo pano e viu uma borboleta azul pousar no dedão. A ideia que passou em sua mente no exato momento, o perturbou no fundo da alma.

Ele não sentia nada. Seus membros inferiores estavam dormentes.

Milan se desesperou, sacudindo os braços e retirando o pano. Olhou para os membros estáticos. A borboleta continuava ali e o homem assustou-se com a mancha arroxeada ao redor do ferimento. Folhas e pequenas fibras seguravam a atadura. Milan queria chorar. Suas pernas eram seu instrumento de trabalho, dançar era sua paixão. E dançar levou-o àquela situação.

Andreas entrou.

— Que bom que acordou, fiquei muito preocupado.

— Minhas pernas, Andreas, minhas pernas! — Milan agitou-se, ignorando a frase anterior. — Não sinto elas!

— Fica calmo, Mils, está tudo sob controle. — O barbudo tocou seus ombros, fazendo menção de deitá-lo de volta. — A dormência é efeito da solução natural que passaram no seu ferimento.

Milan jogou a cabeça para trás. Sem escolhas, deitou. Sentiu Andreas tocar sua mão e segurá-la.

— Não quero mais ficar nem um minuto aqui. — Murmurou o enfermo. — Preciso ver o Kamesh a qualquer custo.

— Milan…

— Andreas, você não entende! — Alterou-se. — Nós deixamos nossa família em San Francisco, meus filhos devem estar preocupados! E por Deus, estou sem notícia do Kamesh há dois dias! Quero meu marido de volta! — As lágrimas já rolavam pelo seu rosto.

O terapeuta sentiu a angústia do coreógrafo, mas não se podia fazer muita coisa. Eles dependiam de Dawn e da boa vontade dos cidadãos de Hadiah. Andreas queria ter muito a dizer para confortá-lo, mas poucas palavras fariam a diferença. Milan permanecia irredutível, de modo que o amigo se propôs a proferir:

— Temos que ficar juntos agora. Me desculpa pelas merdas que disse antes, errei feio com você. Não tiro sua razão, nem o direito de estar abalado com o que houve. Eu também sinto falta do Kamesh, espero que possamos encontrá-lo logo.

Milan olhou para o lado, lutando contra as lágrimas pertinentes, mas seu coração já tinha decidido.

— Óbvio que te desculpo, com uma condição. Que não tente entrar na minha mente outra vez. — Riu de lado, limpando as lágrimas.

O terapeuta também riu.

— Fechado. — E apertou a mão do amigo.

— Essa dormência está me matando. — Milan resmungou, soprando.

— Quanto a isso não posso fazer absolutamente nada. Eles são os experts em ervas medicinais. E por falar nisso, tenho que voltar, deixei o Skylar consertando o comunicador. Ele disse que é muito bom com eletrônicos.

— Pode ir. Não vou a lugar nenhum. — O coreógrafo apontou para as pernas.

Assim que Andreas deixou a enfermaria, um sino de vento pendurado atrás de Milan chacoalhou com uma brisa, caindo sobre a maçaneta da porta que ficava nos fundos da construção.

A maçaneta girou delicadamente, destrancando a porta.

X-X-X-X-X

Vânia deu uma mordida generosa na fruta que segurava, presente de Nicholas. O homem mastigava sua maçã com gosto, não tinha comido nada no café da manhã. Aquela era sua primeira refeição do dia e ele não dispensaria. Ele mesmo retirou as frutas de uma macieira que encontraram nas imediações do vilarejo. A árvore não era tão alta, mas sua sombra foi acolhedora. Ambos se aconchegaram e ficaram degustando do piquenique improvisado.

Uma borboleta azul sobrevoou o espaço e encantou a empresária por alguns segundos, que seguiu-a com o olhar até vê-la desaparecer atrás da árvore.

— Dizem que ver uma borboleta dá sorte. — Nicholas comentou despretensioso. — Principalmente azul.

— Não diga. — Vânia desdenhou. — Seria bom se fosse verdade. — Deu outra mordida na fruta.

Porém, Vânia cuspiu o pedaço amargo. Mas era como se o gosto tivesse vindo de sua boca e não da maçã.

A boca do seu estômago fazia cócegas. Não de fome, de apreensão, como se algo estivesse chegando. O primeiro sinal, foi um arrepio familiar na nuca, feito um sussurro. A primeira vez tinha sido exatamente no templo, antes de pifar o celular. Ela fez uma careta e olhou para Nicholas, se certificando de que o homem não tinha reparado na baba de fruta aos seus pés.

Mas ele notou.

— Você tá bem? Seu rosto está pálido.

Vânia não respondeu. O fisioterapeuta a viu arremessar a fruta com força para longe, que se espatifou ao encontrar uma parede de pedra. Ele franziu o cenho.

A mulher juntou a barra do vestido amarelo e caminhou até o tronco da árvore, e ali ficou parada por alguns segundos. Nicholas se aproximou cuidadosamente.

— Vânia? — Tocou seu ombro.

Mas a mulher revelou estar segurando uma pedra e o homem recuou, espantado, assim que ela a ergueu. Vânia começou a afundar a pedra no tronco de madeira, enquanto o fisioterapeuta acompanhava seus movimentos ligeiros e programados.

Eles não viram, mas Georgia, Sun e Skylar haviam acabado de chegar.

— Por que ela está talhando na árvore? Isso não é proibido aqui? — O adolescente indagou para as mulheres, mas Georgia deu de ombros, enquanto Sun deu alguns passos na direção de Vânia.

X-X-X-X-X

Milan estava de olhos fechados, sereno, mas um estranho formigamento na parte inferior de seu corpo o incomodou. Ele olhou ao redor, visualizando a porta do casebre que abrigava a enfermaria. Havia um símbolo hinduísta pregado contra a madeira, Lotus. E ele ficou encarando o belo símbolo, compenetrado, tentando tirar o foco do formigamento.

Supôs que a bendita pomada milagreira de Hadiah estava funcionando. Ele queria sentir as pernas outra vez, queria continuar espalhando sua dança pelo mundo todo. Já tinha conquistado o ocidente, onde colecionava incontáveis prêmios e títulos, e o oriente já conhecia seu trabalho, mas Milan não se daria por satisfeito enquanto sua mensagem não chegasse até todos os corações.

O homem ouviu estalo, mas não se importou e continuou olhando a Lotus. Até que a porta se fechou completamente e a vibração do chão fez com que a porta dos fundos se abrisse, rangindo. De lá, escorregou duas varas de pesca empoeiradas e velhas, esquecidas por algum turista que visitou a vila antes deles. Os equipamentos recostaram-se na ponta da mesa e as linhas enroscaram-se no pano embaixo das pernas dormentes de Milan.

O bailarino continuava sentindo o formigamento, de modo que inclinou a cabeça e olhou para as pernas. Ele ignorou as varas de pescar e arregalou os olhos quando seu olhar atônito se voltou para o ferimento causado pela armadilha. Metade de sua perna machucada estava roxa e ficando acinzentada em certos pontos. Estava gangrenando? Mas Milan tinha certeza de que tinham cuidado do ferimento, de que ele ficaria bem.

Fight the fight alone

When the world is full of victims

Dims a fading light

In our souls

— Tem alguém aí? Eu preciso de um curandeiro agora!

A Dawn saberia o que fazer… Mas que porra! Onde estão todos?

— Olá! Eu preciso de ajuda aqui, rápido! — Gritou, mas ninguém vinha ao seu auxílio.

Milan estava sozinho e pela primeira vez, a solidão não parecia ser reconfortante. Sem Kamesh, sem seus filhos, sem a presença de Dawn e sem Andreas…

Em seguida, ouviu um zunido alto e um dos vários suportes de madeira que seguravam o forro de palha do teto em forma de chapéu, se desprendeu da parede e desabou em posição vertical.

Sua extremidade atingiu o mecanismo da linha de uma das varas, que começou a girar no sentido contrário, puxando o anzol que estava preso ao pano e esticando a linha. O tecido frágil não resistiu e rasgou, obrigando a ponta do anzol a fincar no lugar mais próximo. A coxa de Milan.

— Socorro! — Milan gritou ao ouvir o estrondo e ver a poeira subir no lugar onde o caibro de madeira caiu.

Da cintura para baixo, ele sentiu cócegas no músculo dentro da coxa. Foi aí que percebeu a isca de pesca rasgando sua pele centímetro por centímetro.

Leave the peace alone

How we all are slowly changing

Dims a fading light

In our souls

Ele gritou o mais alto que pôde, desesperado.

X-X-X-X-X

Andreas chegou às pressas na frente da macieira onde conversava com Milan no dia anterior. Enxergou uma confusão de vozes, em que o grupo de sobreviventes discutia o que seria feito sobre algo, pois um deles estava desmaiado nos braços de Nicholas.

Vânia tinha os olhos fechados e metade do cabelo liso sobre o rosto. Georgia a abanava com um pedaço de papelão e Sun tentava ajudar, enquanto Skylar tinha o comunicador em mãos, observando a cena.

— O que aconteceu? — Andreas perguntou, esbaforido da corrida.

— A Vânia estava bem, estávamos conversando. De repente, ela pegou uma pedra e começou a talhar a árvore. — Nicholas explicou, tentando acordá-la. — Depois desmaiou.

— É proibido machucar as árvores. — Sky murmurou, contido, vendo o homem passar por ele.

O barbudo chegou perto da planta e tocou o tronco, sentindo uma onda de eletricidade passar pelo seu corpo.

“Milan” havia sido talhado com uma riqueza de detalhes e com o indicador, apalpou as marcas. Lembrou-se de quando Vânia falou sobre ter visto Victoria se afogando em seu sonho e mesmo acreditando que não passasse de estresse pós-traumático, no fundo de sua mente, aquilo poderia ter um significado.

In my opinion seeing is to know

The things we hold

Are always first to go

And who's to say

We won't end up alone

Então Milan apressou-se, correndo na mesma direção em que veio. Milan poderia estar em perigo.

X-X-X-X-X

Milan se movimentou, tentando alcançar a linha, mas quanto mais ele dedilhava as pernas, mais a linha puxava o anzol que abria sua pele verticalmente. Ele via o filete de sangue escorrer pela abertura da mutilação e sentia o ardor. Significava que o efeito da pomada que adormecera seus membros já estava passando.

Milan não estava pronto para a dor, mas foi inevitável.

On broken wings I'm falling

And it won't be long

The skin on me is burning

By the fires of the sun

A garganta pareceu estourar com o berro que ele deu, seu músculo estava sendo rasgado com voracidade, enquanto sua derme se partia pela metade. Rangeu os dentes e tentou descer da cama, mas não teve forças. Estava perdendo sangue rápido. O líquido rubro encharcou o lençol e empapou a cama.

On skinned knees I'm bleeding

And it won't be long

I've got to find that meaning

That i search for so long

Até que desorientado, se desequilibrou e despencou para o lado. Bateu a outra perna na segunda vara e caiu de bruços no chão. A vara ficou presa entre a parede e uma estante de madeira, e o segundo anzol caiu exatamente no meio da coluna do coreógrafo, que sentiu um desconforto, mas não conseguia virar o rosto para olhar.

Cry ourselves to sleep

We will sleep alone forever

Will you lay me down

In the same place with all I love

Mend the broken homes

Deitou a cabeça no barro, sentindo a dor consumir seu corpo exausto. Com seu músculo da coxa exposto e uma quantidade razoável de sangue espalhado pelo casebre, tentou se arrastar, mas o anzol ainda continuava fincado e qualquer movimento brusco pioraria sua situação.

Milan cedeu ao choro e sentiu as lágrimas banharem seu rosto. Não se importava mais se alguém o ouviria, mas não desistiria de lutar.

Care for them

They are our brothers

Save the fading light in our souls

Pela primeira vez, agradeceu por não ter Kamesh consigo. Ele não merecia ver aquilo, não merecia vê-lo nos seus momentos finais. Qualquer lugar seria melhor que aquele. Milan se sentia aliviado por Kamesh estar longe de qualquer sofrimento e o pensamento de que o marido descansava em paz confortou sua alma por alguns segundos.

In my opinion seeing is to know

What you give

Will always carry you

And who's to say

We won't survive it too

Milan ouviu um ruído e um barulho alto de algo se rompendo. Olhou para cima com dificuldade, a tempo de ver mais um suporte do telhado ruir e engatilhar a roldana da segunda vara de pesca. O mecanismo girou para trás, assim como da primeira vez, trazendo o anzol para trás e como consequência, fisgando as costas do homem. Milan arregalou os olhos, certo de que não aguentaria mais.

A vara presa entre a porta e o armário se torceu com a pressão exercida pelo corpo do dançarino.

Set a-free all

Relying on their will

To make me all that I am

And all that I'll be

Ele tentou se arrastar novamente, dessa vez, sem se ater à dor e à sua carne sendo dilacerada por dentro. Ele abriu a boca para grunhir, mas o cabo da vara de pesca não resistiu e deslizou da estante, sendo deslocado para trás com o impulso. O anzol foi puxado com violência e voou pelo ar junto com a linha.

Junto com um pedaço das costas de Milan.

Set a-free all

Will fall between the cracks

With memories of all that I am

And all that I'll be

Sangue jorrou da abertura e tingiu as paredes brancas com jatos de sangue. As costas do dançarino pararam de se mexer, assim como os espasmos deixaram seus braços. Sua cabeça foi a última parte a ficar inerte, tombando sem vida para frente ainda com seus olhos arregalados e lacrimejados.

On broken wings I'm falling

And it won't be long

The skin on me is burning

By the fires of the sun

Encarando a Lotus na porta recém-aberta por Andreas.

X-X-X-X-X

Uma imensa flor de lótus estampava a tapeçaria emoldurada na parede dos aposentos de Michael, bem acima de sua cama. O homem mantinha uma tradição inconsciente de observar suas pétalas todas as noites, antes de se recolher. A peça exigia algum tipo de conexão com seu passado, que apesar de não ser evidente dentro de sua memória, lhe transmitia uma afeição automática. A pintura lhe chamava para um sonho bom, um sonho que o transportava aos seus sentimentos mais puros.

Nem todos que conviviam com o clérigo sabiam de seu apego com a flor de lótus. Pois nem todos conheciam a história de como fora parar dentro daquele lugar sagrado. Os padres que viviam no mosteiro há pouco mais de três décadas atrás foram os enviados de Deus para acolhê-lo. Ele não passava de um bebê, enrolado em uma tapeçaria, e a peça que o cobria agora estava pendurada na parede do dormitório.

Em todos os anos que viveu debaixo daquele teto, Michael nunca deixou de observá-lo depois de suas vigílias em adoração. Era um momento íntimo que ele tinha e uma forma de sempre se lembrar do que Deus fizera por ele.

Michael Hazel convivia com mais outras dúzias de homens no mosteiro, servindo sua vida inteiramente aos ensinamentos da Igreja, em seus votos de pobreza, castidade e obediência. Um campo de batalhas espirituais diárias para obter a salvação em forma de orações e auto sacrifícios. Sua vida inteira aconteceu dentro daquelas paredes de pedra, ou pelo menos, até que ele se tornasse um adulto feito e fosse nomeado como missionário para atuar em situações de crise, quando prestava auxílio espiritual às pessoas corrompidas pelas disputas entre reinos.

A janela de seus aposentos dava direto para o jardim do claustro, onde podia ver as flores e ervas medicinais sempre que quisesse, e em contrapartida, a energia negativa que o lugar emanava, por também funcionar como cemitério como aconteceu em algumas exceções.

Aquele pensamento obscuro deveria ir embora e Michael decidiu rezar mais um pouco, antes de dormir, a fim de espantá-lo. Ele ergueu levemente a bata, revelando seus joelhos esfolados.

Uma voz suave o interrompeu. Khan, o jovem com o qual dividia seus aposentos, estava sentado em sua cama.

— Com licença, senhor. — Pediu.

— Khan, tem que ser rápido. Sabes o quanto a conversação é restringida a essa hora. Estamos nos recolhendo, mantenha discrição, por favor. — Respondeu de maneira dura.

Porém, Khan não se sentiu mal. Ele entendia que o clérigo precisava passar o máximo de disciplina para os demais monges e ser uma figura exemplar.

— Eu preciso de sua ajuda. Veio ao meu conhecimento que minha família está no meio de uma disputa de território injusta com um dos protegidos do Senhor de Hightower. E você é a única pessoa que conheço, que pode interceder por eles diretamente.

On skinned knees I'm bleeding

And it won't be long

I've got to find that meaning

I'll search for so long


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Notas finais do capítulo

Então, gente, queria aproveitar para esclarecer que estas cenas finais dos últimos capítulos postados são introdutórias à trama paralela que irá se desenvolver ao logo desta temporada.

Ou seja, teremos a trama principal e a trama secundária e os personagens apresentados no final de cada capítulo, são os mesmos que estarão nesta trama paralela. E ambas estão conectadas.

Espero que tenham gostado do capítulo. Não esqueçam de comentar, as reviews são muito importantes para a continuidade do projeto.



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